Em tempo de radicalismos, Giulia Sissa não se poupa à polémica: as mulheres foram excluídas da democracia da Grécia Antiga e ainda hoje lhes são atribuídas características inatas que se consideram impróprias para a arte de governar, dirigir e liderar. Três séculos após o pensamento iluminista, nas sociedades ocidentais, persistem, argumenta, resquícios de correntes filosóficas que tendem a diminuir as capacidades femininas para a “coisa pública”. Nasceu em 1954, em Pavia, na Lombardia italiana, é filósofa e professora de Teoria Política e de Civilizações Clássicas, na Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Alguns dos seus livros estão publicados em Portugal, nomeadamente O Poder das Mulheres: Um desafio para a democracia, que a Temas e Debates acaba de lançar.
Começo pelo fim do seu livro: “Na época do #MeToo e de Kamala Harris, ler um pouco de Rousseau, de Tomás de Aquino, de Jean de Jandun e sobretudo de Aristóteles faz bem. Revigora.” Devo levar a sério esta recomendação ou é apenas uma provocação?
A essa pergunta dou um duplo “sim” como resposta [risos]. Por um lado, é para levar a sério, porque ler todos esses autores também pode ser um momento de consolo e de alívio e, sobretudo, uma forma de percebermos como chegámos tão longe. Ter noção de onde viemos permite-nos pensar melhor; as ideias não existem lá fora ou dentro da nossa cabeça, são produtos culturais, artefactos, que nascem num determinado contexto e que, entretanto, passam por todo o tipo de reiteração, correção, transformação ou receção. Pensamos porque fomos educados de certa maneira, por exemplo, por uma religião muito ambiciosa que contaminou a nossa filosofia moral, a nossa visão da Natureza, as nossas ideias sobre o corpo, o sexo e o género.
Aquilo que parece ser espontâneo e natural, afinal, não o é?
Sim, o exercício em si é até muito saudável e muito instrutivo. Permite que nos posicionemos de forma crítica, pois, quando olhamos para a história das ideias como História, estamos imediatamente preparados para decidir se gostamos ou não gostamos dessas ideias e se, de alguma maneira, queremos continuar a defendê-las. Também permite compreender que determinadas ideias nasceram em determinados contextos. Queremos transpô-las para outros contextos? Queremos pensar como São Tomás de Aquino pensava? Ou como Aristóteles? A Ciência mudou, assim como mudaram as práticas sociais e as ideias sobre direitos e igualdade. Aqui está o meu outro “sim” à sua pergunta, que é, no fundo, uma resposta otimista. E que consiste em dizer: “Eu posso escolher.” Isto é, posso viver no mundo contemporâneo e decidir quais são as ideias de Aristóteles que me agradam e quais são aquelas que quero deitar fora.
Pode exemplificar?
Como diz Aristóteles, as mulheres podem tentar deliberar, mas as suas deliberações serão sempre deliberações sem autoridade. Elas são inferiores aos homens, por serem incapazes de fazer muitas coisas, desde tomar decisões até apreciar o mesmo nível de virtudes de excelência dos homens. Aliás, os seus próprios corpos são, de alguma maneira, inferiores, porque são frios e mais húmidos.
No caso dos direitos das mulheres, basta ler o seu livro para perceber como a maior parte do pensamento ocidental, com raras exceções, perpetuou o papel tradicional das mulheres.
Sim, porque há um núcleo de ideias que são, de facto, muito resistentes, em todo o tipo de contextos, século após século. Por isso é tão importante conhecer a sua proveniência, entender porque são tão persistentes. Ao considerar as mulheres fisiológica, moral e eticamente incapazes de tomar decisões, estamos a impedi-las de votar numa democracia, por exemplo. Existe uma certa euforia quanto ao facto de nos termos livrado dessas correntes de pensamento que contribuíram, tão fortemente, para excluir as mulheres dos direitos, da política, do exército e, no fundo, de todos os cargos de responsabilidade. Julgo haver razões para um certo otimismo quando vemos o ponto a que chegámos: claro que nunca é suficiente, precisamos de ir mais longe em muitos países, mas importa ter consciência de que percorremos um longo caminho, superando todos estes obstáculos e todos estes contra-argumentos.
Três séculos após o século das luzes, faz sentido continuar a falar da influência do pensamento da Antiguidade e da Idade Média nos nossos dias?
Sim, porque muitas vezes regressamos “àquilo para que fomos feitos”, à linguagem da natureza humana e à lei natural, onde tudo gira à volta das inclinações e predisposições. É por isso que, no livro, destaco muito a importância da noção de caráter, que vem desde a Antiguidade, sobretudo de Aristóteles, mas que os pensadores medievais também amplificaram. Um certo temperamento, como dizemos em italiano. O problema surge quando atribuímos “um certo temperamento” a toda uma categoria de pessoas, quando estabelecemos uma analogia entre a componente fisiológica do temperamento das mulheres e a forma como elas pensam.
Há um livro muito conhecido de um grande escritor italiano, Italo Calvino, Porquê Ler os Clássicos. O que acha é que os clássicos não são assim tão inspiradores?
Os clássicos vêm de uma sociedade pré-moderna e, como já expliquei, é uma sensação maravilhosa, e também um grande alívio, já não vivermos nessas sociedades. Por outro lado, se olharmos para uma instituição com a importância da Igreja Católica, vemos como persiste a ideia de que as mulheres não podem ser ordenadas padres, o que enfatiza a noção de que o governo não é para elas, que têm apenas uma função complementar. As mulheres têm a dignidade da Virgem Maria, não a dignidade dos apóstolos.
Todas as mulheres beneficiam do sucesso de uma só mulher, que é talentosa, ambiciosa e inspiradora. É assim que partimos o glass ceiling [teto de vidro]
Aí, o atual Papa está a tentar fazer algumas mudanças.
