Horríveis (terríveis, macabros, sinistros). É assim que os repórteres da revista americana Wired adjetivam os pormenores das mortes de uma dúzia de macacos que descobriram ao investigar os ensaios do implante de chip cerebral da Neuralink.
“Não consigo parar de pensar nisto”, tweetou o jornalista de dados Dhruv Mehrotra, na noite em que a reportagem, realizada a meias com o seu colega sénior Dell Cameron, foi publicada no site da revista.
“Isto” é um excerto do longo e bem fundamentado artigo que detalha como um dos primatas começou a sofrer pouco depois de lhe terem colocado o implante experimental:
“Relatórios veterinários adicionais mostram o estado de uma macaca chamada ‘Animal 15’ durante os meses que antecederam a sua morte em março de 2019. Dias após a cirurgia de implante, começou a pressionar a cabeça contra o chão sem motivo aparente; um sintoma de dor ou infeção, dizem os registos. Os funcionários [do laboratório] observaram que, apesar de se sentir desconfortável, mexendo e puxando o implante até sangrar, ela frequentemente deitava-se ao pé da gaiola e passava o tempo de mãos dadas com o seu companheiro.”
A imagem de um animal parecido connosco em extremo sofrimento, e a procurar consolo junto do seu companheiro, caiu como uma bomba na antiga rede social Twitter (renomeada X pelo seu atual proprietário, Elon Musk).
“Parece-me uma loucura”, comentou-se minutos depois.
Parece? O parágrafo seguinte do artigo da Wired não deixa grande margem para dúvidas:
“[A macaca] começou a perder a coordenação e os funcionários observaram que ela tremia incontrolavelmente quando os via. O seu estado de saúde deteriorou-se durante meses, até que acabaram por ter de a eutanasiar. O relatório da autópsia indica que tinha uma hemorragia no cérebro e que os implantes Neuralink deixaram partes do seu córtex cerebral rasgadas.”
MUSK ENGANOU OS INVESTIDORES
A 10 de setembro, Musk negara no Twitter que a morte deste e de mais de uma dezenas de outros macacos envolvidos nos ensaios tivesse sido “resultado de um implante da Neuralink”. Admitia a eutanásia, mas afirmava que os investigadores tinham tido o cuidado de selecionar cobaias “terminais” ou “já perto da morte”.
Porém, registos públicos analisados pelos repórteres da Wired, bem como entrevistas a um antigo cientista da Neuralink e a um atual investigador do California National Primate Research Center (CNPRC), um centro de investigação financiado pelo governo federal na Universidade da Califórnia Davis, apresentam uma imagem totalmente diferente da metodologia da empresa fundada por Musk e dos limites aceitáveis das experiências que tem levado a cabo.
O Comité de Médicos pela Medicina Responsável, uma organização sem fins lucrativos, com sede em Washington, que defende a não utilização de animais vivos em testes, já solicitou à Comissão de Valores Mobiliários dos EUA e Exchange Commission (SEC) uma investigação para apurar se as declarações de Musk violam uma lei federal que protege os investidores de alegações falsas e engrandecidas.
“Eles [na Neuralink] afirmam que vão colocar um dispositivo seguro no mercado, e é por isso que se deve investir”, disse Ryan Merkley, que lidera a investigação do comité, à Wired. “E nós vemos a sua mentira como uma forma de branquear o que aconteceu nestes estudos exploratórios.”
Recorde-se que foi o referido comité que processou a Universidade da Califórnia Davis para obter os documentos tornados públicos no ano passado. Eles serão prova de que Musk enganou publicamente os investidores sobre a segurança e, portanto, a comercialização do produto especulativo da Neuralink.
O mesmo comité apresentou igualmente uma queixa no Ministério da Agricultura dos Estados Unidos, alegando que as práticas da Neuralink violam a Lei de Bem-Estar Animal.
FALHANÇA MECÂNICA
A Wired conta como a Neuralink adquiriu um grande número de animais para testar os seus implantes de chips cerebrais, com a colaboração da equipa do CNPRC, de setembro de 2017 até o final de 2020.
