Zorb sempre gostou de hambúrgueres, de passear nas ruas do bairro da Lapa, em Lisboa, ou junto ao rio, com a tutora, Inez Vaz Carvalho. O labrador, de 13 anos, criou desde pequeno o hábito de a seguir como uma sombra: se Inez ia à cozinha, ele ia atrás; se ela voltava para o sofá, ele regressava também; e, quando Inez ia à casa de banho e fechava a porta, lá ficava ele, do lado de fora, à espera. Foram 13 anos assim, felizes, para os dois.
Foi em agosto de 2015 que tudo se precipitou. Inez Vaz Carvalho, hoje com 60 anos, estava de férias no Algarve quando o filho lhe ligou com a má notícia: “O Zorb não está bem. Não se mexe, está sempre deitado.” Regressou a Lisboa numa correria, pegou nele com a ajuda do filho e levou-o ao veterinário, onde recebeu outra má notícia: o diagnóstico mais provável era uma leucemia galopante.
Depois da imobilidade das pernas, chegariam os problemas nos pulmões, com dificuldades respiratórias. “O médico disse que o mais provável era que ele já não durasse muitos dias. Falou em eutanásia, mas eu não estava preparada para aquilo”, conta Inez. Então, assim como o carregaram para o consultório, ela e o filho acabaram por carregá-lo de novo até casa.
Quando chegou, a primeira coisa que fez foi dar-lhe hambúrgueres. Comeu-os, mas mal. No resto do dia e da noite, ao ver Zorb deitado e imóvel, de fralda, sem reagir a nada, pensou que talvez estivesse a ser egoísta em querer mantê-lo assim. Regressou ao veterinário no dia seguinte, para o eutanasiar. “Foi horrível, não senti alívio nenhum. Mas reconheço que foi o melhor, apesar de difícil.”
Momento certo?
Ter um papel ativo na morte de um animal “é sempre uma decisão dolorosa e que provoca sentimentos ambivalentes”, esclarece Sofia Gabriel, psicóloga clínica responsável pela consulta especializada de apoio ao luto na Mind – Instituto de Psicologia Clínica e Forense. “Por um lado, há o desejo de terminar com o sofrimento do animal, mas, por outro, o medo do próprio sofrimento, o sentir que ainda não estamos preparados, que queremos mais tempo com ele.” A psicóloga refere ainda que a tendência para pensar que existe um “momento certo” para concretizar a eutanásia leva a pensar que também existe um “momento errado”, o que faz aumentar o medo do arrependimento e a ansiedade.
Esta é uma decisão difícil, mas cada vez mais frequente. Com os avanços da medicina veterinária e os cuidados que os tutores lhes dedicam, os cães e os gatos vivem cada vez mais tempo. No entanto, acaba sempre por haver um dia em que as soluções de tratamento se esgotam e as doenças que causam sofrimento chegam.
“Por volta dos 7, 8 ou 9 anos, os animais alcançam a terceira idade. Depois, vem a velhice e, com ela, doenças semelhantes às nossas: problemas cardíacos, renais, oncológicos e, por vezes, uma espécie de demência senil, que se assemelha às nossas demências, em que os animais perdem capacidade de locomoção, de comer. São coisas que podemos controlar durante algum tempo, mas não curar”, explica o médico veterinário Ricardo Vintém.
Na Primavet, a sua clínica, é feita, em média, uma eutanásia a cada 15 dias. O número tem aumentado nos últimos anos e, para Ricardo Vintém, por boas razões: a evolução da mentalidade com que os humanos encaram os animais. “As pessoas têm uma ligação emocional com eles; fazem parte da família. É por isso que tentam fazer o melhor possível pelos animais. E, no fim de vida, isso implica poupá-los a um sofrimento desnecessário”, sublinha o médico.
