Catarina de Bragança, a ‘influencer’ maldita

Catarina de Bragança, a ‘influencer’ maldita

Este artigo fez a capa da VISÃO nº 1432 de 13 de agosto de 2020

Na noite de 13 de maio de 1662, desembarcou em Portsmouth, na costa sul de Inglaterra, uma jovem portuguesa de 22 anos envolvida num largo capote. A viagem por mar, num daqueles grandes navios de madeira cheios de portinholas atrás das quais se escondiam bocarras de canhões, durara um mês e deixara-a muito enjoada, e por isso pediu que a deixassem descansar ali uns tempos, antes de seguir viagem para Londres. A cidadezinha, húmida e envolta na bruma, era muito diferente das do seu país natal, e as pessoas falavam uma estranha língua formada por palavras curtas e sincopadas, por vogais nasaladas e como que carregadas de espanto e de ironia. Naquele tempo, com o século XVII bem avançado em anos, mas antes ainda da explosão global britânica do século seguinte, praticamente só os nativos de Inglaterra sabiam falar inglês. Na Europa, quem era culto contactava com os estrangeiros em francês, e os portugueses dialogavam com os espanhóis na língua destes.

A jovem portuguesa, por sinal não especialmente bela, enjoada e tiritante de frio, no cais e na casa para onde a levaram, chamava-se Catarina. Viajara até Inglaterra, até à brumosa Albion, para se casar, mas nunca tinha visto o futuro marido. Só viria a conhecê-lo quando este a foi visitar a Portsmouth, uma semana depois de ela ter desembarcado. Com o seu metro e oitenta, era um homem altíssimo para os padrões da época, e a cabeleira e os sapatos de tacões aumentavam-lhe ainda a estatura. Fazendo grandes vénias, com a pluma do chapéu que empunhava quase a roçar o chão, Carlos – assim se chamava o noivo – não vinha sozinho. Pelo contrário, acompanhava-o uma grande comitiva sujeita a rígidas regras de etiqueta. Não admira que assim fosse, pois Carlos Stuart era rei daquele país onde se falava uma língua tão esquisita.

Catarina de Bragança estava, pois, destinada a ser rainha de Inglaterra. Mas não sabia ainda que iria ser pouco feliz durante a sua longa estada de três décadas, na Grã-Bretanha, que teria grandes problemas, que se defrontaria com enormes obstáculos e que haveriam de acusá-la de coisas que ela nunca fez. Mas, sobretudo, ignorava ainda até que ponto a própria iria influenciar os usos e costumes dos ingleses. É que, por mais discreta, reservada e tímida que fosse, esta rapariga que não dava especialmente nas vistas iria tornar-se aquilo que hoje chamamos – na língua do seu novo país, transformada atualmente em idioma global – uma influencer.

Mesmo sem trocaram grandes palavras, Catarina de Bragança e Carlos Stuart casaram-se depois em duas cerimónias separadas: uma católica, praticamente sem ninguém a assistir, e outra anglicana, com bastante público nas naves da igreja. Só a 30 de setembro, mais de quatro meses depois da chegada da portuguesa ao seu novo reino, é que o casal se meteu a caminho de Londres, em pesadas carruagens de cavalos que sulcavam estradas brancas, lançadas através de colinas suaves e muito verdes. A jovem pôde assim verificar que o país era bonito, com casinhas de pedra e de tijolo que pareciam feitas de chocolate, com chaminés gigantescas no seguimento das empenas, e aqui e ali placas com coisas pintadas e escritas a balouçarem, rangendo, nas ombreiras das portas das estalagens. Sebes de um verde-escuro separavam os campos brilhantes, chovia com frequência e as pequenas florestas que o casal atravessava a trote eram tão verdes e húmidas que pareciam impermeáveis ao fogo.

Quando as casas se foram encostando mais umas às outras, Catarina percebeu que a comitiva em que seguia se aproximava de Londres. Atravessaram o rio Tamisa pela única ponte que então existia e desembocaram, na outra margem, em ruelas estreitas e não muito salubres, perto da silhueta maciça e ameaçadora da Torre de Londres. A ponte, com casas construídas em cima, fora danificada por um recente fogo, mas o pior nesta matéria estava para vir. Quatro anos depois, um grande incêndio destruiria a parte central da cidade, embora poupasse a zona aristocrática e o Palácio de Westminster, onde Catarina iria morar. Como o fogo deflagrou numa padaria da rua do Pudim e foi dado por extinto no beco do Salpicão, falou-se logo de um castigo divino pelo pecado da gula (o que parece, pelo menos, improvável, dado o conhecido desinteresse inglês pela culinária elaborada…).

A entrada do casal real na capital e maior cidade de Inglaterra (Londres teria então meio milhão de habitantes) fez-se com alguma pompa, mas o entusiasmo popular não era por aí além. Pairava ainda no ar um cheiro a morte, pois uma recente epidemia de peste fizera inúmeras vítimas. E, depois, aclamar uma «papista» não era coisa que motivasse o povo britânico. Catarina era católica, ao passo que os seus novos súbditos praticavam, na sua grande maioria, o culto anglicano, desde que, no século XVI, Henrique VIII cortara os laços com Roma e se declarara chefe da Igreja nacional, prerrogativa extensível aos seus sucessores no trono. Havia também no país muitos puritanos, rígidos membros de igrejas protestantes que interpretavam à letra passagens inteiras da Bíblia, originalmente escritas há milénios para serem aplicadas ao povo hebraico. No século XVII, quando tudo isto se passou, as damas usavam vestidos com muitos folhos e grandes decotes, e os homens pavoneavam-se com punhos de renda, pera e bigode fininhos, chapéu emplumado e espada flexível sempre à cinta. É assim, nestes atavios, que devemos imaginar Catarina de Bragança e Carlos II de Inglaterra.