A promessa de Musk era revolucionar as próteses e conceber um implante “que permitisse aos cérebros humanos comunicar sem fios com dispositivos artificiais e até entre si”, explica-se na revista.
Em 2022, uma investigação da Reuters indicou que a empresa tinha eutanasiado cerca de 1 500 animais, incluindo mais de 280 ovelhas, porcos e macacos. Mas foi só agora, a 10 de setembro, que Musk reconheceu as mortes dos macacos, embora tenha negado que qualquer uma delas fosse resultado de um implante Neuralink.
Os relatórios veterinários citados pelo Comité de Médicos pela Medicina Responsável (que depois a Wired obteve através de um pedido de registos públicos da Califórnia) relatam uma série de complicações que se desenvolveram na sequência de procedimentos que envolviam a implantação cirúrgica de elétrodos no cérebro de macacos.
Diarreia com sangue, paralisia parcial e edema cerebral, uma condição coloquialmente conhecida como “inchaço cerebral”, foram algumas das complicações observadas nos macacos.
Um deles, identificado como “Animal 20”, teria arranhado a cicatriz da cirurgia, soltando parte do implante. Os investigadores procederam a uma segunda intervenção cirúrgica, para tentarem resolver o problema, mas as infeções espalharam-se pelo corpo do macaco que acabou por ser eutanasiado.
Os registos veterinários referem que não era provável que a infeção fosse eliminada, em parte porque o implante estava a cobrir a área infetada.
Dois meses mais tarde, também o “Animal 22” seria sacrificado, depois de o seu implante ter ficado solto. Dois dos parafusos que prendiam o aparelho ao crânio soltaram-se ao ponto de “poderem ser facilmente retirados”. Na sua autópsia, refere-se claramente que “a falha deste implante pode ser considerada puramente mecânica” e não exacerbada por infeção.
“Se for verdade, parece contradizer diretamente a declaração de Musk de que nenhum macaco morreu em resultado dos chips da Neuralink”, sublinham os repórteres.
As fontes da Wired, todas anónimas por receio de retaliações, defendem que os animais não poderiam ter morrido de causas naturais. E negam que eles tenham chegado ao laboratório já em estado terminal – segundo um ex-funcionário da Neuralink, os macacos sujeitaram-se a cerca de um ano de treino comportamental, antes de serem submetidos a qualquer cirurgia.
Um doutorando atualmente a realizar investigação no CNPRC questiona igualmente a afirmação de Musk relativamente à saúde dos macacos da Neuralink. “Estes macacos são bastante jovens”, disse à Wired. “É difícil imaginar que estes macacos, que não eram adultos, estivessem em estado terminal.”
E, AGORA, EM HUMANOS?
O objetivo da Neuralink é ligar o cérebro humano aos computadores. Através de implantes de chips cerebrais, Elon Musk sonha encontrar tratamento para condições como a cegueira e a paralisia cerebral, além de alcançar a telepatia humana.
No início do ano passado, a Food and Drug Administration, a agência reguladora americana, rejeitou o pedido da Neuralink para realizar ensaios clínicos em seres humanos, mas em maio a empresa recebeu luz verde para avançar com ensaios em seres humanos.
Na véspera de a investigação da Wired ser publicada, a Neuralink anunciou o início de testes com implantes de chips cerebrais em voluntários humanos. Para este primeiro ensaio clínico de seis anos, a empresa procura pessoas com tetraplegia causada por lesões vertebro-medulares ou esclerose lateral amiotrófica (ELA).
O projeto Precise Robotically Implanted Brain-Computer Interface (PRIME) visa permitir que as pessoas controlem dispositivos a partir de suas mentes, após a aplicação dos chips.
Em 2021, a Neuralink publicou o vídeo de um macaco entretido com um videojogo que copiava a dinâmica do pingue-pongue. No vídeo, Pager usava os controles com os olhos, graças a dois chips implantados no cérebro seis meses antes.