Filho da pobreza e, depois, do sindicalismo anarquista contrapoder, a cuja liderança cedo ascendeu, o operário Manuel da Conceição Afonso foi um dos melhores presidentes que o Benfica teve. Ao longo dos seis mandatos que exerceu, nos anos 1930 e 1940, amortizou dívidas tidas por “assustadoras”, pôs o clube a dar lucro, levou o Benfica à primeira conquista de três campeonatos consecutivos na I Liga de futebol e deixou encaminhada a construção do Estádio da Luz – uma das fintas que fez à ditadura do Estado Novo salazarista, contra a qual conspirou.
A figura de Manuel da Conceição Afonso fascinou o jornalista (grande repórter do diário A Bola) e escritor António Simões, que a investigou. “Presidente assim, como o Benfica teve, ninguém tinha tido, ninguém mais teve”, diz. Manuel da Conceição Afonso nasceu em Lisboa, em 1890, e António Simões irá encontrá-lo, ainda jovem, como encadernador na Imprensa Nacional. Logo a partir daqui é possível descortinar um Conceição Afonso autodidata, empenhado na aquisição de conhecimentos: ao mesmo tempo que subia degraus profissionais na Imprensa Nacional (chegaria a tipógrafo), “envolveu-se na União Operária Nacional [UON]”, organização sindical de inspiração anarquista, de que seria secretário-geral, apurou António Simões.
“Em 1919, a UON transformou-se em Confederação Geral do Trabalho [CGT], que criou a A Batalha, jornal de alta tiragem que, por sugestão de Manuel da Conceição Afonso, era lido em voz alta nas cantinas das fábricas para que os operários analfabetos pudessem apanhar as mensagens”, conta o jornalista e escritor. Quatro anos depois, “a CGT aderiu à Associação Internacional de Trabalhadores [AIT] e os sindicalistas ligados ao PCP rebelaram-se”, acrescenta. A AIT reunia demasiadas ideologias de extrema-esquerda e de esquerda para o gosto comunista. “Alexandre Vieira e Manuel da Conceição Afonso tentaram evitar a cisão, mas não conseguiram”, diz António Simões. A corda da acesa rivalidade entre anarquistas e comunistas partiu-se mesmo, e os militantes do PCP saíram para fundar a Comissão Intersindical.
Apesar do radicalismo da sua ideologia (o anarquismo rejeita o conceito de Estado, contrapondo-lhe uma sociedade libertária com livre associação dos indivíduos), Manuel da Conceição Afonso mostrar-se-ia um surpreendente homem de diálogo, tanto na direção sindical como na presidência do Benfica.
Tribuno arrebatador
Manuel da Conceição Afonso fez-se sócio do Benfica, com o número 4595, no princípio dos anos 1920, quando o clube abriu uma campanha para financiamento da construção do Campo das Amoreiras (inaugurado em 1925). “Com as parcas poupanças que tinha, comprou todos os títulos que pôde para a ‘ajuda ao empreendimento’”, diz António Simões.
E o sócio n.º 4595 levaria para as assembleias-gerais do Benfica a robustez de tribuno arrebatador que adquirira como dirigente sindical, a que se juntaria, mais tarde, a valiosa experiência de gestão organizativa. “Era notável pela fluência e pela flama dos seus discursos”, nota o jornalista e escritor. Em 1926, subiu à vice-presidência da Assembleia-Geral do Benfica e, pouco tempo depois, chegou a presidente da Associação de Atletismo de Lisboa.
O clube, esse, é que andava numa instabilidade diretiva interminável, até que Félix Bermudes, figura importante na oposição republicana à ditadura salazarista, e o anarquista Manuel da Conceição Afonso acertaram uma candidatura conjunta, para presidente e “vice”, respetivamente. Abra-se aqui um parêntesis para dizer que, à época, os mandatos na direção do Benfica eram anuais e que os nomes das listas concorrentes às eleições eram alvo de votações individuais. Aconteceu, assim, que Félix Bermudes recolheu apenas 275 votos e Manuel da Conceição Afonso colheu 409.
“Félix Bermudes achou que a votação que tinha tido era uma expressão de desconfiança e recusou-se a tomar posse”, conta António Simões. Por isso, em agosto de 1930, subiu o anarcossindicalista à presidência do Benfica, que teve como problema prioritário para resolver as dívidas resultantes da construção do Campo das Amoreiras. “Havia mais de 650 contos de dívidas, e letras além dos 43”, diz o jornalista e escritor. Em setembro de 1931, Manuel da Conceição Afonso seria reeleito “por aclamação e braço no ar”, e quando terminou a sua primeira passagem pela presidência do clube, em agosto de 1933, “tinha a dívida esquartejada: era apenas de 944$18, apesar dos 60 contos que gastou em benfeitorias nas Amoreiras, dando-lhe duches de água quente e até telefone nos balneários”, nota António Simões.