Manobras diplomáticas
Catarina era filha do rei de Portugal D. João IV, fundador da Dinastia de Bragança, e de D. Luísa de Gusmão (ou de Guzmán), uma dama espanhola que veio a ser rainha de Portugal. O facto de se ter casado com o rei de Inglaterra sem nunca antes o ter visto não espanta, pois era essa, durante séculos, a prática corrente entre famílias reais. Podemos considerar, isso sim, que o matrimónio nestas circunstâncias era uma espécie de lotaria, mas, em boa verdade, acaba por sê-lo em qualquer contexto. O que se passava, na realidade, era tratar-se de contratos de aliança entre os respetivos países e de uma forma de se assegurar a continuidade do trono, através da descendência. O amor estava, evidentemente, fora da equação. A própria amizade não era chamada ao caso. Manda a verdade que se diga que houve, mesmo assim, casos de feliz entendimento conjugal nos palácios reais europeus, sujeitos a uma etiqueta tão feroz que até as cenas que hoje entendemos como privadas eram, em muitos casos, públicas. Por exemplo, a entrada de um casal real na cama na noite de núpcias fazia-se com cortesãos a assistir.

Quando Catarina nasceu, em 25 de novembro de 1638, o pai ainda não era rei de Portugal, mas “apenas” duque de Bragança. O nosso país era, desde 1580, governado pelos soberanos espanhóis, na sequência da desastrosa batalha de Alcácer Quibir, na qual D. Sebastião desaparecera sem deixar descendência. Isto porque, após um breve reinado do tio-avô de Sebastião (o idoso eclesiástico cardeal D. Henrique, também sem filhos), a Coroa portuguesa passou para Filipe II de Espanha, neto do antigo rei D. Manuel I (do qual Sebastião era bisneto). E, durante 60 anos, uma sucessão de três monarcas espanhóis, todos com o nome de Filipe, reinou sobre Portugal. Em 1640, talvez quando já menos se esperava que isso acontecesse, um grupo de nobres revoltou-se com esta situação, o povo apoiou-o e Portugal reconquistou a independência. O duque de Bragança foi convidado pelos revoltosos a ser rei e sentou-se no trono com o nome de D. João IV. A sua filha Catarina nascera dois anos antes, no paço ducal de Vila Viçosa, a residência da casa de Bragança. Após a morte dos jovens Teodósio e Joana, o rei Restaurador tinha ainda dois outros descendentes vivos, mais novos do que Catarina: os futuros reis Afonso VI e Pedro II.


Claro que os espanhóis não aceitaram pacificamente a nova situação, e principiou desta forma uma longa guerra entre os dois países ibéricos que haveria de se prolongar por 28 anos – até 1668. Portugal acabaria por vencer essa Guerra da Restauração e por obter o reconhecimento da independência por parte da Espanha, o que pode surpreender, visto ser esta uma potência mais forte. Parte da explicação prende-se com as outras lutas em que os espanhóis estavam simultaneamente envolvidos, sobretudo um conflito interno com a Catalunha, já nesse tempo independentista, e uma guerra contra a França.

Na Guerra da Restauração, que o opôs à Espanha, Portugal procurou alianças com outros países também interessados em enfraquecer o poderoso vizinho. O mais lógico seria garantir desde logo o apoio da França contra o inimigo comum. E como, naquele tempo, nada havia de melhor do que um casório real para cimentar um acordo entre duas Coroas (leia-se dois Estados), houve a ideia de casar Catarina com o duque de Beaufort, um neto bastardo do antigo rei Henrique IV de França. Porém, as negociações (porque estas coisas envolviam sempre grandes manobras diplomáticas) não deram resultado.

Em 1659, pensou-se no casamento da princesa portuguesa, então com 21 anos (o que era, à época, uma idade já “respeitável” para uma noiva), com o próprio rei de França – nada mais, nada menos do que o famoso Luís XIV, o Rei Sol, aquele que dizia “O Estado sou eu” e que mais tarde mandaria construir, para sua residência (e de grande parte da nobreza do reino, permanentemente “convidada”), o monumental Palácio de Versalhes. As conversações arrancaram, e só mais tarde os portugueses perceberam que se tratava de uma armadilha preparada pelo ardiloso cardeal Mazarino, o estadista italiano, naturalizado francês, que então governava a França. Chegou a vir a Lisboa o embaixador francês conde de Cominges, mas era fogo de vista destinado a captar as atenções e a deslumbrar. Com efeito, Mazarino conseguiu, através da “ameaça” deste consórcio, obrigar Espanha a fazer a paz e depois negociou o casamento de Luís XIV com a infanta espanhola Maria Teresa de Áustria, filha de Filipe IV (ex-Filipe III de Portugal).

Amigos, amigos, negócios incluídos
Mas a França não era, evidentemente, a única opção de aliança de que Portugal dispunha. Dava-se o caso de a Inglaterra ser, até, uma nossa velha aliada desde o século XIV, com sucessivos tratados posteriores a renovarem essa ligação – quase sempre com vantagens para os ingleses, diga-se de passagem. Como nunca deixou de estar em vigor, trata-se, mesmo, da mais antiga aliança internacional existente nos nossos dias. E foi assim que, em 1661, já cinco anos depois da morte de D. João IV e sendo regente a rainha viúva D. Luísa de Gusmão, tendo em conta a menoridade de Afonso VI, se tratou novamente do casamento da infanta Catarina, sendo desta vez escolhido o nosso já conhecido Carlos II de Inglaterra.

