Conversas de WhatsApp baseadas em testemunhos reais e também nos seus próprios relacionamentos problemáticos. Para a psicóloga clínica, sexóloga e terapeuta de casais María Esclapez, de 32 anos, todos os exemplos são válidos quando o objetivo é ensinar a desenvolver relações saudáveis e evitar as tóxicas.
Eis uma conversa sem falsos pudores com a autora de Gosto de Mim, Gosto de Ti (ed. Penguin, €14,99), surpreendente mesmo para quem já a conhece do Instagram, onde tem mais de 430 mil seguidores.
Comecemos pelo título do seu novo livro, Gosto de Mim, Gosto de Ti – é a ideia de que devemos ser exigentes e pensar em nós próprios primeiro?
Gosto de Mim, Gosto de Ti fala do importante que é primeiro uma pessoa querer-se a si própria antes de ter relações saudáveis com os outros. Isso não é ser exigente, é simplesmente agir de uma maneira razoável. Se gostas de ti, se te trabalhas a ti próprio, aprendes a pôr-te limites. Se sabes, descobres e conheces o que gostas, o que não gostas, o que queres numa relação e o que não queres, no final é um trabalho de amor próprio, não é? Essa é a parte de “gosto de mim”. Se fizermos este trabalho, é muito mais fácil ter relações com os outros, seja com quem for – companheiro, família, amigos. Todo o ser humano nasce com a capacidade de amar e pode, por isso, ter relações. Mas essas relações não vão ser saudáveis se não nos trabalharmos primeiro a nós próprios.
O amor romântico é um inimigo a abater?
Primeiro, temos de definir o que é o amor romântico. Muita gente confunde o amor romântico com o amor bonito, e nada poderia estar mais longe da verdade. Podes ter uma relação bonita, mas sem necessidade de ser uma relação romântica. O amor romântico é uma ideia que está cheia de crenças que muitas vezes são realmente comportamentos abusivos. São coisas que aprendemos desde sempre, que vimos em filmes, em livros, em séries, que normalizámos e que não são saudáveis. Respondem a padrões tóxicos de relações e, às vezes, para não dizer quase sempre, são responsáveis pela dependência emocional. Está na hora de desestigmatizar o amor verdadeiro e de desconstruir os mitos que têm que ver com o amor romântico. Além de não ser saudável, o amor romântico é um conceito machista e patriarcal, porque, para começar, defende a ideia de desequilíbrio numa relação, de que há papéis dominantes e submissos.
No seu livro, também lembra que a paixão tem um prazo de validade.
A paixão é uma fase transitória de uma relação, que dura entre três meses e três anos. É normal tê-la e também é normal não a ter porque, afinal, há muitos tipos diferentes de relações. E ela caduca porque, ao fim e ao cabo, não deixa de ser um desequilíbrio hormonal e químico que gera uma série de substâncias que não estão nos níveis que habitualmente se encontram. Podemos dizer que, quando estamos apaixonados, estamos quimicamente alterados. Quando o tempo passa, essa química volta aos seus níveis normais e entramos noutra fase da relação que pode ser igualmente linda e maravilhosa.
Não se entra numa fase pior?
Não tem de ser pior. Se encontrarmos dificuldades, damo-nos conta de que a pessoa que temos à nossa frente é um ser humano normal e comum, não é aquela pessoa que idealizámos durante a paixão. Essa nova fase pode ser chamada de amor verdadeiro ou amor maduro, e chama-se assim porque é uma fase que realmente nos diz como é a relação, como é o vínculo que construímos ou que temos de construir. A paixão é amor, mas de filme, ideal. Não é amor verdadeiro.
Como é que uma pessoa sabe se está numa relação tóxica ou dependente?
Normalmente, são dois conceitos que andam de mãos dadas. Podemos dizer que há dependência emocional numa relação e que o vínculo é tóxico. O vínculo tóxico é que aquele que gera mal-estar. E estamos perante uma relação de dependência emocional quando, apesar do sofrimento que essa relação gera, temos dificuldade em terminá-la.
Como se sai, então, deste tipo de relações?
Quando as coisas que queremos mudar não podem ser mudadas, temos de terminar a relação e passar para o contacto zero. O contacto zero consiste em afastares-te de todos os estímulos que tenham que ver com essa pessoa e com essa relação.
Lembra que são comportamentos que normalizámos, mas que não são normais. Que conselhos dá para se construir uma relação saudável?
É necessário um esforço e de ambas as partes – isso é importantíssimo. Agora, uma coisa é esforço, outra é sacrifício. Sacrifício, no fim de contas, é um esforço desequilibrado. É dizer: “Estou a sacrificar-me pela minha relação enquanto o meu companheiro não mexe um dedo”. Isso não é saudável. Para construir uma relação saudável, precisamos de esforço. Precisamos de tempo, trabalho, comunicação e afetividade. Há mais coisas, mas estas são as mais importantes porque, a partir delas, vem tudo o resto. Se quero uma relação forte, também preciso, por exemplo, de respeitar. Mas para conseguir esse lugar seguro, preciso de esforço, de comunicação.
E não estamos só a falar de relações amorosas, pois não? Também há relações tóxicas entre amigos, na família…
Claro que há. Isto não é exclusivo das relações amorosas, pode aplicar-se a qualquer âmbito da vida em que temos relações.
A própria María passou por relações tóxicas, não foi? Como saiu delas?
