A detentora de mais recordes do atletismo nacional, no somatório de competições ao ar livre e em pista coberta, participou em três Jogos Olímpicos. Naide Gomes foi a Sydney 2000 em representação de São Tomé e Príncipe, onde nasceu, e representou Portugal em Atenas 2004 e em Pequim 2008, falhando Londres 2012, por lesão, antes de encerrar a carreira no ano anterior ao Rio de Janeiro 2016. Nunca ter subido ao pódio olímpico é a grande desilusão (foi sexta na Grécia, no heptatlo), mas colecionou mais de uma dezena de medalhas, entre Europeus e Mundiais. Aos 44 anos, a agora fisioterapeuta e personal trainer elogia o desempenho de Portugal em Paris 2024 e diz que há matéria-prima para ir mais além, mesmo tendo sido esta a melhor participação de sempre.
O que mais apreciou nestes Jogos?
Obviamente, os resultados dos portugueses. Foi uma das melhores participações de todos os tempos, senão a melhor, se não estou enganada. Para um país pequeno como o nosso, podemos estar superorgulhosos dos nossos atletas.
E mais?
Sigo muito o atletismo, mas este ano consegui acompanhar de perto a ginástica. A Simone Biles, a Rebeca Andrade… Foi fantástico. A rivalidade faz parte da competição, mas o companheirismo que elas demonstraram umas com as outras foi, para mim, o ponto mais alto. No desporto, não precisamos de ser inimigos, podemos dar-nos todos bem, e isso viu-se na ginástica. Por outro lado, nunca tinha visto ciclismo de pista, mas desta vez, porque tínhamos lá os portugueses, acompanhei do início ao fim. Desconhecia completamente as regras e passei a conhecer o básico da modalidade.
O mesmo se terá passado com a maioria dos portugueses.
Foi preciso eles ganharem a medalha de prata e depois a de ouro nuns Jogos Olímpicos, mas o Iúri Leitão já tinha sido campeão do mundo. Infelizmente, o nosso país funciona assim, é só pelos resultados e, se calhar, só nos Jogos Olímpicos, porque a tudo o resto que os atletas conseguem não se dá o devido valor.
Foram essas proezas no ciclismo de pista que mais a surpreenderam na equipa nacional?
Sem dúvida, porque eu sabia que a Patrícia Sampaio, se estivesse bem, conseguiria trazer uma medalha. A determinação com que ela entrou levou-me a pensar que poderia até chegar ao ouro. Não foi desta vez, mas acredito que poderá lutar por esse objetivo na próxima. De resto, não tive grandes surpresas, mas também achei incrível o resultado da Salomé Afonso nos 1 500 metros, mesmo não tendo conseguido o apuramento para a final. Acabou por fazer uma corrida brilhante e baixou, pela primeira vez, dos quatro minutos, realizando a segunda melhor marca nacional de todos os tempos [só atrás do recorde de Carla Sacramento]. Dos estrangeiros, gostava de destacar a campeã da maratona, a neerlandesa Sifan Hassan, refugiada da Etiópia, que também foi medalha de bronze nos 5 000 m e 10 000 m. Para mim, foi a figura destes Jogos Olímpicos.
Ela bateu o recorde olímpico da maratona, mas recordes do mundo caíram apenas 19. Algum a impressionou mais?
Talvez o do chinês Pan Zhanle na natação [46,40 segundos nos 100 m livres], até porque, segundo os nadadores, a pouca profundidade da piscina tornava quase impossível haver recordes do mundo.
E o de Armand Duplantis no salto com vara [6,25 metros]?
Esse já o esperava e acredito que ele pode saltar muito mais. Está só a fazer render os centímetros, um a um. É um atleta incrível.
Voltando aos portugueses, quem seguiu mais de perto?