As explicações próximas para essa escolha são objeto de controvérsia. Há quem diga, um pouco à maneira de um conto popular, que um frade português de visita a França se encontrou ali com Carlos Stuart, exilado nesse país depois da execução do pai, Carlos I, por decisão do Parlamento (episódio dramático que mais adiante se contará), e o predispôs no sentido de se unir à princesa de Portugal. Outros pretendem que D. Francisco de Melo, depois conde da Ponte e marquês de Sande, embaixador português em Inglaterra, solicitara esse casamento logo depois da aclamação do monarca britânico, em 1660 (o que, aliás, aparece confirmado por este mesmo, numa carta pessoal).

Por estranho que possa parecer, tudo indica que o próprio Luís XIV (ou os seus políticos por ele) fez, por seu lado, todos os esforços no sentido de persuadir o seu homólogo do outro lado da Mancha a dar o sim à infanta de Portugal. E é certo que a França disponibilizou à Inglaterra uma avultada quantia, solicitando a esta potência que auxiliasse Portugal na sua guerra contra a Espanha (isto apesar de, recorde-se, Luís XIV se ter casado com a graciosa filha de Filipe IV). O Rei Sol enviou até pessoalmente a Londres o célebre Fouquet, seu ministro das Finanças, com cartas de crédito até à quantia de 500 mil libras para oferecer ao chanceler de Inglaterra, o conde de Clarendon, figura muito influente junto de Carlos II.

Uma quarta tese indica que foi o secretário de Estado português, António Sousa de Macedo (um misto de chefe do governo e de ministro dos Negócios Estrangeiros), o primeiro a lembrar e a aconselhar o casamento de Catarina com Carlos. É provável que assim seja, pois Macedo, residente em Londres por altura da execução de Carlos I, desenvolveu tantos esforços para tentar evitar que o machado do carrasco cortasse o pescoço do rei inglês que o filho do defunto, o nosso Carlos II, o distinguiu mal subiu ao trono com o título de barão, extensivo a todos os seus sucessores. Existem cartas de Macedo para o rei, escritas em latim, o que prova que os dois estavam em contacto. Vem a propósito referir que este António de Sousa Macedo, a quem durante muitos anos foi atribuída (julga-se agora que erradamente) a autoria de uma obra literária de referência do Barroco português, intitulada A Arte de Furtar, foi um dos pioneiros do jornalismo nacional, enquanto redator do Mercúrio Lusitano.

Qualquer destas teses sobre as origens do enlace Catarina-Carlos pode ser verdadeira, e talvez nem interesse muito apurar agora quem se lembrou primeiro de tal casamento, mas de uma coisa não há dúvida: só depois de perdida a esperança da união com Luís XIV é que se pensou no consórcio com o rei de Inglaterra. As negociações nesse sentido foram conduzidas pelo já referido embaixador D. Francisco de Melo, conde da Ponte. Escreve o conde da Ericeira, na sua obra Portugal Restaurado, que, ouvidos quanto às vantagens deste matrimónio, os membros do Parlamento inglês declararam tratar-se de “uma honra tão grande nossa que não somos capazes de fazer retorno equivalente”.

O casamento foi depois ajustado pelo tratado anglo-luso de 23 de junho de 1661, em que se confirmavam os mais recentes acordos entre os dois reinos, cujo relacionamento era já tão antigo. Como dote, Portugal comprometia-se a pagar à Inglaterra dois milhões de cruzados (ou 300 mil libras) e a oferecer-lhe as cidades de Tânger, no Norte de África (que tinha sido conquistada em 1471), e de Bombaim, na Índia (que fora oferecida por um sultão local em 1534). Tudo isto veio, de facto, a acontecer, e os ingleses ficaram com o direito de fazer comércio livremente no Brasil – então colónia portuguesa – e de desfrutarem de completa liberdade religiosa em todos os territórios dependentes de Portugal. Receberam ainda a promessa de vir a deter chorudos interesses na canela de Ceilão, mal esta ilha fosse recuperada aos holandeses (e se ajudassem nessa tarefa, tanto melhor para eles). Quanto à posse de Bombaim foi o ponto de partida do interesse dos ingleses pela Índia, futura joia da coroa britânica, quando todo o subcontinente indostânico esteve à sua mercê. Poderá então perguntar-se: se Portugal não tivesse oferecido Bombaim à Inglaterra nunca teria existido Índia Britânica? Vá lá saber-se… Provavelmente, os “nossos velhos aliados” teriam lá chegado por si próprios, mas a História não é feita de “ses”.
Em troca, a Inglaterra deu a Portugal qualquer coisa, mas pouco. Prometeu apoio militar e naval contra a Espanha, se fosse preciso, e comprometeu-se a deixar Catarina seguir os rituais da Igreja Católica. De facto, Catarina não foi obrigada a abraçar a religião anglicana, mas a sua liberdade de culto foi relativa, pois a Corte nunca deixou de a rodear de espírito de incompreensão. Chegou mesmo a ser acusada de agente do Papa e de cabecilha de uma conspiração, como adiante veremos.

A imperatriz romana

A primeira compatriota a reinar no estrangeiro foi Leonor de Portugal
Catarina de Bragança não foi a única portuguesa a ocupar o topo de uma hierarquia fora do País. A primeira, em data, tinha sido Leonor de Portugal que, no século XV, se casou com o imperador Frederico, do Sacro Império Romano-Germânico.



Leonor era filha do rei português D. Duarte e neta de D. João I. Quando veio ao mundo, em 1434, Portugal era um País relativamente rico e respeitado no exterior. Meio século antes, os portugueses tinham derrotado os castelhanos em Aljubarrota e garantido a independência. Nessa batalha, Portugal contou com a ajuda dos ingleses, aos quais interessava enfraquecer Castela que, como aliada da França, era sua inimiga na Guerra dos Cem Anos, que então decorria. Para reforçar a aliança anglo-lusa, D. João I casara-se mesmo com uma nobre inglesa, Filipa de Lencastre. Leonor era neta deste casal.

