“Mas há outras portas que também não se devem fechar: todos podem participar de alguma forma na vida eclesial, todos podem fazer parte da comunidade, e nem sequer as portas dos sacramentos se deveriam fechar por uma razão qualquer.”
(In Evangelii Gaudium, nº 47)
“Entretanto, os excluídos continuam a esperar.”
(In Evangelii Gaudium, nº 54)
“A política é deveras o espaço em que, sem qualquer garantia externa, decisões éticas são tomadas e negociadas. A ideia de que a política se pode fundar na ética, ou que a política é, em última análise, um esforço estratégico que entende realizar posicionamentos éticos que lhe são anteriores, é uma versão da ilusão do ‘grande Outro’ “. (in Less Than Nothing, by Slavoj ?i?ek)
Parece existir uma espécie de “natureza das coisas”, para lá da vontade individual ou colectiva, que faz com que, em momentos ainda sem nome, pessoas e instituições se transformem e adotem inevitavelmente outro tipo de comportamento. Por isso, talvez não seja apenas uma questão de estilo ou de make up o que vemos acontecer no governo da Igreja Católica pela mão do Papa Francisco.
Soprando o Espírito por onde lhe apraz e sendo a inclusão uma exigência da condição de tudo quanto nasce e morre, o divino deixou de estar circunscrito às sagradas escrituras (Sola Scriptura) e a sua presença ou dom de si, uma intimidade condicionada (Sola Gratia), sendo por isso uma realidade mais imanente, e, por esse motivo, inclusiva.
Estaremos longe de ver os efeitos que este surpreendente puxar pelo fio do novelo da Igreja desencadeará, mas com todos os que, como crentes, agnósticos ou ateus, aguardam com ansiedade poder sair da exclusão e abandono, o terceiro milénio da história da Igreja Católica não será certamente igual ao primeiro, muito menos ao segundo.
A realidade de um “Deus” para lá das muralhas de qualquer fortaleza, a urgência e necessidade, no que concerne a governação biopolítica e tecnológica, do diálogo, da inclusão e da cooperação a todos os níveis, como desafios deste milénio, estarão, no meu entender, na base da (des)continuidade de outros eventos que outros hão de um dia ler e estudar em livros de história.
Mas é já de quem faz parte desta história, de quem igualmente a lê e interpreta hoje, a exortação apostólica Evangelii Gaudium (a Alegria do Evangelho), onde o Papa Francisco defende de forma desempoeirada e destemida que só uma economia alicerçada na “primazia do ser humano” será capaz de evitar a idolatria do dinheiro e a morte de milhares de pessoas. Mundialmente esmiuçada e debatida como conteúdo programático do seu pontificado, a exortação coloca como caminho de todo o tipo de governação política, económica, religiosa a defesa da dignidade humana pela via do trabalho, e a inclusão.
Haverá quem aplauda este desenovelar, quem gostasse até de lhe ver maior celeridade, e quem, julgando-o perigoso, advogue, por outro lado, o seu abrandamento ou total interrupção. Mas o que por estes dias a “natureza das coisas” parece fazer transparecer, nestes e noutros gestos de Francisco, e sem que ele claramente o diga, é que, doravante, não há nem pode alguma vez haver “big Other”, transcendência ou imanência, “Deus” ou “Homem” que possam condicionar e colocar em risco a inclusão de todos, sem excepção.