Todos os do atletismo, sempre que passavam na televisão, e a Patrícia. Vibrei muito com ela porque a conheço. Sou fisioterapeuta no Sporting e trabalho muito com judocas, por exemplo o Jorge Fonseca e a Maria Siderot, que é muito amiga dela. A Patrícia vai lá muitas vezes e também fizemos um curso juntas no início deste ano.
De quê?
Foi um curso de Marketing e Empreendedorismo, através da Associação de Atletas Olímpicos. Mesmo estando a treinar, com estágios e tudo o mais, ela foi a mais aulas do que eu [Risos].
Portugal obteve o primeiro ouro fora do atletismo e os 14 diplomas abrangeram seis modalidades. É sinal de que o desporto nacional está, aos poucos, a tornar-se mais eclético nos bons resultados?
É um sinal, sim, muito embora ainda haja poucos apoios. Mas, com o que existe, há mais modalidades e mais atletas a investirem e obviamente que os resultados aparecem. Acredito piamente que Portugal tem talentos fora de série, a quem só é preciso dar oportunidades.
A que apoios se refere?
Por exemplo, é muito difícil um atleta de alta competição fazer a sua formação universitária. Passei por isso. Foi muito difícil terminar o curso enquanto estava no ativo, porque não havia a possibilidade de conciliar os estudos em função dos treinos, dos estágios, das competições, das viagens, como se faz nos Estados Unidos.
Que medida poderia ajudar?
Um acordo com as universidades para que haja uma turma ou um professor que permita fazermos as disciplinas quando temos disponibilidade para as encaixar na atividade desportiva. Haveria muito mais atletas a investir.
Os centros de alto rendimento, de novo em alta por causa do sucesso do ciclismo de pista, são um dos segredos das medalhas olímpicas?
Certamente são um dos segredos. Havendo condições, é meio caminho andado para o sucesso. O de ciclismo de pista é em Anadia, nem sempre fica perto de casa, mas chama mais pessoas para a modalidade.
O de canoagem é em Montemor-o-Velho, o que também implica dias longe da família, sempre que há estágios.
Tem de se mudar a vida toda para se conseguir treinar neste tipo de complexo. O Fernando Pimenta tocou nesse ponto. Fiquei muito triste por ele. Pelo trabalho que tem vindo a desenvolver e pelos resultados que tem alcançado, merecia ganhar o ouro. Ao vê-lo a chorar, percebo-o perfeitamente. Passamos anos e anos a dedicar-nos, abdicamos de estar com a família e não vamos às festas de aniversário, em detrimento do nosso sonho, e depois, na hora H, as coisas não acontecem como desejávamos. É muito frustrante.
Esperava mais de atletas como ele, Jorge Fonseca ou Diogo Ribeiro, tendo em conta o que já atingiram?
Os Jogos Olímpicos são os Jogos Olímpicos, há imensos atletas com o mesmo objetivo. E há dias e dias. Estive lá e não poderei nunca, de maneira alguma, julgar um atleta. Eu também era favorita, líder do ranking mundial, e falhei. Que moral tenho para lhes apontar algo? Nem pensar. Quero é dizer-lhes que este correu mal, mas continuem a acreditar e a trabalhar, que outros sonhos virão. Só estar lá já é uma vitória que não é para todos. Obviamente, eles sentem a frustração. Mais do que ninguém, queriam melhores resultados, e não há quem sofra o que eles sofrem.
Como se lida com a desilusão de não conquistar uma medalha, tendo esse legítimo objetivo?
Eu rodeei-me de pessoas positivas, principalmente a minha família e o meu treinador, que acreditavam em mim e não iam criticar-me. Foi um ponto de partida, porque eu própria tive de me reerguer e acreditar nas minhas capacidades. Não podia, de maneira nenhuma, ser definida por aquele momento. Falhei comigo própria, mas não podia castigar-me a esse ponto. Custou imenso, mas, enquanto temos saúde e duas pernas, toca a andar e vida para a frente.
Esse momento, para si, chegou em Pequim 2008, quando falha a final do salto em comprimento, tendo a melhor marca mundial do ano. Recebeu muitas críticas?
