Nos últimos tempos, vários atores económicos, em Portugal e na Europa, puseram em cima da mesa o tema da reindustrialização. Na União Europeia, a motivação passa pela observação simultânea da redução de peso económico e político da Europa num mundo crescentemente globalizado e da redução do peso relativo dos contributos industriais na produção europeia. Ainda recentemente o vice-presidente do Executivo comunitário e delegado europeu de Indústria, Antonio Tajani, o ministro espanhol da Indústria, o ministro português da Economia e a ministra italiana da Educação e Pesquisa ratificaram um texto que foi posteriormente aprovado na reunião da Cotec Europa, em Lisboa, apelando à reindustrialização da Europa e, em concreto, dos países do Sul do continente. Talvez apelando à génese fundadora da União Europeia, com a já longínqua Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, referiram que a indústria está “no coração da economia da Europa e do projeto europeu”, que o setor industrial tem um “efeito positivo” no conjunto da economia e que as nações mais industrializadas “resistem melhor às crises cíclicas das economias modernas”. Em conclusão, insistiram que é “essencial que a União Europeia se comprometa com uma política industrial” catalisadora do crescimento económico europeu, devendo, por esta razão, ser encarada como “um dos principais objetivos políticos” da União. Estes responsáveis, em conjunto com líderes empresariais de Portugal, Espanha e Itália, chegaram mesmo a reafirmar formalmente estarem “comprometidos, apelando às instituições financeiras” para que busquem “soluções que permitam às empresas europeias ter acesso a um financiamento adequado, em particular às pequenas e médias empresas”.
Este desígnio faz sentido para a Europa e para Portugal? Depende do sentido que se der à palavra reindustrialização e o contexto em que se pretenda proceder à mesma. Ou seja, se o que estiver em causa for recentrar a economia portuguesa na produção de bens e serviços em setores competitivos, nomeadamente transacionáveis, afastando os recursos nacionais, públicos e privados de atividades improdutivas e de rent seeking, estou de acordo. Se o que está em causa é uma proteção mais ou menos encapotada da produção nacional no setor secundário, não posso deixar de estar contra, pois conduzirá necessariamente a uma afetação globalmente ineficiente dos nossos recursos, prejudicando ainda mais as gerações atuais e as futuras. Num país altamente endividado e pouco produtivo, tais políticas, ainda que benéficas para alguns, seriam fortemente penalizadoras para o coletivo, afastando provavelmente qualquer hipótese de desenvolvimento do país em muitos anos. Quando um país está tão fragilizado como nós estamos, um novo erro pode ter um efeito cataclítico sobre um edifício que ameaça ruína.
Os dados mostram que nas últimas décadas o setor secundário perdeu expressão relativa na economia portuguesa. Houve, como já escrevi em trabalhos académicos e artigos de opinião, muitos incentivos à desindustrialização: um setor financeiro com grande apetite pelo risco imobiliário, dificuldade de alguns bancos em dominar metodologias que permitissem avaliar adequadamente risco empresarial fora do cluster da construção e do imobiliário, preferência governamental por obras públicas e desenvolvimento de setores não transacionáveis (em função de estratégias anteriores de maximização de receitas de privatização), falta de infraestruturas adequadas ao transporte de mercadorias finais e matérias-primas, ensino sem adequada formação de quadros intermédios, formação profissional que, muitas vezes, foi uma mera atividade de saque de fundos europeus, etc., etc. Parar com estas práticas e concentrar o esforço das políticas públicas em garantir um ambiente adequado à produção de bens e serviços em regime de sã concorrência, assegurar que não se desperdiçam os meios postos ao serviço da qualificação da mão-de-obra, resultará, necessariamente, na melhor política industrial que um governo pode almejar. Se o fizer, se não ceder a tentações, contribuirá para ampliar a capacidade nacional de criar riqueza de modo sustentado. No entanto, não bastará cuidado e comedimento na ação do governo. A melhoria da nossa base produtiva exige algo que o governo não tem para oferecer (e, de certo modo, ainda bem!): capital. O problema é que este também escasseia no setor privado.
Em Portugal, todas as classes de agentes mantêm elevadas responsabilidades perante terceiros, nomeadamente, e de modo consolidado, agentes externos. O forte endividamento do setor privado perante o exterior reflete o enorme endividamento das famílias, mas, igualmente, o fortíssimo endividamento das nossas empresas não financeiras. Este, por sua vez, resulta da baixa capitalização das mesmas, um problema endémico da nossa economia, muito acentuado nos anos anteriores a 2011 e, em particular, a 2008, dado o acesso quase irrestrito de muitas empresas a crédito bancário, a preços e em montantes dificilmente justificáveis se se usassem parâmetros razoáveis de avaliação de risco de crédito. Neste contexto, o crédito às empresas não financeiras atingiu mais de 210% do PIB, com cerca de metade atribuível a pequenas e médias empresas (PME). Capitalistas endividados, um acesso muito limitado ao mercado de capitais (a capitalização do nosso mercado chegou a mínimos de 27% do PIB, contra valores modestos mas ainda assim de 40% em Espanha e 60% em França) e uma enorme insuficiência de venture capital ou mesmo de private equity funds e risk capital (totalizando ativos de menos de 1,5% do PIB) levaram as empresas portuguesas a níveis de endividamento elevadíssimos por qualquer padrão, impedindo o seu crescimento ou mesmo, simplesmente, a sua sobrevivência nas condições adversas que encontraram com o aprofundar da crise. Sem resolver este problema não há reindustrialização em Portugal. Mesmo na versão benigna que defendo.
Este artigo é parte integrante da edição de maio da Revista EXAME