‘Ouvir os aviões a atravessar o céu e não se seguir o estrondo das bombas a rebentar.” Há confissões surpreendentes, inesperadas. Omar Alfannoush, 34 anos, chegou a Lisboa há pouco mais de um mês e – qual sol, qual mar, qual simpatia dos portugueses…- esta é a sua primeira impressão sobre o nosso país: o som dessas grandes máquinas voadoras faz-se ouvir na cidade, de manhã à noite, e nenhum mal daí advém. No máximo, sobra o rasto, um risco branco no céu. Não há estilhaços. Nem gritos de horror. Nem gente ferida a correr. Nem mortos para enterrar.
À memória da tensão que lhe marcou a vida, nos últimos tempos, segue-se um silêncio.Omar, que era bancário, não se conforma com a violência que lhe roubou a vida normal, nos últimos anos. “Nunca pensei em viver fora do país – nem a minha família. Nós éramos felizes.” São recordações que mostram como, no coração, não chegou a deixar Der-Ezo, no leste da Síria, onde cresceu. Agora, é a nostalgia que não o deixa baixar os braços. Antes o empurra a sonhar com o fim da guerra. Para reunir a família.
É uma história que, em vários pontos, se cruza com as de Ayman Alawn, 23 anos, e Yourkey Alber, 27, compatriotas de um país em guerra civil há mais de três anos. Ayman escapou, assim que pôde, de Aleppo para se instalar na Turquia, depois de lhe prenderem o irmão, feroz opositor do regime. Em tempos, também desejou estar na frente da revolução: “Agora, só queria a paz.”
“Para nós, a Primavera Árabe tornou-se uma tempestade…”, concorda Yourkey, que conseguiu deixar Damasco e chegar à Malásia, onde se tornou voluntário no apoio a outros refugiados. As suas famílias, essas, são uma manta viva de retalhos, espalhadas pelos países vizinhos, sobretudo o Líbano, que abriga já um milhão de pessoas fugidas da Síria. Foi aí que este grupo de estudantes conseguiu a passagem para o lado de cá. Candidataram-se às bolsas de estudo de uma assistência académica de emergência e, depois de uma entrevista por Skype, receberam o bilhete para embarcar a bordo do C-130 da Força Aérea Portuguesa, que os foi buscar à capital libanesa.
FOTO: Luís Barra
Omar, Yourkey e Ayman tinham fugido para o Líbano e saíram de Beirute num avião da Força Aérea Portuguesa
Viver é ter esperança…
Quando chegaram, quem os esperava era Jorge Sampaio, o mentor desta Plataforma Global para atribuir bolsas de estudo a refugiados da guerra síria (ver entrevista). Pouco depois, foi a vez de António Rendas, reitor da Universidade Nova de Lisboa e também presidente do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas, e de José Ferreira Machado, diretor da Nova SBE, lhes darem as boas-vindas. É naquela faculdade que Ayman vai completar a licenciatura, enquanto Omar e Yourkey frequentam um mestrado em Finanças. Instalados num apartamento no Saldanha, fazem por se acomodar o melhor possível: “Vocês têm palavras como ‘arroz’ e ‘açúcar’ que se dizem quase da mesma maneira!”, aponta Yourkey, o chefe da casa. Mas (há sempre um mas), não resistem a insistir: “East or West, Home is Best” (Qualquer coisa como A Leste ou a Oeste, a Casa é Sempre Melhor). Omar faz o remate: “Viver é ter esperança. Sem sonho não há vida.”
Na verdade, é essa esperança que tem empurrado os sírios para lá das fronteiras, e Portugal está nessa rota. A fuga mais emblemática marcou o final de 2013, a 10 de dezembro, quando um voo da TAP chegou da Guiné-Bissau com 74 sírios a bordo, embarcados sem papéis. Aqui pediram asilo mas acabaram por não esperar pela decisão do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) e, mesmo sem papéis para circular fora de Portugal, foram partindo, a pouco e pouco, para a Alemanha. “A maioria dos refugiados sírios está a deslocar-se para países como a Alemanha, a Suécia ou a Dinamarca, porque já lá tem grupos de familiares e amigos e uma comunidade relevante”, explica fonte do SEF. Para trás ficou apenas um menino, que nasceu prematuramente no dia em que todos aterraram em Lisboa. Além de lhe ter dado nome Omar, a mãe da criança deixou uma carta, assegurando que voltaria para o vir buscar. Esse documento foi anexado ao processo a decorrer no Tribunal de Família e Menores. Como nasceu antes do tempo, o bebé só agora teve alta hospitalar e está à guarda da Segurança Social, à espera que a mãe regresse, como prometeu.
Feitas as contas, Portugal recebeu 165 pedidos de proteção internacional de nacionais da Síria 146, só no ano passado mas, ainda assim, uma imensa minoria em relação a todos os que fogem da guerra: há perto de 2,5 milhões de refugiados e apenas 81 mil conseguiram transpor as fronteiras da Europa.
… num país chamado Síria
Melhor sorte têm, para já, os 45 estudantes que chegaram a Portugal no início de março: espalhados por todo o País, vão aqui ficar dois anos. Ihsan Khalifa, Ahmad Kalthoum e Hazem Hadla, de 22, 19 e 30 anos, estão em Aveiro, para concluir os estudos em engenharia civl e eletrotécnica: “Em Damasco não nos era possível ir para a universidade descansados. A qualquer momento, podíamos ser apanhados por uma bomba ou por um tiroteio”, explicaram, à chegada.
Outros seguiram para Braga, para Coimbra, para Bragança… O grupo maior está no Porto, imbuído da mesma esperança, da mesma força, dos mesmos desejos. Como quem diz, à espera de uma resolução rápida do conflito.
“Oxalá”. A resposta de Annas sai veloz, numa das primeiras palavras que aprendeu em português talvez por ter origem no árabe In sha’Allah. Natural de Damasco, Annas Hosareya, 23 anos, teve de interromper os estudos de gestão. “Era impossível: as universidades têm de fechar muitas vezes.” Na Jordânia, para onde escapara, paralisava-o o custo de vida elevado. “Sem bolsa de estudos, não estava a ser fácil.”
Sempre às voltas na internet, atento às possibilidades que poderiam surgir no estrangeiro, Annas conseguiu, quase em simultâneo, vaga numa universidade do Reino Unido e também no programa criado por Jorge Sampaio. “Optei por Portugal, porque me pareceu melhor”, diz a sorrir.
Mas o que mais deseja, tal como Firas Gharreb, o mais velho do grupo que está no Porto, é regressar a casa. “A educação é fundamental e quero concentrar-me em acabar os meus estudos, ganhar alguma experiência e voltar para ajudar o meu povo. Com pessoas qualificadas em várias áreas, acredito que vamos conseguir”, diz, sem esconder as saudades do país que, do outro lado do Mediterrâneo, se levantou contra uma ditadura e aspira a viver em democracia. O que mais lhes custa? Que tenha saído do alinhamento dos noticiários. “Aqui, sabem apenas que há um país chamado Síria e que há uns distúrbios por lá”, lamenta Firas. “Mais nada.”
*com Mário David Campos