Uma morte tranquila
Quando Inez Vaz Carvalho chegou a casa, depois da eutanásia de Zorb, tinha à sua espera Bi, a sua outra cadela, que a ajudou a superar o luto. Estava longe de o imaginar, mas, anos depois, teve de passar pela mesma decisão com ela, embora num processo muito diferente. Foi em abril de 2021, já tinha Bi 16 anos, que começaram os primeiros sinais: “Andava desnorteada, caminhava sem rumo, parecia que não me ouvia.” O médico começou por pensar que se tinha tratado de um AVC e medicou-a. Ela pareceu melhorar, mas por pouco tempo. “O veterinário acabou por dizer que seria uma espécie de Alzheimer dos cães.”
Progressivamente, deixou de andar; depois, de comer e beber. “Era eu que a mudava de posição de hora a hora, fazia-lhe umas papas para lhe dar à colher, dava-lhe água por uma seringa. Mas chegou uma altura em que parece que ela se esqueceu de como engolir. E não me conhecia.”
Quando Inez decidiu proporcionar uma morte tranquila a Bi, estava mais adaptada à ideia. “Com o Zorb, foi mais doloroso, talvez por ter sido repentino. Com a Bi, como cuidei dela durante quatro meses e fui vendo o processo de degradação, acho que me fui preparando, e acabou por ser mais pacífico para mim.”
A isto se chama luto antecipatório: um processo que começa a desenrolar-se antes da perda. “A pessoa vai reconhecendo e sofrendo com as inúmeras perdas simbólicas: a perda do animal como o conhecia até à data, a degradação da saúde física; o desaparecimento das rotinas – por exemplo, os passeios e as brincadeiras; a perda da sensação de procura do tutor pelo animal”, explica a psicóloga Sofia Gabriel.
“Em Portugal, não há dados, mas, no Reino Unido, existe um estudo que mostra que a esmagadora maioria dos animais de companhia acaba por ser eutanasiada”, conta Manuel Sant’Ana, médico veterinário e especialista europeu em bem-estar animal, que é, desde 2016, vice-presidente do Conselho Profissional e Deontológico da Ordem dos Médicos Veterinários.
O trabalho que refere, publicado em 2021, na Scientific Reports, da Nature, analisa os dados da morte de uma amostra de 29 865 cães, concluindo que 89,3% foram eutanasiados e apenas 8,3% morreram sem assistência. “A medicina veterinária lida com a eutanásia numa base diária”, diz o especialista. “Fá-lo porque temos o dever de fazer cessar o sofrimento, e chegamos quase sempre a um ponto em que é o único tratamento. E friso: a eutanásia é um tratamento – final, mas um tratamento, ainda assim.”
O código deontológico do médico veterinário, que entrou em vigor em setembro de 2021 e no qual Manuel Sant’Ana trabalhou, inclui, no seu artigo 21º, a eutanásia, estabelecendo que a decisão deve ter em conta a saúde pública, o estado de saúde do animal e o seu bem-estar, além dos legítimos interesses do seu detentor.
Os veterinários particulares, ao contrário dos municipais, têm liberdade de decisão conforme a sua avaliação e os seus valores. Há os que concedem em eutanasiar por razões de comportamento, fatores de conveniência ou insuficiência económica dos tutores; outros, no extremo oposto, assumem-se como objetores de consciência, recusando fazer o procedimento em quase todos os casos.
Os médicos veterinários estão entre as profissões que apresentam níveis de stresse e burnout dos mais elevados. O estudo “VetsSurvey”, de 2021, mostra que Portugal é um dos países onde se registam os índices mais altos, com 87% dos profissionais – médicos, enfermeiros e auxiliares veterinários – a reportar níveis muito elevados de stresse e fadiga de compaixão.
Na origem disto estão muitos fatores, mas a prática da eutanásia é um deles. Há uns anos, Ricardo Reis Santos fez um conjunto de entrevistas a médicos veterinários que tinham decidido abandonar a profissão e estudar medicina humana. “Uma das razões apontadas foi justamente a árdua tarefa de praticar eutanásia a um grande número de animais, sobretudo em situações em que os motivos não estavam relacionados com a falta de opções terapêuticas, mas, sim, com a falta de meios financeiros por parte dos clientes.”
