Na primeira pessoa: “Já aconteceu vir um agressor tocar à campainha e pedir para falar comigo… Fiz-me desentendida”

Na primeira pessoa: “Já aconteceu vir um agressor tocar à campainha e pedir para falar comigo… Fiz-me desentendida”

Em teoria, existir ameaça à vida é um critério que pesa muito na admissão de vítimas de violência doméstica na casa-abrigo. O facto de na avaliação aparecer um risco moderado ou baixo não significa que a pessoa não possa vir a ser uma potencial vítima de homicídio. Pode haver uma escalada da violência, basta que seja adquirida uma arma, por exemplo. Lembro-me do caso de uma senhora que já tinha sofrido uma tentativa de homicídio por parte do companheiro – baleou-a, atingindo-a nas vias respiratórias – e depois, noutra altura, tentou estrangulá-la, tendo o filho conseguido distrair o pai e assim salvar a mãe.

Na maior parte das situações, as mulheres vêm acompanhadas pelos seus filhos. Ultimamente temos recebido muitas famílias numerosas, mães com três e quatro filhos, o que faz com que morem na casa -abrigo mais crianças do que adultos.

Trabalho nesta casa desde o minuto zero, em 2006, e uma grande diferença notada face ao primeiro grupo acolhido é a idade. Normalmente, a média etária ronda os 30 a 35 anos; na altura, tínhamos mães muito novas, com 22, 23, 24 anos.

A primeira mãe que aqui chegou tinha 22 anos e vinha com duas crianças, uma de 9 meses e outra que ainda não tinha feito 2 anos. Todos os anos, ela nos telefona e dá sinal de vida. Depois de sair, manteve contacto connosco e ainda a visitei em casa. Fez questão de ir chamar o novo companheiro e mostrar-me as grelhas de tarefas, tal como as da casa-abrigo, para ter a vida familiar orientada.

O grau de maturidade é um dos entraves agora sentidos. Se, há 18 anos, tínhamos mulheres mais empoderadas, com outro sentido de responsabilidade e de perspetiva de vida, neste momento temos famílias numerosas com algumas mulheres a terem imensa dificuldade em projetar o seu futuro, sem saberem como podem reorganizar a vida.

A maioria tem pouca escolaridade, poucas têm o 12º ano, embora já tenhamos tido aqui pessoas licenciadas. Isto depois, em termos de inserção no mercado de trabalho, também não lhes dá grandes oportunidades de crescimento, porque acabam por estar ligadas às limpezas ou à restauração. É importante que as pessoas não se esqueçam dos seus deveres e quem fica aqui entre 12 e 18 meses, em média, com acesso gratuito a tudo, faz-me uma certa confusão que não consiga chegar ao fim desse tempo com uma poupança, e não é por serem vítimas de violência doméstica, é por falta de literacia, neste caso financeira.

Nos nossos primeiros meses de atividade, o ano letivo já se tinha iniciado e conseguir vagas em creches ou jardins de infância foi para esquecer, por isso a equipa ficou responsável pelas crianças com menos de 3 anos, para as mães conseguirem ir trabalhar. No presente, também temos outros recursos e já temos outra maturidade. Mas a nossa intenção é de que, de facto, estas famílias consigam estar minimamente organizadas para quando se autonomizarem.

“Ela queria tudo menos salvar-se”

Podem existir questões no regulamento da casa-abrigo que façam lembrar o agressor – no sentido do controlo –, como existirem horários de entrada e de saída, horários para as crianças recolherem e para os adultos irem para a cama, não podendo ficar acordadas até às duas ou três da manhã. Mas das regras mais difíceis de cumprir são, sem dúvida, as questões do sigilo na era das redes sociais. Os cuidados que têm de ter para não divulgarem imagens delas na casa, e das outras utentes, acabando por denunciar a localização e a identidade das outras mulheres.

Já aconteceu vir um agressor tocar à campainha e pedir para falar comigo – ainda bem que ele não me conhecia e fiz-me desentendida. Por acaso, a mulher com quem tinha tido o relacionamento já não estava aqui, mas o que me deixou particularmente indignada foi saber que ele já tinha conhecido outras utentes da casa-abrigo e elas saberem que a sua vítima de violência poderia estar novamente numa situação de risco, e não me disseram nada com medo. Muitas têm sentimentos de codependência e de pena do agressor. Tanto dizem que foi pelos filhos que saíram de casa como é por eles que voltam, porque têm saudades do pai.

Não sei dizer se os casos de violência doméstica estão mais violentos, até porque uma situação muito difícil de gerir para mim aconteceu há 20 anos e só falei com a senhora uma vez, quando a atendi no gabinete de apoio à vítima. Ela acabou por ser vítima de homicídio e queria tudo menos salvar-se. No fundo, sabia que era uma questão de tempo até ser morta pelo companheiro muito agressivo. Queria que falássemos com ele para o aconselhar e acalmar e gostava que o filho fosse alguém na vida.

Em muitos casos, as relações de violência não começaram com o agressor que as fez chegar à casa-abrigo, já tinham sido vítimas de abuso sexual na infância, por exemplo. Durante muito tempo da sua vida, alguém lhes dizia: ‘não prestas’, ‘não vales nada’, ‘és uma péssima cozinheira’, ‘és uma dona de casa de porcaria’

Como sabia que havia armas em casa – o homem era caçador –, dei-lhe algumas orientações de segurança, que separasse as munições da arma. Mas o filho pediu-lhe para não o fazer e, nessa noite, foi morta a tiro de caçadeira e o marido sobreviveu à tentativa de suicídio. A mãe morreu, o pai foi preso e o filho deve ter um sentimento de culpa enorme. Na altura, confrontei-me com a questão de respeitar a vontade das pessoas, mesmo sabendo que está em risco, e o sentimento de impotência.

Na casa-abrigo temos uma visão muito ampla: vemos como cada mulher se relaciona com as outras mulheres, com os seus filhos e connosco enquanto equipa. Muitas vezes, estão tão desgastadas, tomara terem algum autocuidado e o autorrespeito, isso acaba por se refletir na relação com o outro.

Em muitos casos, as relações de violência não começaram com o agressor que as fez chegar à casa-abrigo, já tinham sido vítimas de abuso sexual na infância, por exemplo. Durante muito tempo da sua vida, alguém lhes dizia: “não prestas”, “não vales nada”, “és uma péssima cozinheira”, “és uma dona de casa de porcaria”. De que forma é que podemos ser influenciadores e como é que isto pode ser feito de uma maneira positiva?

Depoimento recolhido por Sónia Calheiros

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