A partida para a aventura é junto ao Cabo de São Vicente, em Sagres, o extremo sudoeste de Portugal continental. Daquele ponto simbólico e histórico, rodeado pelo imenso Atlântico, os atletas do ALUT – Algarviana Ultra Trail partem à descoberta do Algarve profundo, por trilhos agrestes, longe da azáfama do litoral, atingindo os três picos mais elevados da região (as serras do Caldeirão, Monchique e Espinhaço de Cão), até chegarem ao município raiano de Alcoutim e às margens do rio Guadiana. Um desafio para valentes, de 308 quilómetros, percorridos num tempo limite de 72 horas, de 28 de novembro a 1 de dezembro. O recorde é de umas impressionantes 38 horas, pertencente ao ultramaratonista escocês Paul Giblin.
A maioria do percurso coincide com a Via Algarviana, a grande rota pedestre que cruza o País (na horizontal) de uma ponta à outra, passando por nove concelhos. “Apesar de sermos um país pequeno, essa travessia tem um significado especial”, sublinha Bruno Rodrigues, diretor da prova. “Vamos por um Portugal desconhecido e esquecido, e passamos por pequenas aldeias no interior algarvio, semidesertas, ainda muito genuínas”, descreve. Para muitos dos atletas, e para quem está a acompanhá-los e a assistir, é uma revelação.
A promoção turística, fora da época alta, é um extra de uma das provas mais árduas deste género, realizadas em Portugal. Estima-se que, em 2023, o contributo para a economia local tenha rondado os 55 mil euros. Ao longo das sete edições, “o ALUT foi crescendo em número de participantes, mas temos um limite de 100 atletas, aquele número em que conseguimos garantir a qualidade do evento, acompanhar todos os atletas com segurança, ao nível de todo o percurso, e tratá-los por tu”, acrescenta. Facilmente esgotaram as inscrições, sendo que cerca de 40% dos participantes desta edição são estrangeiros. “Temos todo o tipo de atletas, da elite mundial e nacional, embora a maioria seja de pelotão”, diz Bruno Rodrigues.
No ano passado, cerca de 70% conseguiu concluir a prova, sendo que esta pode ser feita a solo ou em equipas de estafetas de quatro elementos. “À partida, vê-se o medo do desconhecido nos olhos, mas queremos que todos cheguem ao fim, por isso há um espírito de grande entreajuda”, acrescenta.
Normalmente, percorrem 100 quilómetros por dia, parando por poucos minutos para se alimentarem ou descansarem. “Entre o primeiro e o último concorrente, chegam a estar mais de 24 horas de distância, o que é muito complexo para a organização”, indica o responsável.
Emancipação feminina
As mulheres têm igualmente aumentado as participações (nesta edição serão 26). Fátima Gonçalves, 57 anos, há dez anos que entra em provas de ultra trail. “Tinha uma vida muito sedentária, era uma workaholic assumida”, recorda, ela que, apesar de se descrever como uma “atleta de pelotão”, já alcançou o pódio do ALUT.
Em conjunto com o marido, começou por realizar provas pequenas, passou depois para meias-maratonas e maratonas, de seguida para trail running (corridas, essencialmente, pelo meio da natureza), até chegar às provas mais exigentes, em terreno natural, cuja distância supera os 42 quilómetros da maratona. “Temos progredido em conjunto, o que tem sido muito bom”, conta. “A enorme vantagem das provas de trail é que conhecemos caminhos tão especiais e passamos por experiências que nunca imaginaríamos viver”, sublinha.
Entretanto, Fátima teve o seu momento de “emancipação”, precisamente no ALUT. Apesar de o percurso coincidente com a Via Algarviana se encontrar sinalizado, outra parte necessita da orientação através de um equipamento GPS. “Da primeira vez, nem sabia usá-lo, seguia o meu marido”, recorda. “A meio da prova, ele não conseguia avançar mais, estava cheio de bolhas nos pés. Como estava tão entusiasmada, encorajou-me a continuar, pôs-me o relógio no braço e ensinou-me como funcionava… ganhei fôlego e fui.”
Nunca irá esquecer o sentimento de superação. “Não é só o atravessar a meta, é olhar para trás, ver como gerimos as sensações e ultrapassamos os desafios. Muitas vezes, nem interessa o lugar em que fico, quero é dar o melhor de mim.”
No Algarve profundo
O ALUT realiza-se em regime de semiautonomia, isto é, sem recurso a ajuda externa fora das bases de apoio – existem nove, em localidades rurais com nomes castiços como Furnazinhos, Cachopo, Barranco Velho e Marmelete. Com o desgaste sofrido, há que repor as calorias e nos postos de abastecimento não faltam iguarias da região para alimentar os corredores, dos enchidos ao atum, das amêndoas ao mel, passando pelas sopas, feitas com hortaliças colhidas bem perto do percurso e preparadas pela população local. “Nunca lá passa ninguém e os habitantes querem fazer parte da festa, de alguma forma”, conta Bruno Rodrigues. “Nos locais por onde a prova passa, vão para as portas, colocam água nas janelas… há toda uma dinâmica que é muito emocionante.”
Fátima Gonçalves lembra-se da senhora que insistiu para levar um saco de nêsperas durante a corrida ou da velhinha, muito surpreendida, quando a viu chegar do meio da serra, ainda mal o sol se tinha levantado. “Vem da serra nesses preparos? Não teve medo?”, perguntou, ela que sempre ali viveu isolada. “São experiências incríveis. De facto, corremos durante a noite, ouvimos sons, imaginamos os animais que passam e aprendemos a conviver com isso tudo.”
Vem-lhe à memória um percalço na segunda vez que fez o ALUT, a cerca de dez quilómetros da meta. “Tinha de atravessar um ribeiro e não conseguia ver onde era a passagem, porque avariou o frontal [a luz na cabeça] e a vegetação era alta. Estive duas horas às voltas, pensei que ia ficar por ali.” Com outros companheiros, lá conseguiu varrer o terreno e encontrar uma saída. O esforço compensou: o segundo lugar entre as concorrentes femininas estava à sua espera.