Há decisões difíceis também para os médicos, e o veterinário Ricardo Vintém reconhece que dantes havia situações complicadas com frequência. Por exemplo, pessoas que queriam fazer o procedimento porque ter um cão já não era conveniente. “Se recusávamos, diziam coisas como ‘Então, vou atirá-lo da ponte’. Ficava-se numa situação muito difícil. Faço o quê? Eutanasio sem estar doente? Arrisco que o animal vá sofrer mais e ter uma morte horrível, se não o faço? Isso hoje já não acontece, pelo menos aqui.”
O adeus
Independentemente do motivo, há boas práticas a ter em conta para o procedimento. “A primeira coisa é o consentimento informado”, explica Manuel Sant’Ana. Que, esclarece, “não é só assinar um papel: é compreender, explicar como é que o procedimento será feito, haver um diálogo e uma decisão partilhada”.
Depois, é preciso garantir condições de dignidade. “É um momento muito duro. O dono pode querer estar presente ou não – depende da pessoa, da relação com o animal e do estado em que este se encontra –, mas deve haver condições mínimas: ser feito numa sala sossegada, sem interrupções, com tempo e privacidade, para, no caso de estar presente, a pessoa poder expressar as suas emoções com tranquilidade e em privado.”
O tutor sofre quase sempre. O animal não. “A ideia é que deixe de sofrer. Eutanásia significa ‘a boa morte’”, nota. O procedimento “normalmente envolve uma sedação, embora não seja obrigatório, que deixa o animal inconsciente, e, depois, é administrado um anestésico, que, naquela dose muito elevada, provoca a morte por paragem cardiorrespiratória quase automaticamente. É muito rápido.”
As perdas não são todas iguais, nem com as pessoas, nem com os animais. “Se tenho um cão que uso como cão de guarda, é provável que, quando o perder, a resposta seja fraca. Fico triste, mas rapidamente o substituo, porque, para mim, o que era importante era a tarefa que ele desempenhava e não o cão em concreto”, explica Ricardo Reis dos Santos, biólogo e investigador do Instituto de Saúde Ambiental da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, que se tem dedicado a estudar questões relacionadas com o luto de animais de companhia.
Por outro lado, observa: “Se tenho um cão que me acompanhou durante o processo de divórcio ou que era da minha querida avó, que, antes de morrer, me pediu para cuidar dele, então este animal significa muito para mim.”
É por isso que a perda de um animal pode ser uma experiência emocionalmente violenta. “Para algumas pessoas, esta é uma das perdas mais dolorosas das suas vidas. Fazem o luto da relação perdida com base em sentimentos de intimidade e proximidade emocional, que podem ultrapassar a relação construída com um ser humano”, esclarece Sofia Gabriel.
Atualmente, o luto de um animal de companhia, embora envolva algum estigma, é, apesar de tudo, mais bem aceite do que há décadas. “Há 20 anos, se quisesse fazer um funeral para o meu cão ou se pedisse ao meu chefe que tolerasse a minha ausência durante dois dias para me recompor, seria socialmente censurado”, refere Ricardo Reis dos Santos. Hoje, “são membros da família, (…) gozam de um estatuto jurídico que lhes reconhece direitos; (…) existem funerárias e cemitérios para animais”, exemplifica.
Em casa de Milene Monroy, 38 anos, há um canto da sala onde bate o sol durante grande parte da tarde. Aí, há uma pequena prateleira com uma planta e uma caixinha, que é, na verdade, uma urna. Lá dentro está o que resta de Puskas. “Ele adorava aquele canto; era onde brincava e fazia grandes sestas ao sol. Assim, de certa forma, está lá a apanhar sol na mesma.”
Puskas foi um gato muito desejado, acompanhou-a em momentos difíceis e no processo de crescimento da família. Durante a pandemia, foi diagnosticado com uma insuficiência renal, e, durante dois anos, Milene e o marido fizeram tudo o que estava ao seu alcance para lhe dar uma vida de qualidade: medicação diária e administração de soro subcutâneo em casa, temporadas de internamento que lhes custaram muito a pagar. “Mas, no dia 28 de julho de 2022, tivemos de ceder à doença. O meu marido diz, e é verdade: apesar de tudo, tivemos dois anos de despedida, porque foi um milagre que ele tenha aguentado tanto tempo.”