Os portugueses foram muito bonzinhos comigo. Há muita gente que não sabe, porque eu não quis arranjar desculpas, mas um mês antes eu tinha partido o calcanhar, tanto que pensámos em não ir. Com os médicos, foi decidido fazermos tratamentos na aldeia olímpica e tomar a medicação, mas eu não conseguia treinar nem andar, por causa das dores. Para espanto de todos, uma ressonância magnética revelou outra fratura no mesmo pé. Tudo isto mexeu muito comigo. Saber que o sonho estava tão perto e que, se calhar, não ia conseguir. No dia da qualificação, deram-me anestesia e estava sem dores, mas, em vez de ter estado focada no meu objetivo, nos dias que antecederam a prova, o meu foco era se devia ou não competir.
Para superar Pequim, apontou à medalha nos Mundiais do ano seguinte. Acabou desiludida com o quarto lugar, mas viria a receber o bronze por essa prova dez anos depois, por desqualificação da segunda classificada, devido a doping. Tarde demais?
Três semanas depois de Pequim, tive de sair do poço para voltar a competir em meetings. No fim da época, havia a finalíssima desses meetings, que valia um prémio chorudo de 70 mil dólares. Mesmo lesionada, ganhei-o, mas, se me perguntar se o trocaria pela medalha olímpica, obviamente que sim. Reergui-me, mas até hoje lembro-me de tudo, não há como esquecer. Entretanto, nos Mundiais de 2009, teria dado jeito a medalha de bronze. O tico e o teco andaram aqui na minha mente a debaterem-se com dúvidas sobre se conseguiria chegar à final. Acabei por fazer excelentes saltos e chorei porque não deram para a medalha, mas não foi traumatizante. Quando, em 2019, fui recebê-la a Doha, não teve o mesmo sabor. Tenho-a guardada, mas não me diz nada. Só a aceitei porque considero importante repor a verdade.
Cada vez mais atletas de topo admitem que precisam de ajuda psicológica para ultrapassar fases de maior desgaste mental. Alguma vez lhe aconteceu?
Olhando para trás agora, sinceramente, gostaria de ter sido ajudada, mas no meu tempo não havia esta oferta. Não se ouvia falar muito do psicólogo. Hoje em dia, todos os atletas são acompanhados o ano inteiro, em treino e em competição. Só no final da minha carreira é que a federação começou a disponibilizar e recorri a essa ajuda porque tinha rompido o tendão de Aquiles a dois meses dos Jogos de Londres 2012, fui três vezes operada, as dores continuavam e todos os dias saía de casa a pensar se valia a pena todo aquele sofrimento para tentar estar no Rio de Janeiro 2016. Foi muito importante para me ajudar a acabar com o martírio. Gostaria de sair pela porta grande, nos Jogos Olímpicos, mas não estava em condições.
Guarda alguma mágoa por nunca ter conquistado uma medalha olímpica?
[Hesita.] Não é mágoa, mas sinto que tinha todas as condições para a conquistar. Trabalhei tanto para a conseguir que era um prémio que podia ter dado a mim mesma e ao meu treinador. Devia isso a mim e a ele. Não consegui, paciência, consigo estar bem comigo própria. Há muito mais na vida do que medalhas olímpicas.
Como qualifica o quinto e o sexto lugares do Afonso Vilaça e do Ricardo Baptista no triatlo ou o quinto lugar do Gabriel Albuquerque na ginástica de trampolins e da dupla Carolina João e Diogo Costa na vela?
Excelentes. Alguns foram dos melhores resultados de sempre, sem esquecer a Vanessa Fernandes no triatlo, por isso estão de parabéns. São miúdos que foram para lá sem medo, que lutaram de igual para igual e que alcançaram belíssimos feitos. Quem dera a muita gente.
Portugal valoriza excessivamente as medalhas ou o quarto lugar é mesmo o primeiro dos últimos?