Entre o combate à ditadura e o Benfica
Em 1934, o País entrou em convulsão contra a intenção de Salazar de tornar os “sindicatos em dóceis corporações”, como diz o jornalista e escritor. Manuel da Conceição Afonso seria rápido a fintar a ditadura: transformou o Sindicato do Pessoal da Imprensa Nacional em Grupo Desportivo e Recreativo da Imprensa Nacional. “Assim, ao menos, não perdiam a sede e os haveres”, relata António Simões. Mas fez muito mais – “Criou uma secção desportiva com ginástica, natação, tiro, futebol, basquetebol, andebol e xadrez, e outra cultural, que, por exemplo, fez palestras com figuras como Alves Redol, quando o escritor estava já proscrito pelo regime”, acrescenta.
Depois, em novembro de 1936, voltou a ser eleito presidente do Benfica e levou o clube à conquista do primeiro “tri” na I Liga de futebol. O segredo esteve no acolhimento do treinador austro-húngaro Lippo Hertzka, que conduzira o Real Madrid ao seu primeiro título nacional e que queria fugir da Guerra Civil espanhola. Como treinador do Benfica, Lippo Hertzka ganhou a I Liga nas épocas de 1936/37 e de 1937/38. O presidente anarquista, esse, “tinha amortizado as dívidas em mais de 117 contos, e o clube colhera pela primeira vez mais de 800 contos em quotas”, diz António Simões. Que faz as contas que apurou: “As despesas com o futebol foram de 300 788 escudos e as receitas de 327 854 escudos e 30 centavos.”
Ao mesmo tempo que negociava com o regime a localização do futuro Estádio da Luz, aceitou integrar a componente civil do “golpe da Mealhada”, levado a cabo, em outubro de 1946, por oficiais milicianos, para derrubar a ditadura salazarista, mas frustrado quase à nascença
Ou seja, Manuel da Conceição Afonso terminou a sua segunda passagem pelo Benfica, em julho de 1938, deixando em caixa um lucro de mais de 27 contos. Depois, relata o jornalista e escritor, “o governo de Salazar mandou destruir o Campo das Amoreiras, para que por lá passasse o viaduto da autoestrada para Cascais”. Resultado: “Era no Campo Grande – cedido pelo Sporting… – que o Benfica jogava quando, a 19 de janeiro de 1946, Manuel da Conceição Afonso voltou à presidência do clube.”
Sem perder tempo, pediu uma audiência ao ministro das Obras Públicas, o benfiquista (e monárquico) Augusto Cancela de Abreu, para a resolução do problema do estádio. O regime “tinha sugerido ao Benfica fazer o campo nas cercanias do Hospital Júlio de Matos”, conta António Simões. Não era o que Manuel da Conceição Afonso queria – e deixou-o bem claro ao ministro. E Augusto Cancela de Abreu respondeu-lhe, segundo o jornalista e escritor: “Não tenha receio. O Benfica é de Benfica e, logicamente, é para Benfica que deve voltar.”
Em janeiro de 1947, “com o Benfica já de caminho garantido para a Luz” (estádio inaugurado em 1954), Manuel da Conceição Afonso passa a presidência a Tamagnini Barbosa e afasta-se do clube. “Para mim, é claro que, quando ele percebe que o seu passado político seria prejudicial para o Benfica, larga a liderança do clube”, diz António Simões. Na verdade, Conceição Afonso, ao mesmo tempo que negociava com o regime a localização do futuro Estádio da Luz, aceitou integrar a componente civil do chamado “golpe da Mealhada”, levado a cabo, em outubro de 1946, por oficiais milicianos, para derrubar a ditadura salazarista, mas frustrado quase à nascença.
Afastado da Imprensa Nacional por razões políticas (e, como consequência, da Função Pública), Conceição Afonso, desvalido, viu Cândido de Oliveira, um dos fundadores de A Bola (e também ele envolvido no “golpe da Mealhada”), chamá-lo para organizar o arquivo fotográfico do jornal, conta António Simões. “Foi das últimas devoções da sua vida”, acrescenta. E quando a idade e a saúde o impediram de continuar a trabalhar, nota o jornalista e escritor, o envelope com o salário d’A Bola nunca deixou de chegar a sua casa todos os meses – até à sua morte, em maio de 1966, aos 76 anos.