Tudo parecia bater certo: a noite num bar, a descrição do suspeito, a forma como este a seguiu até às traseiras do estabelecimento de diversão noturna e, como neste local, a violou. Foi assim que, em resumo, Sónia (nome fictício), 17 anos, contou no dia 26 de novembro de 2017 num posto da GNR, apresentando uma queixa-crime por violação contra um desconhecido. A posterior investigação da Polícia Judiciária levou a a mulher a identificar, sem margem para dúvida, um suspeito. Mas tudo não passou de uma mentira que custou a João (nome fictício) 43 dias de prisão preventiva.
O caso está descrito num recente acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que condenou Sónia a quatro anos de prisão, suspensa por cinco anos, e ao pagamento de 20 mil euros de indemnização a João pelos crimes de denúncia caluniosa e falsidade de testemunho.
A queixa contra João foi apresentada a 26 de novembro de 2017. Num posto da GNR, a mulher descreveu o seu agressor sexual como um indivíduo com 1,60m, nacionalidade brasileira, corpo atlético, mulato, cabelo preto curto. Vestia uma camisola azul e tinha um fio em ouro. À GNR, Sónia garantiu que conseguiria “facilmente reconhecer o suspeito”.
No dia seguinte, ouvida já por um inspetor da Polícia Judiciária, a mulher declarou que, na madrugada de 26 de novembro de 2017, após ter saído do bar, “apercebeu-se então que atrás de si caminhava um rapaz que já tentara abordar o grupo de amigas da declarante. Sem que nada o fizesse prever, nas traseiras do antigo estabelecimento living, o rapaz puxou a declarante pelo pescoço para junto do muro ali existente. Ficaram ambos num local escondido das vistas”.
“Descreve-o como sendo do sexo masculino, aparentando 35 a 40 anos de idade, de estatura média, com cerca de 1,60 de altura, com sotaque brasileiro, com cor de pele que descreve como sendo mulata, com cabelo curto e escuro. Trajava uma camisa ou camisola azul. Era visível, ao pescoço, um fio dourado com uma medalha. Não tinha óculos, nem barba, pera ou bigode. Não se apercebeu que ele tivesse tatuagens. […] Já tinha visto o suspeito noutros dias à noite, nos bares que a depoente frequenta. Também já o viu andar de bicicleta. Consegue identificar o suspeito se o voltar a ver, quer fotograficamente quer pessoalmente.”, referiu. Ainda neste dia, Sónica, juntamente com inspetores da PJ, reconstituiu o trajeto que (supostamente) efetuara desde a saída do bar até ao local onde teria sido violada.
Três mais mais tarde, a GNR identificou um homem, visto na mesma zona onde teria ocorrido a violação, que encaixava na descrição feita por Sónia. Chamada novamente pela PJ, a mulher foi confrontada com imagens das câmeras de video-vigilância do bar, identificando o “suspeito”, precisamente o homem que a GNR tinha sinalizado. A 5 de dezembro de 2017, a mulher fez uma nova identificação positiva, desta vez por reconhecimento pessoal, sinalizando aos investigadores João, que se encontrava do outro lado do espelho com mais dois homens.
Trabalhador agrícola, João foi detido ainda a 5 dezembro no seu local de trabalho e conduzido a um juiz de instrução, que lhe aplicou a prisão preventiva como medida de coação, uma situação que durou até ao dia 18 de janeiro de 2018, o que o obrigou a passar o Natal na cadeia, onde se isolou, porque os restantes reclusos apelidavam-nos de “pedófilo”. Foi perto desta última data que a investigação detetou incongruências entre o testemunho de Sónia e as imagens do interior do bar, na noite da suposta violação, confrontado a mulher com esta situação.
Perante as novas evidências, Sónia acabaria por contar o que, efetivamente, se passou: na madrugada de 26 de novembro de 2017, depois de sair do bar, Sónia, como habitualmente, não foi dormir a casa da mãe e do padrasto, mas passou a noite num hotel com outro homem. Por isso, refere o acórdão, “para não contar à sua mãe e padrasto o que a tinha motivado a não dormir em casa, a ora arguida decidiu inventar que tinha sido violada e apresentou a queixa-crime” contra João, o qual “apenas conhecia de vista por terem frequentado o mesmo bar na noite anterior”.
Julgada pelos crimes de falsidade de testemunho e denúncia caluniosa, foi condenada em primeira instância a cinco anos de cadeia. Ao mesmo tempo, o tribunal condenou-a a pagar dois mil euros de indemnização à Direcção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais pelas despesas que o Estado teve com a prisão preventiva de João. Este, segundo a decisão, deveria ser indemnizado em 20 mil euros.
Uma pena reduzida pelo Tribunal da Relação de Lisboa para quatro anos de cadeia, suspensos por cinco anos, desde que, no espaço de dois anos, a arguida pague a quantia global a que foi condenadas a titulo de indemnização. No que se refere à compensação a ser paga a João, os juízes desembargadores Paulo Barreto, Manuel Sequeira e Alda Casimiro fizeram, assim, as contas: “Tratando-se de compensação pecuniária, há que proceder a comparações, aparentemente absurdas, entre bens materiais e imateriais. Qualquer veículo utilitário ou urbano ascende facilmente a 20 mil euros. Certamente é pacífico considerar que a perda da liberdade numa situação injusta e inqualificável, não vale menos”