Normalmente, as alianças não duravam para sempre e as mudanças de campo eram frequentes. Na altura de se arranjar um bom casamento para Leonor, pensou-se muito antes de se tomar uma decisão. Acabaram por ser os austríacos a mostrar interesse pelo assunto. É que as riquezas da Casa de Avis, a que Leonor pertencia, despertavam a cobiça da família Habsburgo que governava o então chamado Sacro Império Romano.

Em finais de outubro de 1451, quando tudo ficou combinado com os representantes do imperador Frederico III, Leonor embarcou em Lisboa, rumo à Itália, cuja parte norte pertencia aos domínios do futuro marido. Nunca se tinham visto, mas ele conhecia as feições dela porque mandara o pintor Hans Burgkmair vir retratá-la.

Foi em Siena que Frederico e Leonor se encontraram. Ele era um homem de 36 anos, com idade para ser pai dela. O casamento celebrou-se em Roma e o momento foi registado por Pinturicchio num fresco da catedral de Siena.

Leonor era bonita, inteligente e falava várias línguas. Gostava de dançar, de jogar e de caçar, mas não despertava grandes simpatias entre os cortesãos dos palácios de Viena e de Neustadt, que a acusavam de ser intriguista. Passou a sentir-se muito só, pois o imperador mostrava-se indiferente aos seus encantos e andava quase sempre por fora. Mesmo assim, tiveram cinco filhos, dos quais apenas dois chegaram à idade adulta: Maximiliano, mais tarde sucessor do pai no trono do Sacro Império, e Cunegundes, que se casaria com um duque da Baviera.

Leonor morreu nova, pouco antes de completar 33 anos, e ficou sepultada em Neustadt, perto de Viena, um pouco esquecida dos portugueses. Recordamo-nos bem de alguns dos seus famosos tios, como os infantes D. Henrique e D. Pedro, mas… ela é que foi a imperatriz romana…

Um rei que perdeu a cabeça…
A restauração dos Stuart no trono, neste caso na pessoa de Carlos II, surpreendera muito a Europa, depois dos atribulados acontecimentos políticos e militares que tinham abalado a Inglaterra, em meados desse século XVII, marcados pela execução de um rei, a instauração de uma efémera república e uma guerra civil.

Se recuarmos brevemente até à morte de Isabel I, a Rainha Virgem, última soberana da Casa de Tudor, em 1603, veremos que lhe sucedeu Jaime I, filho da rainha escocesa Maria Stuart, que foi o primeiro monarca da dinastia inglesa com este apelido. Jaime reinou em Inglaterra com o nome de Jaime I e na Escócia (que mantinha as suas instituições próprias) com o de Jaime VI. Governava ainda a Irlanda e as dependências coloniais adquiridas pelos marinheiros de Isabel. Leve-se em conta que o Reino Unido só seria criado um século depois. Quando Jaime I morreu, em 1625, sucedeu-lhe o seu filho Carlos I. Fisicamente não se pareciam nada um com o outro: Jaime era extravagante, pouco asseado e gaguejava; Carlos distinguia-se pela elegância de maneiras e era gabado como excelente cavaleiro. Coincidiam, porém, nas opiniões políticas, pois ambos defendiam ferozmente os alegados direitos da realeza e esforçavam-se por tornar a monarquia “de direito divino” verdadeiramente absoluta, escapando ao controlo parlamentar.

Mas as guerras contra a França e contra a Espanha em que se envolveu forçaram Carlos I a pedir subsídios ao Parlamento, uma instituição que remontava à Idade Média. Os deputados aproveitaram a deixa para publicar, em 1628, uma petição em que lembravam as liberdades tradicionais dos ingleses e denunciavam os abusos dos reis, tão contrários ao espírito nacional. Obtida a paz exterior, Carlos I pôde dispensar os serviços do Parlamento e passou a praticar uma política de absolutismo sistemática. Entre outras coisas, quis uniformizar o culto religioso, impondo o anglicanismo às outras confissões protestantes, e esforçou-se por fazer ressuscitar antigos, e obviamente muito impopulares, impostos.

Uma revolta iminente obrigou Carlos I a convocar de novo o Parlamento, que ele antes dissolvera. Reunido em permanência entre 1640 e 1653, chamou-se a esta nova sessão Long Parliament, em oposição ao anterior, designado por Short (curto) Parliament. Debatendo-se com a oposição parlamentar às suas políticas, o rei tentou levar a cabo um golpe de Estado, mandando prender os principais deputados. Não conseguiu, porém, ser obedecido e teve de fugir de Londres, principiando assim – em janeiro de 1641 – uma importante guerra civil.

De um lado do conflito alinharam com o rei os católicos, os anglicanos favoráveis às políticas absolutistas e a maior parte da nobreza mais as respetivas clientelas; do outro, enfileiraram com o Parlamento os puritanos e a maior parte da burguesia, ou seja, os armadores de navios, os comerciantes da City londrina e os proprietários das ainda incipientes indústrias.

O chefe dos puritanos, grupo que ganhou preponderância do lado parlamentar da barricada, era um fidalgote de província fanaticamente religioso chamado Oliver Cromwell. Este formou um Exército, conhecido por “Cabeças Redondas”, porque os soldados usavam o cabelo curto, ao contrário dos guedelhudos “Cavaleiros” da fação oposta, e derrotou as tropas do rei numa batalha decisiva. Carlos I foi preso, julgado e condenado à morte sem apelo nem agravo. Durante a audiência, manteve-se sempre altivo, ostentando desprezo pelos juízes. No dia 9 de fevereiro de 1649, em frente do Palácio de Whitehall, pôs a cabeça no cepo. O carrasco, encapuçado, ergueu o machado e fê-lo tombar com força. O rei foi sepultado em duas peças separadas. A execução foi propalada aos quatro ventos pelas gazetas, os jornais que então começavam a publicar-se, e impressionou toda a Europa.