Desde o diagnóstico que Milene sabia o que ia acabar por acontecer. “Lembro-me de que pensei logo que não me queria separar dele. Não tenho um quintal para o enterrar e comecei a pesquisar opções de cremação individual para ficar com as cinzas.” No dia da eutanásia, ela e o marido estiveram presentes, pedindo o dia no trabalho, apesar de a lei portuguesa ainda não consagrar esse direito.
Nos dias que se seguiram, Milene garante que lhe parecia ouvir miar em casa; chorava se via restos de pelo alaranjado no sofá, chamava-o e só depois se lembrava de que ele já não estava lá. “Não sei se fiz bem, mas acabei por ir buscar dois gatinhos ao gatil no fim dessa semana – a Nala e o Simba.” E a casa voltou a encher-se.
Como lidar com o processo?
Sofia Gabriel, psicóloga clínica responsável pela consulta especializada de apoio ao luto na Mind – Instituto de Psicologia Clínica e Forense, deixa alguns conselhos práticos para lidar com a eutanásia de um animal de companhia
1. Estabelecer uma data com o veterinário para a eutanásia, o que permite tornar real a tomada de decisão e, dentro do possível, aproveitar os últimos momentos.
2. Pensar sobre a eutanásia como o último recurso e ter presentes as desvantagens de adiar a decisão: por exemplo, aumentar o sofrimento do animal. Em termos emocionais, é difícil aceitar que este é um ato de amor e altruísmo, mas, racional e objetivamente, é.
3. Planear, individualmente ou em família, o momento de despedida: quem estará presente? Quem é o primeiro e o último a dizer “adeus”? Pensar sobre o “último dia” ajuda a não ter medo de beijar e abraçar o animal, a pedir-lhe desculpa, a sentir que dissemos “adeus”.
4. Pensar no futuro. Refletir sobre os rituais do luto importantes para a família e para cada um dos membros. Isto inclui, por exemplo, construir um livro de memórias, plantar uma árvore no jardim predileto do animal, fazer uma doação de medicamentos ou libertar as cinzas num sítio especial.
5. Definir uma rotina de autocuidado e identificar estratégias de regulação emocional. Incluem–se aqui cuidados com a rotina de sono e alimentação, praticar exercício físico e usar técnicas de distração, como ler, ver uma série ou cozinhar.
O mundo dos canis
► A lei nº 27/2016 estabeleceu medidas para a criação de uma rede de centros de recolha oficial de animais (CROA), bem como a proibição do abate de animais errantes, como forma de controlo da população, tendo sido fixado um período transitório de dois anos para adaptação, que terminou em setembro de 2018.
► Esta lei e uma portaria subsequente (146/2017) estabelecem critérios muito limitados para a eutanásia animal nestes centros de recolha, os chamados canis e gatis municipais. “É um absurdo. Um médico veterinário, na sua clínica, pode decidir de acordo com os seus critérios, mas o veterinário municipal não”, argumenta Manuel Sant’Ana, vice-presidente do Conselho Profissional e Deontológico da Ordem dos Médicos Veterinários. A lei, defende o responsável, faz com que “os veterinários municipais se sintam muito pressionados. São por vezes ameaçados e têm medo de fazer o que é melhor para o animal”.
► Isto, alega, criou vários problemas sem solução à vista: enormes matilhas de ruas, que não podem ser acolhidas porque não há espaço; a sobrelotação dos canis e gatis e o sofrimento de muitos animais, apesar de a lei considerar que não é sofrimento suficiente para poderem ser eutanasiados. “Há animais doentes que o canil não tem capacidade de tratar, que não estão socializados, porque se encontram há 15 anos fechados numa jaula e não são adotáveis. Mas, como não estão com uma doença terminal que cause sofrimento irrecuperável – ainda –, vão ficar lá. Ao mesmo tempo que são mantidos, “os centros não conseguem aceitar outros mais jovens e saudáveis, que podiam ser adotados”, defende o também especialista europeu em bem-estar animal.
(Artigo publicado originalmente na VISÃO Saúde de junho/junho de 2023)