Vamos passeando pelas boxes, enquanto a Sandra Vicente desfia as histórias dos cães que ali vivem. Fala-nos da Lira, da Pipoca, do Ozzy, do Star… “Este é o cantinho dos ceguinhos. Estes meninos não veem, mas são uns doces. Muito meigos, muito brincalhões”, conta apontando para dois cães peludos, de porte médio, que vêm ter connosco. Sentem a nossa presença, abanam a cauda, pedem festas.
“Este é o Ted, um ursinho está aqui connosco há tantos anos, ninguém o levou porque é tão grande.” Tem ar doce e calmo, todo esticado na sua boxe, põe a pata de fora para receber festas. “Só não se dá muito bem com outros cães”, esclarece. “Este é o Milk, foi tosquiado agora, é tão lindo. É de pelo branquinho, aqui às vezes fica mais sujo. Mas andamos sempre a limpar tudo.”
Nas manhãs de sábado, a agitação é muita no albergue da UPPA, na Terrugem, em Sintra. Homens constroem novas boxes para albergar mais cães com materiais doados. Os voluntários vão chegando, bem dispostos, e começam a tirar os animais das boxes para os passear pelos campos das redondezas. A alegria dos bichos quando os veem e sentem que vão para a rua é contagiante. Reconhecem-nos, agitam-se, pulam, saem felizes pelos portões – já conhecem de cor os caminhos. Há muita gente por ali: a limpar, a dar banhos, a encher uma piscina para os animais se banharem quando regressam do passeio. Conhecem-se todos, parecem uma família com as tarefas bem oleadas.
Mais de 1000 cães adotados
Cabe a Sandra receber os visitantes, potenciais adotantes ou novos candidatos a voluntários. É ela que apresenta os bichos um a um. Conhece todas as suas histórias. A UPPA acolhe permanentemente cerca de 70 a 80 animais – neste momento são 60 cães, 2 porcos, 2 cabras, 2 ovelhas e uma égua, todos resgatados. E entregam para adoção responsável cerca de 120 cães por ano. Desde a sua fundação, em 2007, já conseguiram a adoção de mais de 1000 cães.
Esta é uma história de amor de duas mulheres pelos cães abandonados. Sandra Vicente, jurista, e Filipa Laginha, arquiteta, são primas direitas muito próximas com algo que as une: uma paixão por animais. Começaram aos vinte e poucos anos a mobilizar-se para ajudar cães de rua, alimentar bichos ou tentar convencer os donos a não os deixar acorrentados.
Em 2007 fundaram a associação sem fins lucrativos UPPA, União Para a Proteção dos Animais, mas pouco mais tinham do que muita boa vontade e o apoio de amigos e familiares. “Foi o marido da Filipa, que acompanhava o nosso trabalho, que um dia no aniversário dela lhe ofereceu a constituição de uma associação”, recorda Sandra. Começaram por alugar uma boxe num hotel de cães que pagavam do seu bolso, ajudando com muito esforço um ou dois cães de cada vez.
Foram crescendo, alugando mais boxes e, hotéis de cães, reunindo mais apoios. “Chegámos a ter encargos de 2000 euros só em estadias, era uma loucura! Metemos muito dinheiro do nosso bolso a muito custo”. Até que conseguiram concretizar o sonho que alimentavam há muito: construir um albergue. Os pais de Sandra deram o terreno e com muito trabalho, dedicação, amor e com o donativo precioso de três beneméritos, a associação tem hoje em Sintra um espaço com todas as condições para colher os animais. Com muitas despesas e um tratador contratado a tempo inteiro para assegurar a alimentação dos animais, medicações e a higienização das boxes, as dificuldades são muitas. Vivem essencialmente de donativos e apadrinhamentos de particulares, ajudas preciosas e regulares.
E, claro, do trabalho fundamental dos cerca de 30 a 40 voluntários ativos e dedicados que passeiam cães todas as semanas e ajudam na resolução de todos os assuntos da associação. Os pedidos, esses, são muitos. “Chegamos a receber 20 a 30 pedidos de ajuda por dia! Parte-me o coração, mas não podemos ajudar todos”, diz Sandra.
Despesas e mais despesas
Numa casa com tantos bichos, os consumos médios diários são imensos. Gastam-se cerca de 1050 Kg de ração e 120 kg de arroz por mês, e só em veterinários a conta ascende a cerca de 1000 euros mensais. Isto contando com as parcerias e descontos que alguns especialistas amigos fazem à associação.
“Neste momento, por exemplo, temos uma fatura de 1600 euros de veterinário para pagar de uma ninhada que chegou muito doente. Temos todos os tostões contados, estas surpresas fazem-nos muita diferença. Mas há situações a que temos mesmo de deitar a mão”, explica.
Apesar de todas as dificuldades, Sandra e Filipa não desistem. Têm na Uppa um segundo emprego, dedicam todo o seu tempo livre a associação. E estão sempre à procura de ideias para angariar mais verbas para ajudar os bichos. Têm um calendário e agenda solidários que anualmente vendem, respetivamente por 5 e 6 euros, e lançaram este fim de semana um livro infanto-juvenil que conta a história de “A Misteriosa Tartaruga do Reino de Noodle”. O livro foi escrito por Rute Fernandes, baseado numa história verídica de amor e dedicação à Causa Animal, e cujas receitas da venda reverterão integralmente para a UPPA. O preço de capa é de 12 euros.
Histórias tristes e finais felizes
Uma história de resiliência e dedicação aos animais que merece ser contada. Há muitas histórias tristes e, confessa, também alguma frustração de não conseguir fazer mais. “Uma coisa eu sei: a partir do momento em eu um cão entra aqui temos de dar tudo por ele.”. E isso nota-se. “Não queremos que ninguém tenha pena destes cãezinhos que foram abandonados. Aqui estão felizes. Queremos é que se apaixonem por eles como nós!”, explica.
Mas no final, quando vê tantas histórias de adoções felizes, tudo vale a pena, diz Sandra. “Temos tantos casos felizes. Lembro-me da Jasmim, por exemplo, que foi encontrada em 2017 pelo canil Municipal de Sintra com seis meses, arraçada de pastor alemão. Tinha sido abandonada para morrer, dentro de um barracão, com uma corda nas patas e outra no focinho. Era só pele e osso, esteve dias a fio em sofrimento. Uma das cordas começou a cortar a carne e o osso e teve de ser amputada. Urinava-se pelas pernas abaixo quando via gente. Felizmente apareceu uma boa alma que se apaixonou por ela, andou por aqui quase 4 meses até ela perder o medo. Hoje está adoptada, feliz e completamente adaptada. Estes casos enchem-nos a alma”.