A última vez que vimos o controverso jornalista britânico Piers Morgan titubear foi durante uma entrevista que ele fez a Bassem Youssef, sobre a guerra entre Israel e o Hamas. Indiferente ao seu misto de assertividade e agressividade habitual, o cirurgião cardíaco e comediante conhecido como “o Jon Stewart do Egito” conseguiu, com inteligência e humor, levá-lo a vacilar nas suas convicções.
Foi isso, pelo menos, o que nos pareceu a nós, espectadores do programa Piers Morgan Uncensored, disponível na TalkTV, na Fox Nation e na Sky News australiana. E, ainda agora, ao rever os excertos dessa entrevista que foram parar ao YouTube, viralizando rapidamente nas redes sociais, fica-se com a impressão de que, naquele dia, o entrevistador foi apanhado desprevenido pelo entrevistado.
Casado com uma palestiniana, Bassem Youssef sabe de perto o que se está a passar na Faixa de Gaza desde o início de outubro do ano passado. Sem se deixar enganar pela aparente bonomia de Piers Morgan, atacou pelo lado do humor – e ganhou.
Os portugueses lembram-se ainda do jornalista de outras lides. É difícil esquecer a sua entrevista a Cristiano Ronaldo, que antecedeu a saída do jogador do Manchester United, e que ainda hoje é adjetivada de “polémica”.
Por tudo isto, a muitos de nós dá algum gozo imaginá-lo a vacilar, ou mesmo a ser posto em cheque, na sua própria casa. Foi isso que aconteceu no verão desse mesmo ano, recorda-nos agora o El País, num artigo dedicado à arte do marriage sabbatical, apresentado assim mesmo em Inglês, porque a expressão foi cunhada por uma norte-americana (já lá vamos).
Os anglo-saxónicos são exímios a cunhar as tendências da sociedade com termos orelhudos. E, em meados de agosto de 2022, já Celia Walden – jornalista, colunista, escritora e mulher de Piers Morgan – conhecia a expressão de trás para a frente.
“Tirei uma licença sabática de seis semanas para o casamento – e fez maravilhas”, escolheu ela para título de uma crónica, no The Telegraph, em que discorre sobre o que a levou a passar um mês e meio separada do marido. “Sabe quando o seu computador fica dolorosamente lento sem qualquer causa aparente e a resposta é sempre ‘desligue-o da corrente elétrica e reinicie-o’? É isso que uma licença sabática conjugal faz”, compara. E explica:
“Não havia nada de errado. Não estávamos a ter falhas. Mas se pensarmos em como não era natural passar todas as horas do dia na companhia da nossa cara-metade durante aqueles longos meses [do confinamento], é um milagre que qualquer casal – casado ou não – tenha sobrevivido incólume. Há uma razão pela qual cinco casais amigos ou se separaram no auge da pandemia ou estão agora a sofrer de alguma forma de distúrbio conjugal pós-traumático ao retardador. Se estavam no limite, a Covid derrubou-os.”
Por volta de setembro de 2020, uma amiga francesa de “língua ácida” dissera-lhe: “Prometi amar, acarinhar e obedecer. Mas ninguém me disse nada sobre tomar o pequeno-almoço, o almoço e o maldito jantar com o meu marido, dia após dia”.
“Ela tinha razão”, escreve a mulher de Piers Morgan. “Quando os volumes de mastigação relativos se tornam um ponto focal do vosso dia, quando dão por vocês a contar uma anedota (que não foi boa da primeira vez) duas vezes, estão a passar demasiado tempo juntos.”
Esta crónica, além de bem escrita, explica bem as razões que podem levar um casal a optar por viver separado durante uns dias, umas semanas ou mesmo uns meses. E como cada um – e os dois juntos – saem melhores dessa experiência.
“Aparentemente, os benefícios de ‘tirar algum tempo das rotinas diárias para alimentar os seus próprios pontos fortes criativos, intelectuais ou espirituais’ são enormes, com o objetivo final de nos tornarmos, mais uma vez, ‘seres humanos plenamente expressos’. Não faço ideia do que isso significa”, ironiza Celia Walden, “mas se é o que estou a sentir agora que o meu marido e eu estamos de volta ao mesmo país e à mesma casa, estou de acordo.”
Numa entrevista que deu uns dias depois, a um programa da ITV, a jornalista contou que, durante a licença sabática conjugal, não trocou muitos telefonemas com Piers Morgan: “Enviámos sobretudo mensagens, e achei tão emocionante quando nos vimos novamente, parecia os primeiros dias do nosso casamento, ou mesmo os primeiros dias de namoro, adorei.”
Antes de dar início à “licença”, Celia já sabia de trás para a frente que a ideia não era “passarem um tempo separados ponto”. Ou, muito menos, “passarem um tempo separados e entretanto traírem o parceiro com outras pessoas”. Porque qualquer uma dessas opções pode levar ao fim do relacionamento.
Na base da decisão de fazer uma pausa sabática deve estar a vontade de parar para estar sozinho, na perspetiva do melhoramento pessoal, e repensar o projeto em comum, na perspetiva do melhoramento do casal. Só assim, dizem os especialistas, se garante a longevidade da relação amorosa.