O Parlamento aboliu, então, a monarquia e proclamou a república, mas a dada altura surgiram desacordos nas hostes vencedoras da guerra. Apoiado nos seus “Cabeças Redondas”, Cromwell mandou os deputados para casa e tornou-se ditador, com o título de lorde Protetor da República de Inglaterra, da Escócia e da Irlanda. Durante o seu consulado de fanatismo puritano, tanto o anglicanismo como o catolicismo foram proibidos, os teatros viram as suas portas encerradas, os pubs ficaram sujeitos a regulamentação apertada, as corridas de cavalos e os combates de boxe foram banidos e tornou-se obrigatório o descanso absoluto ao domingo. Se esta política ditatorial, tão contrária aos costumes ingleses, foi tolerada durante nove anos, deveu-se isso ao facto de as pessoas reconhecerem que algumas medidas positivas de alcance nacional tinham sido tomadas pelo novo regime. Entre estas estavam a submissão da Escócia e da Irlanda, o estabelecimento de colónias da América do Norte (o futuro Estados Unidos da América) e nas Antilhas e, sobretudo, a promulgação do Ato de Navegação. Através desta lei, que se manteria em vigor por dois séculos, ficava reservado aos navios ingleses o exclusivo do tráfego com as colónias; a Marinha britânica começou por isso a desenvolver-se até se tornar um gigante mundial, e os armadores dos Países Baixos, até então prósperos, ficaram… a ver navios.

… e outro com cabeça
Cromwell designou o filho como seu sucessor, mas o rebento era feito de outra massa e não conseguiu impor-se. Nas intrigas que opuseram os moderados aos extremistas do Exército, levaram a melhor os primeiros e, em 1660, foi decidido levar a cabo a restauração dos Stuart. O nosso Carlos II, futuro marido de Catarina, que como já foi referido vivera exilado em França, pôde assim regressar triunfalmente a Inglaterra.

Proclamado rei sem quaisquer condições por uma nação cansada de conflitos, o novo monarca teve, no entanto, de manobrar com habilidade para não suscitar a oposição do Parlamento, mantendo ao mesmo tempo as prerrogativas régias. Era uma espécie de quadratura do círculo, mas acabou por não se sair mal. Cético, sem ilusões acerca da natureza humana, Carlos II utilizou, no dia a dia, a corrupção como forma de atuação governamental. Aceitou os tais subsídios de Luís XIV, que atrás vimos, de boa cara e com grande satisfação, e utilizou-os mais para garantir a liberdade de ação face ao Parlamento do que para outra coisa (seguramente, não o fez para ajudar Portugal na Guerra da Restauração contra a Espanha). Os partidários de Cromwell apagaram-se da cena política, passando o Parlamento a ser maioritariamente constituído por nobres anglicanos proprietários de terras. Só faltava mesmo resolver a questão religiosa e garantir a sucessão no trono.

Carlos inclinava-se para o catolicismo, mas não estava disposto a arriscar a Coroa restabelecendo o culto romano cerca de um século e meio depois da decisão de Henrique VIII. Quanto à sucessão, entra aqui o casamento com a nossa Catarina de Bragança, nas circunstâncias atrás descritas. Só que a portuguesa nunca lhe deu filhos legítimos, pelo que o sucessor de Carlos viria um dia a ser o irmão, Jaime II, abertamente católico.

Terá Portugal ganhado alguma coisa com o casamento de Catarina? As opiniões dividem-se, mas a procura de alianças exteriores era muito importante nessa época da restauração da independência face à Espanha.

A “influencer” infeliz
Voltemos, pois, aos dias do casamento de Carlos e de Catarina e aos primeiros tempos de permanência da filha de D. João IV em Whitehall.

Catarina era infeliz, porque vivia num palácio muito grande, tinha dezenas de criados e muitas damas de companhia ao seu serviço, podia montar os belos cavalos que lhe apetecesse, escutar música quando quisesse e tomar chá a qualquer hora do dia, e não exclusivamente às 5 da tarde, mas… Mas ao princípio quase não entendia uma palavra do que lhe diziam, batia o queixo com o frio, tinha saudades de um céu azul e arriscava-se a apanhar grandes chuvadas quando cavalgava. Além disso, poucas vezes via o rei seu marido, o que talvez nem fosse assim tão mau, pois quando se cruzava com ele acidentalmente, num dos corredores do palácio, desviavam ambos o olhar para não se encararem.

Mas o pior era sentir que o povo do qual era rainha não gostava dela, em grande parte por ser católica. E, aos poucos, a tristeza foi-se instalando no seu coração.

A maternidade é, para a generalidade das mulheres, algo de muito importante. Mas, se essa mulher for rainha, ter filhos torna-se obrigatório, pois cumpre-lhe dar herdeiros à Coroa. Como a mortalidade infantil era enorme, uma rainha precisava de estar sempre grávida, e Catarina esteve-o por diversas vezes, sem contudo conseguir dar à luz um herdeiro. Mais um motivo para os súbditos não a apreciarem.

Quanto ao rei, de caráter volúvel, interessava-se mais por outras mulheres do que por Catarina. A certa altura, não teve escrúpulos em nomear para aia da mulher a própria amante, lady Palmer. Mas nem por isso Catarina deixou de se esforçar por ser simpática com toda a gente. Engolia em seco e continuava a sorrir. Era, no entanto, senhora do seu nariz, apreciava dinheiro e investimentos de capitais, gostava de jogos de cartas (parece que era mesmo viciada) e chocava os rígidos anglicanos e os severos puritanos ao ter o sacrílego desplante de baralhar e voltar a dar ao domingo.

