O Decreto-lei (30-A/2015, de 27 de fevereiro) que, até ao início deste mês, regulava a atribuição da nacionalidade portuguesa aos descendentes de judeus sefarditas, e que permitiu a obtenção de nacionalidade portuguesa a mais de 56 mil pessoas, foi feito pelo presidente da Associação Amizade Portugal-Israel e pela irmã deste. Isto mesmo foi confirmado à VISÃO pelo próprio António Caria Mendes depois de ser confrontado com um email que a Comunidade Israelita do Porto (CIP) incluiu na queixa apresentada à Procuradoria Europeia. O diploma legal atribuía às comunidades israelitas de Lisboa e Porto o poder de certificar a ascendência sefardita dos candidatos e foi devido à certificação de várias pessoas, entre os quais o bilionário russo Roman Abramocitch, que, em março deste ano, a Polícia Judiciária deteve o rabino da Comunidade Israelita do Porto (CIP), Daniel Litvak, por suspeitas de corrupção na “Operação Porta Aberta”.
A mensagem de António Caria Mende, um importante membro da comunidade israelita de Lisboa, é de 8 de agosto de 2017. O texto, de pesar pela morte da sua irmã, Cecília Caria Mendes, uma advogada especialista em direito da nacionalidade, termina com uma referência ao “ último grande projeto” que os uniu: “A convite da então presidente do Partido Socialista, Maria de Belém Roseira, elaborámos a Lei de atribuição da Nacionalidade Portuguesa aos descendentes dos Sefarditas de Origem Portuguesa (…). A minha irmã desenhou o corpo da Lei e eu escrevi o preâmbulo”. Contactado , esta sexta-feira, pela VISÃO, António Caria Mendes confirmou: “Isso é tudo correto”. A VISÃO procurou ainda obter mais esclarecimentos junto de Maria de Belém Roseira, mas a antiga dirigente socialista não respondeu aos contactos.
O diploma que abriu as portas da nacionalidade portuguesa – e a emissão do respetivo passaporte – está na base da “Operação Porta Aberta” que levou à detenção do rabino da Comunidade Israelita do Porto, Daniel Litvak, e à constituição como arguido do advogado Francisco Almeida Garret, sobrinho de Maria de Belém. Em causa estão, pelo menos, 20 certificações passadas pela CIP do Porto, entre as quais a do bilionário russo Roman Abramovitc. Francisco Almeida Garret, aliás, tinha sido alvo de uma denúncia anónima enviada para vários deputados, dando conta de que teria sido ele o autor da lei. “Esta lei foi criada para proveito económico próprio e não por uma questão de justiça para com os descendentes dos judeus ‘expulsos’ pelo édito de D. Manuel I.”, dizia o documento.
Em 2020, a deputada Constança Urbano de Sousa, antiga ministra da Administração Interna, procurou, no Parlamento, alterar a lei, apertando a malha aos critérios para a obtenção da nacionalidade. “Devido a pressões ao mais alto nível, acabei por recuar duas vezes. Primeiro, deixei cair a exigência de dois anos de residência, substituindo este requisito por uma qualquer conexão relevante a Portugal, que seria depois regulamentada, mas fui também obrigada a desistir desta proposta”, revelou, este ano, numa entrevista ao Público. E apontou o dedo: “Alguns dos chamados senadores do PS, como Maria de Belém [autora da Lei da Nacionalidade de 2013], Vera Jardim, Manuel Alegre e Alberto Martins nunca falaram comigo, mas moveram nos órgãos de comunicação social, e provavelmente fora deles, mundos e fundos para evitar qualquer alteração a esta lei”.
A Comunidade Israelita do Porto (CIP), o principal alvo da “Operação Porta Aberta” levada a cabo pela Polícia Judiciária, em março deste ano, acredita que, por detrás desta investigação judicial, está uma “conspiração” contra os judeus, sobretudo os milionários, impedindo-os de tomar posição em setores estratégicos portugueses. Numa queixa apresentada na Procuradoria Europeia, a que a VISÃO teve acesso, a CIP acusa um “grupo de conspiradores desconhecidos” de antissemitismo, afirmando que os mesmos manobraram representantes do Estado, desde politicos, magistrados, polícias, terminando no Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.
Durante a investigação, a PJ realizou buscas domiciliárias, escritórios de advogados e à própria sinagoga do Porto, e deteve o rabino Daniel Litvak, por suspeitas de corrupção e branqueamento de capitais em processos de certificação da ascendência sefardita de judeus. Presente a um juiz de instrução, Daniel Litvak ficou obrigado a apresentações periódicas e foram-lhe retirados dois passaportes. A CIP diz, por sua vez, que a investigação assentou em “denúncias anónimas” e sujeitou famílias inteiras a “exposição caluniosa”.
Na queixa apresentada na Procuradoria Europeia, a CIP considera que o principal objetivo foi a “destruição” de homens de negócios judeus, sendo que o alvo é o dono da Altice. Na queixa, a Comunidade relaciona a investigação “Porta Aberta” com um concurso aberto pelo anterior governo para a gestão do SIRESP (Sistema Integrado de Redes de Emergência e Segurança de Portugal), cujo caderno de encargos tem sido muito contestado pela Altice, dizendo que se trata de um “fato à medida” do seu principal concorrente, a Motorolla.
Para a CIP, a tal conspiração envolveu “agentes do Estado”, como políticos, magistrados e polícias de forma a evitar que “judeus ricos invistam em Portugal” e a obrigar Patrik Drahi, cujo nome constava nos mandados da Judiciária, a entregar a Altice a um “fundo não judeu”. Sendo que, realça a CIP, o processo de certificação de Drahi correu na comunidade israelita de Lisboa e não no Porto. O caso de Roman Abramovitch é descrito pela CIP como “propaganda destrutiva”.A CIP admite que muitas figuras do Estado, como o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, possam ter sido usadas nesta conspiração. Daí o Chefe de Estado ter sido indicado como testemunha, assim como os socialistas Manuel Alegre, Maria de Belém, Carlos Zorrinho e Pedro Silva Pereira.
Esta sexta-feira, Patrick Drahi reagiu ao envolvimento do seu nome e dos seus negócios na “Operação Porta Aberta”: “Todas as informações sobre nós são totalmente falsas, iniciaremos de imediato todos os procedimentos legais e judiciais necessários”, declarou ao Expresso Artthur Dreyfruss, porta-voz do sócio maioritário da Altice.
“Descobrimos com perplexidade e chocados este documento absolutamente louco”, acrescentou o mesmo porta-voz do empresário franco-israelita, que iniciou negócios em Portugal em 2015, quando comprou a Altice, antiga Portugal Telecom.
Entre 2015 e 2021, segundo dados do IRN e do Ministério da Justiça enviados à Lusa, Portugal atribuiu a cidadania portuguesa a 56.685 descendentes de judeus sefarditas, tendo recusado 300 pedidos de naturalização num total de 137.087 que deram entrada nos registos. No final de 2021 restavam 80.102 requerimentos pendentes.