Um dos melhores livros sobre Portugal dos últimos anos não teve a atenção que merecia. Estou a falar de Daqui Não Sais Viva (Guerra & Paz), de João Bonifácio. Perante os crimes de Manuel Palito e a sua inacreditável fuga, João Bonifácio, jornalista citadino, tentou penetrar no ethos da aldeia que protege um assassino misógino. Bonifácio foi atrás da pergunta óbvia: porquê? Porque é que as pessoas daquelas aldeias ajudaram um homem que matou duas mulheres para se vingar da ex-mulher? Num momento de enorme honestidade intelectual, Bonifácio reconhece que não consegue compreender estas pessoas pobres e rurais que durante 34 dias ajudaram a esconder um assassino misógino da GNR. É outro planeta moral. Não consegue compreender, porque, aos olhos da cidade aberta e cosmopolita, uma aldeia pobre e escondida pode ser mesmo inverosímil, uma fábula negra de machismo e rejeição da modernidade, um culto brutal de gente independente; independente em relação à lei e à moral da cidade. Porque é que os aldeãos protegeram o “seu” assassino contra a perseguição da polícia e das televisões da cidade grande? É, de facto, inverosímil que o repúdio por um duplo homicídio seja suplantado pelo sentimento de pertença ao grupo; a aldeia, neste caso. Ou seja, a pobreza pode ser mesmo um lost in translation; a representação que as elites citadinas conseguem fazer da miséria perde muita coisa pelo caminho.

No meu livro anterior, Alentejo Prometido, senti esta inverosimilhança da pobreza de outra forma. Não tinha a mínima noção de que estava a escrever material com potencial polémico, e o livro causou uma enorme polémica. Porquê? Em parte, porque muitos lisboetas privilegiados não quiseram ver a realidade dura que se esconde atrás dos seus montes alentejanos, espaços paradisíacos onde passam fins de semana de paz e sossego. Não quiseram aceitar a ideia de que uma violência atroz sempre se escondeu atrás da placidez silenciosa da paisagem alentejana. A realidade pura e dura que descrevo no livro (pobreza atroz, abuso sistemático de mulheres, cultura de suicídio) ecoou como mentira naqueles ouvidos privilegiados. É como diz T.S. Eliot: a realidade pode ser demasiado dura e, em consequência, é negada. A partir daquele momento (2016), ficou para mim claro que a pobreza pode ser, de facto, intraduzível. No filme Paterson, alguém diz que traduzir poesia japonesa para inglês é impossível, é como tomar banho de gabardine. Aplico muitas vezes esta ideia à pobreza. Penso muitas vezes que a pobreza é como o sexo: é uma experiência tão radical e absoluta que só é compreensível na prática. Uma pessoa pode ler 100 livros sobre o orgasmo, mas nunca saberá nada do orgasmo se não experimentar um orgasmo e se não vir ao vivo o parceiro a ter um orgasmo. Por vezes, penso que a pobreza é assim. E, não por acaso, Eric Blair viveu e trabalhou como pobre durante meses e meses. O resultado dessa experiência chama-se George Orwell.