Mas a cúria e a grande maioria dos cardeais opõem-se e têm oferecido resistência às mudanças. Apesar de possuírem as mesmas capacidades e as mesmas competências, as mulheres ainda não conquistaram os mesmos direitos. Concentremo-nos no que aconteceu, no final do século XVIII, com vários filósofos.
Como Condorcet.
Condorcet é especial, porque, em textos curtos, insistiu na questão de não se poder pensar que existem pessoas que não merecem ser tratadas como iguais, que não são dignas de liberdade, como os escravos ou como as mulheres. Para Condorcet, há uma cola que une todos a bordo, um mínimo denominador comum. Todos podem adquirir mais linguagem, aprender, raciocinar.
No que diz respeito às mulheres, também escreve que não tem a certeza de o discurso feminista ser benéfico para as mulheres. Quer explicar melhor?
Como sabe, existem diferentes tradições de feminismo. Existe, em primeiro lugar, o feminismo pós-marxista, prevalecente em Itália, em França, em Espanha e provavelmente também em Portugal, que se transformou numa forma de ativismo, numa forma de pensar e numa teoria política. A segunda vaga desta tradição ocorreu nos anos 70 [do século XX] e teve como referência figuras como Simone de Beauvoir. Depois, existe também uma outra tradição de feminismo liberal – não no sentido de neoliberalismo, mas no sentido da grande tradição do liberalismo do século XIX – para a qual a igualdade significa liberdade, e liberdade significa desenvolvimento pessoal. Julgo que, num contexto plural, sobretudo na Europa, deixou de se valorizar esta forma de feminismo liberal. Há uma certa posição feminista que despreza a liderança de uma mulher, como se uma grande CEO ou uma grande jornalista não interessassem, só porque existem massas de mulheres que ainda lutam pelos seus direitos, incluindo os seus direitos reprodutivos, pelas suas condições.
Apesar de tudo, funcionam como modelos inspiradores. Qual é a sua opinião?
Pelo contrário, penso que esses casos individuais, essas mulheres que têm sucesso, são fundamentais. Primeiro, por uma questão de princípio: contra a discriminação teológica e filosófica de que temos vindo a falar, precisamos de reclamar o direito a ter sucesso e a chegar a determinadas posições de responsabilidade e liderança. Depois, também porque mulheres que tenham sucesso individualmente são importantes para outras mulheres, porque funcionam como modelos. Esta é uma ideia muito americana, mas é essencial perceber que as pessoas devem ter oportunidades. Mesmo para as próprias mulheres, é fundamental o poder do “Yes, I can” [“Sim, eu consigo”].
A questão da representatividade das mulheres não é apenas uma questão de preconceito ou de igualdade, é também uma questão de poder.
Sim, poder. E poder para fazer coisas, ter a oportunidade de fazer coisas. Se uma mulher está numa posição de poder, isso é, digamos, inspirador. E é por isso que, em minha opinião, não devemos separar a questão das mulheres que têm sucesso da causa das restantes. Todas as mulheres beneficiam do sucesso de uma só mulher, que é talentosa e ambiciosa. É assim que partimos o glass ceiling [traduzindo à letra, “o teto de vidro”, a barreira invisível que se considera que impede as mulheres de serem promovidas no mercado de trabalho].
Também defende que a democracia nasceu “sexista”. As democracias liberais do Ocidente, onde as mulheres continuam a ter muita dificuldade em ter a mesma representatividade, de alguma maneira, ainda o são?
As democracias liberais assentam na ideia de igualdade e de universalidade e, por esse motivo, são cada vez menos sexistas. Na Antiguidade, a democracia era o governo dos cidadãos e, em particular, dos soldados. Por isso eram tão importantes as virtudes, as atitudes, os comportamentos, as propriedades – e todos estes eram, na sua essência, masculinos. Não é por acaso que, em grego, “coragem” se diz andreia, que significa “solidão”. O processo de democratização não cai do céu. Podemos pensar que a democracia é sentarmo-nos e fazermos deliberações coletivas, colaborarmos uns com os outros e sermos mais ou menos razoáveis todos juntos. Mas não: democracia é liderança. Quem são os grandes soldados, os homens corajosos e viris que querem ocupar as diferentes posições num governo? Democracia é um processo de seleção. É muito interessante ver a resposta que Giorgia Meloni costuma dar à pergunta com a qual já a bombardearam. “Como é ser a primeira-ministra de Itália?” E ela diz: “Sou uma pessoa muito direta e tomo decisões rapidamente.” Que é justamente o oposto das características que Aristóteles apontava às mulheres. Ao dar essa resposta, o que Meloni está a dizer é: “Yes, we can.” [“Sim, nós conseguimos”] As mulheres são reconhecidamente (o reconhecimento é um conceito crucial) capazes de fazer parte do jogo de alternância que é a democracia. Essa frase de Obama é um ato de fala muito profundo, porque aquele “nós” é um verdadeiro “nós”.
O que pensa do recente discurso da primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, quando anunciou que não se recandidatava?
Foi extremamente comovente. Foi a prova de que é possível ser o oposto do estereótipo de um líder natural. É possível ser-se ansioso, é possível ser-se alguém disposto a tentar. Isso abre possibilidades. Precisamos de mulheres assim. Todos vão ganhar com isso, porque, afinal, para os homens, viver numa sociedade masculina também é uma tortura, um inferno. De certa maneira, até os homens se libertam daquela necessidade de performance, que é apenas uma ideia, uma construção, da qual, na política, todos podemos perfeitamente prescindir: gritar, saltar, atacar, lutar, ser bruto e desagradável.