Na semana passada acompanhei o meu pai ao dentista, só porque ele tem medo, de resto podia perfeitamente ter ido sozinho. Quando chamo a minha mãe para vir ver qualquer coisa, ela costuma brincar comigo e responde: “Ver é um pouco complicado.” Na faculdade, há pouco tempo, disse a amigos que o meu pai tinha visto uma série na televisão e acabámos todos a rirmo-nos.
No dia a dia somos uma família como as outras, independentes uns dos outros. Acordamos cedo, depois cada um toma o pequeno-almoço na cozinha. Na véspera, já preparáramos as marmitas. O pai [49 anos, técnico de informática] é o primeiro a sair de casa para ir apanhar o autocarro e, a seguir, o metro; a mãe [50 anos, telefonista] sai depois para o autocarro também; o meu irmão [9 anos, metade da idade de Joana] vai para a escola e eu vou para a faculdade [interessada em paleontologia e sismos, entrou, neste ano letivo, no curso de Geologia].
A boa memória é quase de certeza a grande ajuda que os meus pais têm. Como vão sozinhos de transportes públicos para os empregos, tiveram de aprender as curvas do trajeto para saberem qual é a paragem em que têm de sair e, ao fim de um tempo, tudo passa a ser automático.
Quando mudámos de casa, também foi preciso fixar o caminho até à farmácia mais perto ou até ao café. A audição também é uma aliada, sobretudo para atravessar estradas, quando os apitos das passadeiras possam estar mais baixos em zonas de muito tráfego automóvel. Ainda há poucos dias estavam os dois atentos, a ouvir o som dos aviões a passar por cima de casa.
No final da tarde, no regresso a casa, às vezes encontramo-nos no mesmo autocarro e é engraçado ver os meus pais a reconhecerem-se pela voz. Agora estou a tirar a carta de condução e depois queremos ir passear aos fins de semana, à Ericeira, por exemplo, e nas férias queremos ir ao Algarve e experimentar um parque aquático.
Como o meu pai adora viajar, já fomos juntos a Itália e à Holanda. Ele queria ver os canais, os barcos e a vida de uma cidade, onde toda a gente anda de bicicleta. No museu Van Gogh, em Amesterdão, havia uma secção só para os cegos tocarem e perceberem todas as texturas do quadro Noite Estrelada.
A seguir, ele quer ir à Áustria para conhecer mais pormenores relativos à guerra mundial. Nas visitas a monumentos, costumo descrever-lhe os pilares das igrejas, as estatuetas pequeninas e a sua textura, por exemplo. Também já fomos os dois ao Rock in Rio assistir ao concerto dos Xutos & Pontapés. No meio da multidão, o meu pai vem atrás de mim e andamos muito mais devagar.
Quando a mãe faz compras online, no fim pede-me para confirmar os preços e as quantidades certas dos produtos, apenas por segurança, pois ela consegue abrir o computador com o programa NVDA [leitor de ecrã com voz] ou o VoiceOver no iPhone.
Não é só na rua, agora com as trotinetas caídas no meio do chão ou os carros estacionados em cima dos passeios, que é preciso ter cuidado. Em casa, os armários e as gavetas não podem ficar abertos.
“Eles sabem como eu sou”
Os meus colegas perguntam-me: “Deves fazer tudo em casa?” Não, faço o normal. Arrumo e limpo o meu quarto, claro, mas a minha mãe cozinha e passa a ferro, o meu pai estende a roupa e ambos lavam a loiça – eles estão no seu meio, é tudo perfeitamente normal. Além disso, já cuidaram de mim e do meu irmão em bebés. Sempre vi a mãe a trocar-lhe as fraldas, a preparar os biberões e o carrinho que depois o meu pai guiava. Fazia tudo sozinha e com muita naturalidade, às vezes até parecia que via.
A minha mãe sempre foi sociável, adora falar e mostrava ser uma pessoa de confiança, por isso tanto eu ia à casa das minhas amigas como elas vinham à minha. Sem qualquer problema.
Na escola secundária, perguntavam-me muito como eles comem e eu respondia: “Comem normalmente. Experimenta comer com os olhos fechados e vais conseguir encontrar a tua boca.”
Desde pequena que, de vez em quando, ando pela casa de olhos fechados, principalmente na cozinha, para perceber como os meus pais fazem. Tirar uma tigela do armário, aquecer o leite e pôr os cereais é um exercício diferente. O meu irmão também anda na fase de entrar em casa de olhos fechados e andar com a bengala da minha mãe.
Tenho uma memória muito específica da infância, quando devia ter uns 5 ou 6 anos e estávamos num parque. Fiz um desenho e queria muito mostrá-lo à mãe, mas ela respondeu: “Já sabes que a mãe não vê.” Segui a minha vida e mostrei o desenho a outras pessoas na rua.
Os meus colegas perguntam-me: “Deves fazer tudo em casa?”. Não, faço o normal. Arrumo e limpo o meu quarto, claro, mas a mãe cozinha e passa a ferro, o pai estende a roupa e ambos lavam a loiça. Além disso, já cuidaram de mim e do meu irmão, em bebés. Sempre vi a minha mãe a trocar-lhe as fraldas, a preparar os biberões e o carrinho, que depois o meu pai guiava. Ela fazia tudo sozinha e com muita naturalidade, às vezes até parecia que via
Foi naquele preciso episódio que percebi que os meus pais são cegos e que eu não lhes posso mostrar os meus desenhos. Nessa idade, já os ajudava a caminhar pela rua. Mesmo usando a bengala, o pai punha a sua mão no meu ombro para irmos juntos para a paragem de autocarro. Isso fazia-me sentir mais crescida, principalmente quando as pessoas na rua olhavam.
Sou muito grata por ter nascido. Os meus pais sempre me fizeram sentir desejada, sempre deram conta do recado. Conseguem perceber que eu tenho a cara mais alongada e o nariz mais comprido, e que o meu irmão tem mais bochechas. Sabem que as pestanas dele são compridas, porque as pessoas estão sempre a falar delas. Nunca me viram, mas sabem como eu sou. [O pai perdeu totalmente a visão com 13 anos, a mãe com 24.]
Devia ter uns 13 anos quando sonhei que os meus pais viram como eu e o meu irmão éramos – foi um bocado estranho… não vou mentir, foi muito emotivo. Depoimento recolhido por Sónia Calheiros