Passei por muitíssimas relações tóxicas! Entre os 18 e os 24 anos, altura em que conheci o meu atual companheiro, todas as minhas relações amorosas foram tóxicas, dependentes. E a única maneira que tive de sair delas foi deixando-as para trás, e com muita dor, é claro, porque foram relações em que sofri muitíssimo. Mas se não tivesse tido todas essas relações tóxicas e dependentes, também não teria escrito este livro.
Aprende-se com as coisas más que nos acontecem?
Penso que se aprende com tudo, com as coisas más também, mas que é preciso ter muita força. E, nesses momentos em que estás a passar um mau bocado, embora penses que o mundo vai acabar, que não há nada depois, que nunca encontrarás alguém como essa pessoa, acredita que podes superar, que há vida além das relações tóxicas e que, aconteça o que acontecer, no que toca a relações vai ser sempre muito melhor, muito mais bonito do que uma relação tóxica.
Costuma dizer que temos padrões, que procuramos sempre o mesmo tipo de pessoas.
Isso acontece bastante, e temos de trabalhar connosco próprios para saber que padrões e porquê. É um tema que desenvolvo mais no livro Tú Eres Tu Lugar Seguro, que ainda não foi publicado em Portugal. É um tema interessante porque, no final de contas, como escrevo nesse livro, todas as respostas estão em nós mesmos, estão na nossa história. E, quando queremos procurá-las, encontramo-las porque… estão aí. A infância tem muitíssimo protagonismo nestas respostas. É importante perceber como é que ela foi, como aprendemos a relacionar-nos com os outros e connosco próprios, e como refletimos sobre isso hoje.
Defende a perspetiva de género na terapia. Quer explicar?
Com isso refiro-me a que é importante perceber a sociedade em que vivemos, como ela está estruturada. Perceber as desigualdades que enfrentamos, saber que vivemos numa sociedade patriarcal e que temos muitas aprendizagens machistas. Estarmos conscientes dessa realidade e refletirmos sobre ela. Isto é importante e há que dar-lhe peso também na terapia, porque muitas vezes encontramos situações que são o reflexo destas crenças, destes costumes. Talvez não dêmos sempre por isso porque os normalizámos… Por exemplo, que a mulher se encarrega dos filhos ou que seja sempre ela a arrumar a casa ou que o homem precisa do seu espaço e que a mulher tem de respeitá-lo. No final de contas, trata-se de pessoas e temos de encontrar uma igualdade, não podemos perder de vista esse objetivo. São pessoas que têm as suas histórias, as suas características, as suas aprendizagens, e não tenho de dar como certo que o homem precise de dois dias para limpar a cabeça e que a mulher não. Isto é ter perspetiva de género e devemos estar conscientes desta realidade e trabalhá-la também em consulta. Não podemos ignorá-la.
Também defende que os ciúmes não são maus. Têm é de ser trabalhados?
Os ciúmes não são maus, porque são uma emoção. E é saudável ter ciúmes, tal como é saudável estar triste, estar feliz, ter nojo ou medo. O problema não está em ter ciúmes, porque, afinal, as emoções são respostas inconscientes do nosso corpo. O problema está em não gerir essa emoção ou geri-la através do controlo. Se eu sinto ciúmes e, para acabar com esses ciúmes, o que faço é controlar o meu companheiro e não o deixar fazer uma determinada coisa, obviamente não estou a fazer uma boa gestão dos ciúmes. Esses ciúmes vão ser tóxicos na relação, porque vão gerar comportamentos tóxicos. Mas se sinto ciúmes e os trabalho, é completamente diferente. Como? Se partilhar essa emoção com o meu companheiro, vou mostrar-lhe a minha vulnerabilidade. Já estou a fazer uma abordagem completamente diferente, e essa é uma maneira de os trabalhar. Não através do controlo.
Fala muito de amor verdadeiro. Como o caracteriza?
Para mim, o amor verdadeiro é o amor saudável. É o amor em que tu e o teu companheiro são uma equipa. Em que, quando há um problema, o inimigo não é o companheiro, o inimigo é o problema. É dizer: “Vamos enfrentar isto juntos” e não “Vamos lutar para ver quem tem razão”, porque isso não tem nenhum sentido. Se queremos estar juntos, temos de sentir que queremos estar juntos, e aceitar-nos um ao outro, aceitar as nossas diferenças e pedir mudanças e negociar. Mas sem nunca perder de vista que queremos estar juntos, que o outro é uma pessoa com a sua mochila emocional, que nenhum de nós é perfeito e que, por isso, vamos trabalhar juntos para construir esta relação, este amor verdadeiro.
Se só pudesse dar um único conselho para viver o amor, qual seria?
Só um? Hum… Teria de ser a compaixão. Numa relação, quando um dos dois está a sofrer, é muito importante ser compassivo com essa pessoa. Pensar “Gosto de ti e quero que estejas bem”, e que isto seja mútuo, naturalmente. Que a outra pessoa também pense “Gosto de ti e dói-me ver-te mal”. Quando nos dói ver o outro mal, aí estamos a ter compaixão. E se é algo mútuo, se ambos dizem “Vou fazer o possível para que estejas bem”, isso é trabalhar em equipa. Sem perder de vista o que eu disse até agora, o mais importante é ser compassivo com o outro e “estar aí”. Dizer, perante qualquer problema: “Não te preocupes, vamos resolver isto juntos e vamos fazer o possível para que estejamos bem juntos”. E também há compaixão no momento de terminar uma relação tóxica – nesta caso, falo da compaixão connosco próprios. Porque se essa relação te faz mal, tens de pensar se mereces esse sofrimento. Também tens de ser compassiva contigo e, embora te doa terminar a relação, tens de saber que o sofrimento vai ser muito maior se ficares nela.