“Todos temos três vidas: a pública, a privada e a secreta”, disse um dia o autor de Cem Anos de Solidão ao crítico de ficção latino-americana Gerald Martin, quando este estava a preparar Gabriel García Márquez, Uma Vida, uma sua “biografia tolerada” que seria publicada em 2009.
A frase, hoje uma das citações mais conhecidas do escritor colombiano, foi a resposta evasiva que ele deu quando aquele professor britânico lhe perguntou pela atriz basca Tachia Quintana, a sua grande paixão dos seus tempos de correspondente do El Espectador em Paris. Ficava, assim, bem claro que Gabo podia dar acesso de vez em quando à sua vida privada, mas haveria sempre um último reduto de que nunca falaria.
É precisamente essa a frase que aparece no início do documentário Joan Baez: I Am a Noise (à letra, “sou um ruído”), um retrato mais do que tolerado por Joan Baez, agora apresentado no Festival de Berlim. Uma frase que, neste caso, serve para avisar que se vai abrir a porta da “vida secreta” da cantora e ativista americana.
Se García Márquez (1927-2014) passou a sua existência a efabular o que lhe ia acontecendo (ou não), baralhando até à exaustão os biógrafos ao ponto de eles por vezes serem incapazes de descortinar o que era (ou não) verdade, Joan Baez habituou-se desde os 16 anos a ler e a ouvir efabulações por parte dos media. Ao chegar aos 80 (fez 82 em janeiro), decidiu ser tempo de contar a sua própria história, sem esconder nada (ou quase).
“Acho que não queria esperar até estar numa cadeira de rodas”, brincou, quando um jornalista do El Mundo, que acabara de ver o documentário em Berlim, lhe perguntou “porquê agora?”. Mas, logo a sério, a cantora explicou: “Escrevi dois livros de memórias quando era jovem e para responder a tudo o que tinha acontecido na minha vida. Um publiquei quando tinha 20 anos e o outro aos 40. Muita coisa aconteceu desde então. E, de facto, nunca tinha falado sobre aquilo de que falo no filme. De alguma forma, há assuntos que é melhor tratarmos quando alguns dos nossos entes queridos e os nossos pais já não estão por perto. Iria magoá-los muito.”
Miri Navasky, Maeve O’Boyle, Karen O’Connor, que assinam a realização do documentário, tiveram, por isso, acesso a um gigantesco e extraordinário arquivo, incluindo filmes caseiros recentemente descobertos, diários, desenhos, recortes de jornal, cassetes de sessões de terapia e gravações de cartas que Joan Baez enviava para a família quando estava em digressão.
O resultado, de que podemos ver um excerto aqui, é um documentário “imersivo”, “introspetivo”e “íntimo”, sublinha quem já o viu, que tem tanto de resumo dos seus sessenta anos de carreira musical como de reflexão pessoal, com a cantora a contar, pela primeira vez, os abusos por parte do pai, eram ela e a sua irmã Mimi ainda crianças.
É uma Joan Baez em paz que emerge ao longo das quase duas horas de filme. Até em relação ao seu pai, que no documentário se ouve a negar os abusos (numa cassete meticulosamente guardada).
“Felizmente para mim, e com muito trabalho árduo, cheguei a um ponto em que já não há ressentimento”, disse ao mesmo jornal espanhol. “De alguma forma, cheguei à conclusão de que o meu pai também é uma vítima e que ele teve de passar por algo semelhante. Caso contrário, isso não teria acontecido. É uma marca geracional. O meu pai deve ter sofrido e os seus pais também. Fiz um esforço para encontrar a empatia e o que me une a ele. Agora, vejo-o como um bom homem. As pessoas adoravam-no. Sim, como eu disse, tive de esperar até que ele se fosse embora para tirar todo o mal de mim e lidar com ele.”
Foram anos de terapia para chegar a esse ponto de perdão, conta, lembrando um passado de insone deprimida. Uma boa parte do documentário é, aliás, sobre a ansiedade e os ataques de pânico que começaram na sua infância.
Não terá ajudado o facto de os coleguinhas da escola lhe chamarem “mexicana estúpida”, por ser filha de um mexicano. O pai, Albert Baez (1912-2007), tinha dois anos quando chegou a Nova Iorque. A mãe, Joan Bridge (1913-2013), chegaria da Escócia um pouco mais tarde. O tom de pele de Joan não deixava margem para dúvidas quanto à sua origem.
Graças aos pais, a cantora ganharia muito cedo consciência da justiça social. Eles eram os primeiros a dar o exemplo. A mãe foi, aliás, detida com ela numa manifestação contra a guerra no Vietname, nos anos 1960.
Seria, ainda assim, Bob Dylan, a mostrar-lhe o verdadeiro alcance da música de intervenção. Quando ele começou a cantar, ela já era uma estrela, mas faltava-lhe “material mais político”, diz hoje, lamentando ser atualmente difícil a música cumprir a função social e política que tinha antes.
Os dois namoraram até 1965. Nesse ano, Mr. Tambourine Man foi em digressão pelo Reino Unido e afastou-se. “Partiu-me o coração”, admite Joan no documentário, garantindo que não guarda qualquer ressentimento.
“Um dia, estava eu a fazer o seu retrato, um retrato de quando ele era muito novo, pus a sua música a tocar, e todo esse ressentimento, toda essa treta, esgotou-se”, contou agora, à revista Variety. “Escrevi-lhe, então, uma carta e disse-lhe isso. Não pus uma morada no remetente, nem um e-mail, nada que de alguma forma mostrasse que estava a tentar obter algo dele. Só queria que soubesse o quanto significava para mim. O quanto a sua música tinha significado para mim. E talvez nunca mais o volte a ver, e isso também não faz mal.”
Joan Baez está em paz, já se percebeu. O final de I Am a Noise, em que é filmada a dançar pela estrada de terra batida até casa, na Califórnia, prova isso mesmo, nota o jornalista da Variety. E, se decidiu agora desvendar a sua “vida secreta”, foi também para incentivar outras pessoas a procurarem no passado a cura para os seus problemas.