É próprio da natureza humana poupar-se ao impacto de más notícias. “Longe da vista, longe do coração”, ou, ainda, “isso é no outro lado do mundo e não nos afeta”. Por outro lado, a sabedoria popular também nos avisa que “não há fumo sem fogo” ou que nem sempre funciona “meter a cabeça na areia”. O que dizer, então, das pessoas que não conseguem sair de casa e se escondem da família e do mundo por um período superior a seis meses?
A Ciência parece ter encontrado uma resposta para isso. Tudo começou há alguns anos, quando se soube que no Japão – no outro lado do mundo – havia cada vez mais gente a privar-se do contacto social e a fechar-se em casa por mais tempo do que o recomendável para a sua saúde mental.
A síndrome do isolamento social patológico afeta sobretudo as faixas etárias mais jovens, que resistem a sair do quarto e não pedem ajuda
Hoje, os hikikomori (“isolados em casa”) – termo cunhado no final dos anos 1990 pelo médico japonês Tamaki Saito, especializado em psiquiatria da puberdade e adolescência e autor do livro Isolamento social: uma adolescência sem fim – chegam a meio milhão. E
Qualquer semelhança entre a “idade do armário” e os sentimentos intensos de vergonha, inadequação, exclusão e incapacidade de responder às pressões da sociedade é pura coincidência.
A condição, atualmente descrita como síndrome do isolamento social patológico, afeta sobretudo as faixas etárias mais jovens, que resistem a sair do quarto e não pedem ajuda. O problema ganhou outra dimensão quando se constatou que extravasava as fronteiras da Ásia e deixou de ser visto como uma questão cultural; num artigo da BBC sugere-se que a globalização e a proliferação do uso da tecnologia, redes sociais e videojogos podem estar a contribuir para que este cenário seja uma realidade nos Estados Unidos e na Europa, nomeadamente em Espanha, na Itália e na França.
Antes de tirar conclusões precipitadas, importa dizer que estes fatores não explicam, per se, o aprofundamento do isolamento enquanto tendência nem os níveis de solidão que, a continuarem a aumentar, constituem uma séria ameaça à saúde pública.
A bioquímica do autoisolamento
Dada a natureza dos sintomas, alguns deles comuns a doenças como a depressão, a esquizofrenia e a ansiedade social, o estudo dos hikikomori é complexo, razão pela qual há alguns anos foi aberta a primeira clínica ambulatorial no mundo dedicada a esse fim, o hospital da Universidade de Kyushu, em Fukuoka, no Japão.
No início de junho, uma equipa de cientistas daquela universidade analisou o sangue de 42 pessoas hikikomori não medicadas e comparou as amostras com as de 41 voluntários saudáveis, tendo sido estudadas, no total, 127 moléculas.
Os resultados do estudo coordenado por Daiki Setoyama foram significativos, com as alterações bioquímicas que sugerem problemas de metabolismo. O grupo com afastamento social patológico apresentou níveis mais altos de ornitina (aminoácido vital na regulação da pressão arterial e do ciclo da ureia) e de acilcarnitina de cadeia longa (químicos que desempenham um papel importante no fornecimento de energia ao cérebro).
O mesmo grupo apresentou ainda níveis mais reduzidos de bilirrubina (como sucede nos casos de depressão major) e de arginina (aminoácido que converte a amónia em ureia para ser eliminada, reduzindo efeitos tóxicos).
Numa análise mais aprofundada, foi possível prever de forma precisa a gravidade da condição. Uma notícia promissora, tendo em conta o tão aguardado desenvolvimento de tratamentos personalizados e mecanismos de apoio para estas pessoas.
A fragilidade da solidão negativa
De tudo o que se tem estudado acerca do isolamento e da solidão, o prognóstico não é animador: sentir-se desamparado e sem rede traduz-se em menor esperança de vida e no aumento de problemas de sono, cardíacos, inflamatórios e imunitários. A pandemia agravou-os e tornou-os mais evidentes, como se tem confirmado agora.