Na origem da expressão marriage sabbatical, cunhada pela jornalista e escritora Cheryl Jarvis, no seu livro The Marriage Sabbatical: The Journey That Brings You Home (1999), está a licença sabática no local de trabalho, habitualmente tirada para concretizar um sonho próprio. Uma licença para uma pessoa “viajar” e encontrar-se a si própria – neste caso, fora do casamento, mas continuando casada.
“Estava muito ligada aos sonhos das mulheres, algo que queriam alcançar e que era pessoalmente significativo para elas. Para muitas mulheres, era algo que não podiam fazer na sua cidade natal. Podemos abrir uma padaria na nossa cidade, mas não podemos fazer caminhadas pelos Apalaches”, explicou a jornalista ao The Guardian.
No ano em que Cheryl Jarvis fez 48 anos, estava ela casada e era já mãe de dois filhos jovens adultos, “houve um clique”, escreve. “O que se seguia, na vida?”, perguntou-se, então. E o livro nasceu de um conflito – entre amar o seu marido e a necessidade de o deixar.
“Não foi uma frustração em relação aos papéis tradicionais de género. Ele tem lavado a roupa desde que entornei lixívia na sua camisola de ténis favorita no primeiro ano de casamento. Não era irritação por causa das ‘deficiências’ masculinas, tal como são retratadas nas revistas femininas”, sublinha.
“Sou eu que me despacho à última da hora para comprar o presente de anos dele, sou eu que largo a minha roupa no chão do quarto, sou eu que passo horas a fazer zapping na televisão. Ele era feminista quando nos conhecemos, e levamos uma vida independente. Temos aquilo a que algumas pessoas chamam ‘uma trela longa’.”
Sentir-se livre em casa, no entanto, não era suficiente. Precisava de se ir embora, sozinha, e não apenas durante uma semana (já o tinha feito muitas vezes). Mas parecia-lhe que esse desejo não era natural, e a culpa invadiu o seu corpo como a artrite que desenvolveu após anos de exercício excessivo, compara.
À medida que a culpa se aprofundava, a raiva surgia: “Onde é que estava escrito que eu não podia ter uma aventura a solo, que, por ser casada, não podia tirar uma folga, um tempo fora, um tempo sozinha? O que é que uma coisa tem que ver com a outra? E de onde vinham estas emoções?”
Como não tinha respostas para essas perguntas, porque não conhecia nenhuma mulher casada que tivesse feito o que ela queria fazer, a jornalista decidiu escrever um livro para encontrar essas mulheres – “que tivessem saído de casa com sucesso para perseguir um sonho, com bons casamentos, que pudessem explicar a viagem e apoiar-me ao longo do caminho”.
Sub-conscientemente, Cheryl precisava de autorização para partir, lemos. E, para isso, começou por procurar os tais exemplos, exemplos antigos, de mulheres que, como ela, um dia tinham decidido passar um tempo sozinhas sem nunca deixarem de estar casadas – e sem culpas associadas.
Além de relatar a sua própria licença sabática conjugal – três meses longe de casa e do marido, só entre escritores –, no livro conta-nos as histórias de outras 55 mulheres que se permitiram tempo e espaço para si próprias, regressando a casa “mais inteiras”.
Na sua pesquisa, descobriu que as mulheres andam há séculos a fazer sabáticas nos seus casamentos. “Na Idade Média, as mulheres casadas e ricas que queriam passar algum tempo sozinhas retiravam-se para conventos”, recorda. E, na época vitoriana, entre os tratamentos prescritos para a neurastenia, um distúrbio mental caracterizado por exaustão e irritabilidade inexplicáveis, estava a separação da família e do ambiente familiar. “Ficar doente era uma das poucas formas aceitáveis de as mulheres terem tempo para si próprias”, nota.
Quase vinte e cinco anos depois, o livro The Marriage Sabbatical: The Journey That Brings You Home continua atual, embora já merecesse uma adenda. Se é verdade que, ainda hoje, continuam a ser as mulheres a ter mais dificuldade em permitir-se o tal tempo para si próprias, os homens também precisam de pausas nas relações. E, no final, são as relações amorosas que saem beneficiadas.
A tendência é, aliás, essa. Segundo o grupo multinacional de bem-estar sexual Lovehoney, que começou com a venda online de brinquedos sexuais, há mais de vinte anos, uma das tendências para 2024 são precisamente as sabáticas conjugais.
“Quando o celibato, a opção por não fazer sexo, foi tendência em 2022 e em 2023, parece que o reino do namoro está a receber o mesmo tratamento”, predizem os especialistas da Lovehoney. “Muitos farão pequenas pausas nos relacionamentos, para explorar o crescimento pessoal, os seus objetivos e a auto-descoberta antes de retornar ao parceiro.”
Uma pessoa vacilar ou sentir-se posta em cheque porque a outra quer passar um tempo longe pode, afinal, não ser mau. Sorte a de Piers Morgan que tem a seu lado uma mulher clarividente e previdente.