O pior de tudo foi quando começou a correr o boato de que era espia do Papa e conspirava contra a vida do marido. Parece que aqui a diplomacia de Lisboa funcionou, pois uma embaixada enviada rapidamente para Londres conseguiu anular a suspeita de traição ao reino de Inglaterra por parte de Catarina. Na capital portuguesa, foi tal o sururu causado por estas notícias, quando se tornaram conhecidas, que o povo chegou a sair à rua e a manifestar-se contra os “velhos aliados” ingleses.

Mas, se os suspiros que saíam do peito de Catarina não paravam de se fazer ouvir nos penumbrosos corredores do Palácio de Whitehall, nem por isso ela deixou de desempenhar um papel afirmativo naquela Corte do Norte.

A sua ação fez-se sentir sobretudo ao nível dos costumes. Até ao último quartel do século XVII, os ingleses começavam a beber cerveja logo de manhã e ao longo do dia quase não interrompiam a prática desse desporto líquido, nem sequer à 5 da tarde (hora a que, provavelmente, saboreavam a sua five o’clock beer…). Posteriormente, mesmo sem terem deixado de consumir cerveja (muito pelo contrário, como se pode ver todos os anos nas noites de Albufeira, até em tempos de Covid-19), os ingleses tornaram-se loucos por chá, conhecem todos os tipos desta planta e mostram-se muito exigentes na hora de serem servidos. Como é bem sabido, chamam até “chá das cinco” (five o’clock tea) ao seu lanche, feito à base desta estimulante infusão e de scones.

Ora, reza a lenda que foi a nossa Catarina que levou o chá para Inglaterra. E, também, que por lá divulgou o uso do tabaco para introduzir nas narinas (ou seja, o rapé), trazido no século anterior para Portugal pelo embaixador francês Jean Nicot, de cujo apelido deriva a palavra “nicotina”. E, como se não bastasse, conta-se que foi ainda ela que levou o uso dos talheres para a grande e verde ilha de além-Mancha. Todas estas coisas podem ser verdadeiras, porque os portugueses trouxeram o chá das suas viagens pelo Oriente no século XVI, tinham contactado com o rapé nas circunstâncias referidas e conheciam bem o uso dos talheres, dado o relacionamento que mantinham com as requintadas cortes italianas (não esqueçamos que, antes do Renascimento, na Europa comia-se com as mãos).

De qualquer modo, agora sabe-se, e está demonstrado, que já se vendia chá em Inglaterra alguns anos antes de Catarina lá ter chegado. Mesmo sendo assim, do que não há dúvida é que foi ela que generalizou o seu uso, tornando frequente o que era decerto excecional. E o mesmo pode ser afirmado quanto ao tabaco e aos talheres de mesa. Por isso, podemos, sem dúvida, considerar Catarina uma influencer, para usar uma palavra em inglês hoje corrente em todo o mundo. Porém, como nunca foi bem-vista na Corte de Whitehall, foi uma influencer maldita.

A “Gorda” do Prado

Bárbara de Bragança, filha de D. João V, reinou no país vizinho e lançou as bases do célebre museu madrileno.

D.R.


Também Maria Madalena Bárbara de Bragança foi, no século XVIII, rainha fora de portas – neste caso, em Espanha. Como era tudo menos magra, os seus salerosos súbditos deram-lhe a alcunha ternurenta de “A Gorda”.

Era filha do rei português D. João V, filho de D. Pedro II, e portanto sobrinha-neta de Catarina de Bragança. Mas não chegaram a conhecer-se uma à outra, pois Bárbara nasceu em 1711, sete anos depois da morte da tia-avó. Como a mãe, Maria Ana de Áustria, falava alemão, a garota ouvira essa língua em pequena, mas também falava francês e italiano, os idiomas “cultos” na época. Tocava cravo e compôs peças para este instrumento, e era grande apreciadora de pintura e de escultura.

Quando tinha 17 anos, Bárbara foi entregue aos espanhóis, enquanto a princesa Mariana Vitória, filha de Filipe V, era recebida pelos portugueses. Bárbara casar-se-ia com o príncipe Fernando, herdeiro do trono do país vizinho, e Mariana Vitória com o príncipe D. José, futuro rei de Portugal. Estas uniões tinham sido decididas como garantia da paz entre os dois reinos, cujo relacionamento não era dos melhores. Portugal envolvera-se pouco antes na Guerra da Sucessão de Espanha. Quer dizer, quando o rei espanhol Carlos II morreu sem deixar descendentes, apresentaram-se dois candidatos ao trono: o arquiduque Carlos de Áustria e Filipe de Bourbon, neto de Luís XIV de França. Ao princípio, Portugal alinhou com a Espanha e a França do lado de Filipe, enquanto a Inglaterra, a Holanda e a Áustria apoiavam Carlos, mas, quando este último prometeu ceder-nos algumas cidades fronteiriças mal conquistasse o trono espanhol, passámos para ao lado dele. Acabou por triunfar o partido de Filipe de Bourbon, que reinou em Espanha com o nome de Filipe V. A paz luso-espanhola foi assinada em 1715, tinha Bárbara 4 anos.

Pouco antes, haviam sido descobertas importantes minas de ouro na colónia portuguesa do Brasil. Muita gente partiu para lá e enriqueceu, mas todos eram obrigados a pagar ao Estado uma quarta parte do que achassem. O erário encheu-se e Bárbara foi considerada “um bom partido” pelos espanhóis, contemplados com um excelente dote.