É o primeiro dos últimos e não é valorizado, mas as pessoas têm de ter noção de que ser quarto nuns Jogos Olímpicos é excelente. Obviamente que toda a gente só quer medalhas, os próprios atletas quando o assumem já estão a matar os outros resultados, mas é excelente. Há muitos atletas a trabalhar para viver esses momentos, e a sorte também conta.
Pedro Pichardo, prata em Paris, referiu que falta cultura desportiva em Portugal e deu o exemplo do campeão olímpico dos 200 metros, Letsile Tebogo, que conquistou o primeiro ouro para o Botswana e foi recebido com uma enchente num estádio de futebol. Entende a mensagem dele?
Entendo plenamente. O nosso país tem cultura futebolística. O resto não importa muito. Nos Jogos Olímpicos, lá se lembram que afinal temos outros atletas. Enquanto não mudarmos isso, não há volta a dar. Mas, por exemplo, a Patrícia foi muito bem recebida e os ciclistas de pista tiveram uma chegada apoteótica no Norte. Também foi a primeira medalha de ouro para o Botswana e é normal que o povo fique em delírio.
O Estado português atribui 50 mil euros aos campeões olímpicos. É um prémio adequado?
Devia oferecer uma casa a cada campeão [Risos]. Era meio caminho andado para eles se dedicarem a 100%. Para deixarem de pensar como é que vão pagar uma casa se tiverem uma lesão grave. Termos uma vida estável, sem pensar nestes cenários, é uma mais-valia.
Poucos países oferecem uma casa.
Claro que 50 mil euros é uma grande ajuda, mas hoje em dia sabemos que não paga uma casa. É preciso ser-se muito bom atleta, ganhar várias medalhas, ter patrocinadores, e só assim é que se consegue. Além da casa, temos de pagar tudo o resto e pensar no futuro, porque a carreira acaba cedo. É muita coisa.
Pensava muito no pós-atletismo?
Pensava, tanto que nunca larguei os estudos. Tinha ganhado algumas medalhas e algum dinheiro, mas pensava que um dia isso acabava e depois o que é que eu ia fazer? Claro que por mim faria atletismo até aos 80 anos, mas tive de me precaver e um dos meus objetivos de vida foi sempre tirar um curso superior. No caso, de Fisioterapia.
Que é, precisamente, a sua área profissional, agora.
Além de mãe de dois meninos com 6 e 8 anos, sou fisioterapeuta e personal trainer. Como fisioterapeuta, trabalho no gabinete médico do Sporting, com atletas das modalidades. Para mim, é gratificante poder contribuir para os ajudar, também, do ponto de vista motivacional.
Agate de Sousa falhou a final do salto em comprimento em Paris, com uma marca muito abaixo do seu melhor. Ficou aquém das expectativas?
As marcas, por vezes, não interessam muito. Ali, naquele momento, é que temos de fazer acontecer. Se não estou inspirada e tudo corre mal, não há medalhas para ninguém. Ela tem muitos Jogos Olímpicos pela frente, é uma atleta fantástica. Dias antes da prova, falei com o treinador dela para desejar boa sorte e ele explicou-me que ela estava com uma lesão muscular, por isso dou-lhe os parabéns por ter tentado. É continuar o trabalho.
Acredita que será ela a roubar-lhe o recorde nacional do comprimento?
Acredito, sim. É uma questão de tempo. Se eu gostaria? Não. Mas os recordes são para ser batidos e eu quero é ver atletas portugueses a superarem-se nos palcos internacionais.
Termino com uma pergunta de algibeira: Quem é a atleta portuguesa detentora de mais recordes nacionais no atletismo?
Não sou eu?
É a Naide, sim. E quem se segue, já agora?
A Fernanda Ribeiro?
Não. Carla Sacramento.
Ainda cheguei a competir com ela e creio que a última competição em que estivemos juntas foi em 2002, em Munique.