Pode o Ministério Público apreender num processo-crime correio eletrónico já aberto (lido) ou, mesmo nesta condição, a competência é do juiz de instrução? O problema tem dividido os tribunais superiores e está na mesa dos juízes conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) para que, de uma vez por todas, fique definida qual a melhor interpretação da lei, através do chamado acórdão de fixação de jurisprudência. Esta é uma questão central para a parte do processo da EDP que investiga suspeitas de favorecimento à empresa, uma vez que os emails de António Mexia e Manso Neto podem comprometer os antigos gestores.
A iniciativa de levar a questão ao STJ partiu da defesa de António Mexia e Manso Neto, depois de ter sido confrontada com duas decisões contraditórias do Tribunal da Relação de Lisboa. A primeira, de 7 de março de 2018, considerou que as mensagens de correio eletrónico que se encontram armazenadas num sistema informático só podem ser apreendidas com um despacho do juiz de instrução, independentemente de terem, ou não, sido abertas pelo destinatário.
Três anos mais mais tarde, a 27 de janeiro de 2021, outros juízes do mesmo tribunal declararam que que a Lei só impõe ao juiz de instrução a apreensão de mensagens de correio eletrónico, quando estas não tenham sido abertas pelo destinatário. Quando isto sucedido, o Ministério Público tem competência para as apreender e ordenar a junção aos autos do processo.
Através de um recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, feito em nome de Manso Neto, os advogados João Medeiros e Rui Costa Pereira pretendem que o Supremo clarifique esta matéria, até porque, como salientaram, ambas as decisões do Tribunal da Relação de Lisboa foram proferidas no mesmo processo e tendo em conta a mesma legislação – a Lei do Cibercrime – sem que se verificasse, no intervalo de tempo entre as duas, qualquer alteração legislativa.
A matéria em causa pode, à primeira vista, parecer um preciosismo jurídico mas, seja qual for a decisão do Supremo, terá grandes efeitos no próprio processo da EDP que foi separado do “caso Manuel Pinho e Ricardo Salgado”, atualmente na fase de instrução, e em milhares de inquéritos em curso, nos quais tenha havido apreensão de correio eletrónico.
Os advogados, depois de um extenso recurso e de um parecer jurídico do professor de Direito Penal Nuno Brandão, defendem que o STJ deve fixar a jurisprudência no sentido de que “na fase de inquérito, é da competência do juiz de instrução criminal a decisão sobre a apreensão e junção aos autos de mensagens de correio eletrónico, mesmo que se encontrem sinalizadas como abertas no momento da respetiva apreensão”.
Perspetiva contrária foi defendida pelo Ministério Público, através do vice-Procurador Geral da República, Carlos Adérito Teixeira. Nas suas alegações, o magistrado entendeu que o Supremo deve decidir no sentido de que “compete ao Ministério Público determinar a recolha de correio eletrónico, se o mesmo for encontrado no decurso de uma pesquisa informática ou outro acesso a um sistema informático, bem como a determinação de quais as mensagens pertinentes em termos probatórios, competindo ao juiz autorizar (ou não) a apreensão das mesmas e a respetiva junção aos autos, nos casos em que as mensagens não tenham, ainda, sido aberta ou acedidas pelo destinatário”.
A importância desta decisão do Supremo e os efeitos que a mesma pode ter no processo foi, implicitamente, admitida pelo vice-PGR num despacho de 8 de março, no qual fixou um prazo de seis meses para a conclusão da segunda parte do “caso EDP”. Ao mesmo tempo que decidiu que os procuradores tinham até setembro para fechar a investigação, Carlos Adérito Teixeira admitiu estender tal prazo, “designadamente por força da decisão que venha a ser, entretanto, proferida” pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Os próprios procuradores do processo, Carlos Casimiro e Hugo Neto, justificaram uma espécie de compasso de espera na investigação com a futura decisão do Supremo, que tanto pode validar a apreensão dos emails a António Mexia e Manso Neto, em junho de 2017, como pode também anular este importante dado para a investigação.
O processo — originalmente chamado de processo EDP — foi dividido em dois a 5 de dezembro com a acusação a Manuel Pinho, a mulher, Alexandra Pinho, e Ricardo Salgado por, entre outros crimes, corrupção. Assim, a parte que respeita aos arguidos António Mexia, ex-líder da EDP e a João Manso Neto, foi autonomizada num segundo processo, designado “EDP/CMEC”, no qual apenas de investigam decisões de Manuel Pinho que terão favorecido a empresa, sobretudo com os chamados Custos para a Manutenção do Equilíbrio Contratual (CMEC).
18 acórdãos de fixação de jurisprudência em lista de espera
A pergunta que vários intervenientes no processo “EDP/CMEC” colocam é: quando é que o Supremo vai decidir? Segundo informações recolhidas pela VISÃO, atualmente o STJ tem 17 recursos de fixação de jurisprudência pendentes, aos quais se juntou o do caso “EDP/CMEC”. Fontes judiciais ouvidas pela VISÃO mostraram-se descrentes quanto a uma decisão do Supremo sobre este último processo durante este ano.
Os acórdãos de uniformização de jurisprudência são assinados por todos os juízes da respetiva área – Cível, Criminal e Social. Porém, nos últimos anos tem-se verificado uma constante entrada e saída de juízes conselheiros (estes por jubilação) o que não tem contribuído para a estabilidade das secções.
“A permanência fugaz de juízes conselheiros no STJ provoca instabilidade no funcionamento das várias secções, afeta a constância da jurisprudência e é mal compreendida interna e externamente”, escreveu Henrique Araújo, presidente do Supremo Tribunal de Justiça, na revista do Conselho Superior da Magistratura.
“O número de jubilações tem sido tão alto que, em pouco mais de um ano, a entrada de novos juízes conselheiros, para colmatar essas saídas, equivaleu a um terço do total dos magistrados que integram o quadro do Supremo”, acrescentou o presidente do STJ.