Bárbara e Fernando não conseguiram ter filhos. Talvez por carregar esse desgosto, Bárbara comia demasiado e engordava… Podia não ter feito mais nada além de comer e de tocar e ouvir música, mas fez: lançou a ideia de se fundar em Madrid um grande museu de arte que viria, depois, a ser o famoso Museu do Prado.

Morreu não muito depois, com 46 anos, vitimada por um ataque de asma. Fernando VI só lhe sobreviveu um ano. Gostava tanto da sua gorducha que mergulhou em depressão e… foi ficando cada vez mais magro. Quando tinha 17 anos, Bárbara foi entregue aos espanhóis, enquanto a princesa Mariana Vitória, filha de Filipe V, era recebida pelos portugueses

Lar, doce lar
Aos 46 anos – e passados 22 após a sua chegada a Inglaterra – Catarina enviuvou. A bem dizer, a ela pouco importava que Carlos II estivesse morto ou vivo. Certo é que ainda se deixou ficar na loira Albion durante mais sete anos, durante o relativamente breve reinado do cunhado Jaime II, o tal rei católico irmão de Carlos. Não regressou logo porque era a rainha viúva, o que correspondia a uma espécie de título, mas também porque andava envolvida em trapalhadas judiciais devido a uma questão de dinheiro a que se achava com direito e que ainda não lhe fora pago. Apreciar muito o “vil metal” nem sempre é uma grande qualidade, dependendo dos pontos de vista…

Escusado será insistir na tecla de que Jaime sucedera a Carlos, porque Catarina não tivera filhos, e de que o irmão do rei era o familiar mais próximo do falecido soberano, ou seja, o seu sucessor legítimo – uma vez que os filhos bastardos (e Carlos possuía vários) não eram tidos em conta para o caso. O pior, para Catarina, foi que Jaime, por ser católico, não tardou muito a ser expulso do trono pela sua filha Ana e pelo primo, e depois marido, Guilherme de Orange, líder político e militar das Províncias Unidas (Países Baixos), num golpe de Estado apoiado pela burguesia e pelo povo em geral que os ingleses chamam a “Revolução Gloriosa”. Catarina viu então que tinha chegado a hora de fazer as malas e regressar a Portugal.

Aos 52 anos, lembrava-se ainda bem do mal-estar físico que lhe causara a viagem marítima de ida, três décadas antes, e desta vez viajou por terra, atravessando a França e a Espanha. Chegou a Lisboa, com as ancas doridas dos solavancos da carruagem e coberta de pó das estradas, no princípio de 1693. O rei português D. Pedro II, seu irmão, que ocupava o trono desde o triunfo da conspiração que derrubara Afonso VI, irmão de ambos, foi esperá-la ao Lumiar, um sítio naquele tempo considerado algo distante da capital.

Mas onde haveria de viver em Lisboa a mulher que fora rainha de Inglaterra? Seria digno pedir ao irmão que lhe disponibilizasse um quarto no Paço da Ribeira? Isso não parecia de bom-tom. Depois de ter saltitado de residência em residência, aos 54 anos (o que na época era bastante) mandou, então, construir uma casa própria. E assim se ergueu o Palácio da Bemposta, perto do Campo dos Mártires da Pátria (antigo Campo de Santana), onde hoje fica a sede da Academia Militar. O nome da rua para a qual dá a fachada do edifício continua a ser, ainda nos nossos dias, Paço da Rainha. Na maior parte dos casos, os lisboetas pronunciam este nome desconhecendo de que rainha se trata.

Catarina não se retirou da política depois do seu regresso. Com efeito, e embora levasse uma vida tanto quanto possível recatada, ainda foi regente de Portugal por duas vezes – a primeira quando D. Pedro II se ausentou de Lisboa numa expedição militar à Beira, por altura da Guerra da Sucessão de Espanha, e a segunda quando este mesmo rei esteve doente. E parece que se saiu bem, até porque “chá” não lhe faltava.

Em 1703, dois anos antes de morrer, Catarina manifestou-se favorável à assinatura do Tratado dos Panos e dos Vinhos, mais conhecido por Tratado de Methuen, um célebre acordo luso-britânico pelo qual os portugueses se comprometiam a importar os têxteis de Manchester e, em contrapartida, os britânicos a consumir os vinhos de Portugal, sobretudo do Douro. Aqui, a palavra “britânicos” pode já ser utilizada com rigor em vez de “ingleses”, pois o Reino Unido fora fundado no ano anterior. Quanto ao nome “Methuen”, este era o apelido do diplomata britânico negociador do acordo.

A economia portuguesa ficou a partir de então muito dependente da britânica, e a incipiente indústria têxtil da Covilhã condenada à nascença. Mas foi também nessa altura que se “inventou” o vinho do Porto tal como hoje o conhecemos, com aguardente adicionada – para permitir a conservação sem alterações durante as agitadas viagens por mar até à Grã-Bretanha. Este negócio foi, desde logo, regido e controlado pelos ingleses que se fixaram em força no Porto e ali fundaram companhias vinícolas. Cem anos depois, as invasões napoleónicas de Portugal e a ausência da Corte no Brasil seriam pretexto para que os nossos nada desinteressados parceiros cá se instalassem militar e politicamente. Com muitos séculos de existência, a aliança luso-britânica foi sempre uma faca de dois gumes que normalmente cortou melhor do lado inglês.
A nossa Catarina, essa, como se vê, tornara-se um inglesada. Quem sabe se, nos melancólicos entardeceres no seu paço da Bemposta, ao som das rezas dos frades e da criadagem, não sentiria saudades dos frios e escuros corredores de Whitehall, onde fora outrora tão infeliz…

A rainha de Nova Iorque
Atravessemos agora o Atlântico, coisa que Catarina nunca fez e que, se o tivesse feito, a teria deixado decerto muito enjoada.

