É manhã cedo de um dia de semana. No Mercado do Plateau, no centro da Praia, conversa-se muito, mas nem por isso a confusão abunda. Renovado há oito anos, é o mercado mais importante da cidade. Vende-se de tudo: carne, peixe, legumes, fruta, ovos, farinhas e feijão, num festival de cores e de cheiros a que muito dificilmente se consegue resistir, quer se trate de comprar, quer se trate de admirar (e fotografar). No rés do chão, na banca dos enchidos, um bebé dorme o sono dos justos, num colchão montado no chão de improviso e coberto com um lençol.
Em frente dos enchidos, do lado de lá das escadas que dão acesso ao primeiro andar, várias mulheres assentam arraiais numas mesas de madeira altas. Vêm vender comida feita, pronta a servir, e chegam, inclusivamente, do Senegal e da Guiné, segundo nos explicam. Daqui a pouco, chegará também quem aqui venha, asseguram-nos, à procura do almoço, por dois ou três euros.
Não acontece apenas no Mercado do Plateau. Cabo Verde é, em si mesmo, um entra-e-sai de gente. Hoje, porta sim, porta não, há uma loja chinesa nas ruas da Praia. Botecos com cachupa e Strela fresca também – há coisas que não mudam e, felizmente, a globalização não impediu a tradição de continuar a ser o que era. Da estátua imponente de Diogo Gomes à Igreja Nossa Senhora da Graça, onde aos domingos à noite há missa concorrida, o Plateau continua a ser a zona mais nobre da cidade e, nomeadamente, o centro do poder, das instituições, com o palácio presidencial e vários ministérios. Até à independência de Cabo Verde, só esta área – que forma um planalto no meio da Praia – era considerada como fazendo parte da malha urbana. A partir de julho de 1975, novos planos municipais vieram juntar zonas, bairros e, claro, a cidade cresceu.
Pelo património da Cidade Velha
É sempre de evitar fazer generalizações com base em nacionalidades, sobretudo nos tempos que correm. Mas a verdade é que é difícil não pensar em como são os cabo-verdianos dados às artes. Basta olhar para as paredes da Praia, de resto. Em todos os bairros, dos mais pobres aos mais abonados, há murais pintados de várias cores e feitios, com destaque para os retratos de figuras que reconhecemos com facilidade, como Cesária Évora e Amílcar Cabral. Engraçado é nós próprios não passarmos nada despercebidos e até sermos motivo de fotografia uma vez que seguimos de calhambeque elétrico pelo Plateau, pela Rua d’Arte, pela Feira de Sucupira e pela Avenida Cidade de Lisboa. Leu bem, caro leitor: calhambeques elétricos, trazidos para a ilha de Santiago por uma empresa de automóveis local (a Multimarcas) que está a tentar dinamizar este tipo de passeios turísticos em Cabo Verde.
A tarde é depois passada a 15 quilómetros da Praia, na Cidade Velha, capital a partir de 1858, Património Mundial da Humanidade desde 2009. A 120 metros de altura, vale a pena conhecer o Forte Real de São Filipe, erguido em 1590 para defender a ilha dos ataques dos piratas e dos corsários. Não tivemos tempo para isso, mas asseguram-nos que, pelo vale adiante, “o Grand Canyon”, é possível fazer uma caminhada de uma hora até à cascata. Na Cidade Velha, estão bem conservados o pelourinho e o Convento de São Francisco, erguido em meados do século XVII. Prosseguindo pela Rua Banana, encontra-se ainda a Igreja Nossa Senhora do Rosário. Construída em 1495, segundo o cânone manuelino, foi a primeira igreja da África subsariana, diz-nos Hélder Andrade, nosso guia e funcionário do Instituto do Património Cultural. “Morabeza” é uma palavra crioula, embora se tenha tornado familiar entre os portugueses, sobretudo por causa de um conhecido hotel, localizado no Sal, de longe a ilha mais turística do arquipélago de Cabo Verde (no total, são dez ilhas e apenas Santa Luzia não é habitada). Mas, em Santiago (500 mil habitantes, por sinal, metade da população do país), a palavra morabeza também vai bem com o ambiente de calma e gentileza que por aqui se vive.
O serão faz-se, por fim, no Quintal da Música, uma instituição cultural da Praia, há 25 anos, propriedade de outra “instituição” da cidade e do país, Ália Lopes dos Santos. Diz a chefe Ália que junta “o saber aos sabores de Cabo Verde”, o que, na carta do restaurante, pelo que provámos, significa polvo salteado, atum grelhado e arroz de peixe. No palco, todos os dias há música ao vivo: mornas, coladeiras, batuco ou funaná. No final da noite, prova-se um grogue de fazer vergar o mais resistente dos provadores.
Para que a memória não se apague
Diz quem sabe que, para visitar Santiago, o ideal será dispor de quatro dias. A ilha é a maior de todo o arquipélago e, de uma ponta à outra, estende-se por cerca de 55 quilómetros. Só durante os meses de novembro e dezembro, com o regresso dos emigrantes, é mais difícil alugar um carro. No resto do ano, anda-se bem.
Na manhã seguinte, fazemo-nos à estrada com destino ao Tarrafal, com paragens em São Jorge dos Órgãos e em Assomada (mais um mercado para visitar e admirar, desta vez, com têxteis). Atravessamos o Parque Natural da Serra da Malagueta, avistamos o Pico da Antónia, o ponto mais alto da ilha, com 1 394 metros de altitude. Temos muita sorte: há coisa de um mês, neste caminho, estava tudo seco; como, nas últimas semanas choveu – e tanto, que ainda há estradas intransitáveis –, a paisagem está deslumbrante e temos verde até perder de vista.
Uma vez chegados ao outro lado da ilha, alcançamos Chão Bom, que – como que por ironia – é o nome do local onde fica o Tarrafal. As comemorações dos 50 anos do 25 de Abril também passaram por aqui e, por isso, o museu foi renovado para a ocasião. Para que a memória não se apague, vale igualmente a pena percorrer a área do antigo campo de concentração que, de 1975 até 1986, já depois da independência, também funcionou como quartel.
Há mais ironias para dar conta neste relato de viagem. A melhor praia que visitámos na ilha de Santiago foi, justamente, o pequeno areal do Tarrafal: uma baía pequena, águas translúcidas, barcos e pescadores a compor o bilhete-postal. Por tudo isto, do lado esquerdo de quem está virado para o mar, recomenda-se – e muito! – o restaurante Riba Mar. O esmoregal grelhado, um peixe que é habitual encontrar-se nos mares temperados, soube-nos pela vida. Que, nunca é demais dizê-lo, deve ser levada com calma e gentileza.
NÃO PERDER Inaugurou este ano e é o primeiro cinco estrelas da ilha de Santiago: Barceló Praia Cape Verde, com quartos com varanda para o mar
A VISÃO viajou a convite da cadeia hoteleira Barceló
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