No Reino Unido, um em cada cinco millennials dizia não ter um único amigo, quatro em cada cinco jovens entre os 16 e os 24 anos sentem-se sós com frequência e metade das crianças e pré-adolescentes quase sempre, mas os adultos também não são imunes a essa maleita que parece infiltrar-se nos poros, o que levou à criação do Ministério da Solidão, à semelhança do que acontece no território nipónico.
Os estudos sobre solidão mostram que sentir-se desamparado e sem rede se traduz numa menor esperança de vida e no aumento de problemas de sono, cardíacos, inflamatórios e imunitários.
A economista britânica Noreena Hertz, também docente no Institute for Global Prosperity do University College of London, tem-se dedicado ao estudo do tema e reconhece que se trata de uma verdadeira epidemia. No livro O Século da Solidão, ela descreve um mundo em falência, com um crescente grau de isolamento, com impacto negativo na saúde, na economia e na democracia. Numa entrevista à Visão, Noreena Hertz afirmou que os mais novos são os mais solitários e que o fenómeno também acontece em Portugal.
No início do ano, o diretor do Observatório da Solidão do ISCET – Instituto Superior de Ciências Empresariais e do Turismo, Adalberto Dias de Carvalho, fez saber que a “solidão negativa” é, além de um problema de saúde, um problema político, pois quem dela padece acaba por ter iniciativa e capacidade produtiva.
A forma distópica como as sociedades se têm desenvolvido, o excessivo foco na competitividade, o menor grau de proximidade afetiva (basta pensar na economia contactless, que dispensa o contacto humano) e a normalização de estilos de vida consumistas e sem “alma” acabam por minar, dia após dia, o sentimento de confiança básica, a qualidade dos vínculos e a alegria de viver. Tudo isto se reflete na química cerebral, com a atrofia do hipocampo e uma certa anestesia emocional. O que fazer para sair deste desamparo?
Criar conexões genuínas
Talvez seja tempo de voltar às origens. Tal não significa voltar ao tempo dos paus e pedras dos nossos antepassados, antes ir ao osso daquilo que nos aflige e nos falta, espreitar fora da toca e experimentar expor-se com alguma segurança e apoio (suportes digitais incluídos, mas sem dispensar o fator humano).
Depois, por tentativa e erro, ir ao encontro de pessoas como nós, que desconhecemos e também tememos, e que até posam aborrecer-nos, contrariar-nos e abanar o que tomamos por certo, com uma dose, ainda que homeopática, de curiosidade. Ou fazer o movimento contrário, ousar aproximar-se de quem não o consegue fazer. Não é fácil, mas é aquilo que nos define enquanto espécie: com mais ou menos estruturas que nos sustentem, com mais ou menos competências sociais.
“Porque é que toda a gente ficou tão só?” titulava, em abril, um artigo da New Yorker. Aí se falava do declínio do interesse pelo sexo, da expansão da inteligência artificial nas nossas vidas (quantos de nós estão familiarizados com a companhia dos assistentes virtuais dos nossos telemóveis, smartwatches e equipamentos para uso doméstico?) e da profusão de robôs concebidos para manter os seus utilizadores felizes, até mesmo no plano amoroso.
No artigo, destaca-se um pormenor que talvez seja a chave para a encruzilhada em que nos encontramos: “O que torna a vida com humanos intensamente difícil e (em teoria) gratificante é eles não serem programados para satisfazer nossos desejos (…) e poderem deixar-nos se nos portamos mal e, por vezes até, quando não o fazemos.”
Será difícil sair da zona de conforto – o quarto, a sala, os ecrãs que nos conferem a ilusão de segurança – e dar um passo na direção de um outro, à nossa imagem e semelhança, mas há uma verdade universal que importa lembrar: a vida é curta e nisto, não estamos sós. Por mais que o coração possa partir-se, ou que o sintamos vazio, dar-nos uma oportunidade de descobrir e de aprender a lidar com as nossas emoções, poucas ou muitas, sombrias ou nem tanto, ao lado de alguém de carne e osso, traz consigo a probabilidade de correr bem, pelo menos uma vez, quem sabe a primeira, e isso é já um grande consolo que merece o risco.