Toda a gente conhece, por lá ter estado ou por dele ter ouvido falar, o bairro, ou condado (county) de Queens, em Nova Iorque. Diz-se que a rainha (queen, em inglês) a que esse nome se refere é a nossa Catarina. Não existe a certeza absoluta, mas como o local foi povoado pelos europeus, em 1683, e nessa altura pertencia à Inglaterra, a tal rainha deve mesmo ser ela.

Em 1983, um grupo de portugueses residentes nessa zona de Nova Iorque teve a iniciativa de fazer erguer uma estátua a Catarina. Foi, para esse efeito, aberta uma subscrição e reunida uma avultada quantia. O monumento, de grandes dimensões (um terço da altura da Estátua da Liberdade), chegou mesmo a ter projeto e maqueta, da autoria de Audrey Flack, mas não chegou a ser erguido no local previsto, à beira da baía.

Três ordens de razões tornaram inviável essa realização. Primeiro, não havia a certeza absoluta de que a queen a que se refere o nome do county fosse de facto Catarina. Depois, muita gente, sobretudo de ascendência irlandesa, não achou correto erigir na cidade (e nos Estados Unidos da América em geral) uma estátua dedicada a uma rainha de Inglaterra. Finalmente, e talvez se trate da principal razão, a população norte-americana de origem africana criticou acesamente, e com fundamento, o papel ativo desempenhado tanto pelos ingleses como pelos portugueses no antigo – e triste – tráfico de escravos. E agora que as estátuas tanto estão na ordem do dia – na sequência do derrube, por manifestantes, de algumas delas em vários pontos do mundo – e relacionadas precisamente com o tráfico negreiro, a escravatura e o domínio europeu de outras regiões do globo, seria verdadeira impensável erguer tal estátua à rainha consorte de Inglaterra, mulher de Carlos II. Catarina poderá não terá culpas no cartório, mas não é de excluir que as tenha… Ou seja, existe a forte possibilidade de a nossa investidora nata ter lucrado pessoalmente com esse tráfico.

Mesmo assim, teve direito a um pequeno monumento existente no Parque das Nações, em Lisboa, não muito longe da Ponte Vasco da Gama, construído segundo o projeto pensado para Nova Iorque mas em escala reduzida. Ter-se-á Catarina em vida deslocado alguma vez àquele local, junto do estuário do Tejo? É pouco provável, mas a muito relativa “eternidade” de toda a História humana se encarregará de a deixar a ele associada, tal como aos frios corredores de Whitehall ou às melancólicas salas do paço da Bemposta, vulgo Paço da Rainha. E também à memória popular que guardou ciosamente o seu nome e, bem ou mal, o associa ao chá, ao tabaco, aos verdes prados ingleses – e à tristeza, em geral. 

A mulher mais bela

Isabel de Portugal foi também imperatriz do Sacro Império, por casamento com Carlos V (Carlos I de Espanha)



Os súbditos de Carlos I de Espanha não o consideravam um bom rei, mas a rainha era adorada pelos seus dotes de boa administradora. Além disso, havia quem achasse Isabel a mulher mais bela do seu tempo. Ora, esta Isabel era portuguesa.

Conhecemos a sua cara porque Ticiano lhe pintou o retrato. Carlos gostava dela, mas deixava-a para trás, durante as guerras em que se envolvia e as viagens que fazia pelos seus domínios. Nessas ocasiões, Isabel chamava a si as tarefas administrativas. As terras que governava com o marido eram imensas. O filho varão do casal, Filipe, que mais tarde herdaria o trono, gabar-se-ia de reinar num império onde o Sol nunca se punha, tão afastadas eram as longitudes que abrangia.

O casamento de Isabel com Carlos representava a união das coroas dos dois países com maiores impérios coloniais e interessava a ambas as partes. Eram primos direitos (o que não surpreende, pois os reis são quase todos familiares uns dos outros) e quando ficaram noivos, em 1525, Carlos já era não só rei de Espanha como também imperador do Sacro Império Romano. Por isso, Isabel foi também – tal como já sucedera a Leonor de Portugal, no século anterior – imperatriz do Ocidente.
Quando os dois se conheceram, tiveram decerto algumas dificuldades em comunicar, visto que Carlos – que, na verdade, se chamava Karl e nascera em Gant, na Flandres, atual Bélgica – mal falava castelhano, e muito menos entenderia o português. Carlos foi bafejado pela sorte, pois nasceu herdeiro das três principais dinastias europeias: a de Habsburgo, a de Valois-Borgonha e a de Trastâmara. Podia não se ter mudado para a Península Ibérica, mas fê-lo porque a Espanha era a parte mais importante dos territórios que ele reinava e que incluíam a Alemanha, a Áustria, os Países Baixos, a Borgonha e quase toda a Itália, além dos novos mundos “descobertos” na América. Embora fosse o primeiro rei de Espanha a chamar-se Carlos, e por isso lhe caber a designação de Carlos I, ficou também conhecido por Carlos V, visto ter sido o quinto soberano do Sacro Império com este nome.

Isabel, além de bonita, era culta. Educada no espírito do Renascimento, sabia latim, lia os autores clássicos e possuía uma boa biblioteca. Filha do rei D. Manuel I, nasceu em 1503, em Lisboa, e tinha 22 anos quando partiu para Espanha. O primeiro filho do casal foi o já referido Filipe. Seguir-se-iam mais cinco.

Isabel, que como se vê estava quase sempre “de esperanças”, morreu de parto aos 35 anos. Carlos sobreviver-lhe-ia mais 17, mas não voltaria a casar-se. Quando soube da morte da mulher, foi encerrar-se durante um mês num convento. Esta, sim, foi uma história de amor.

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