Foi o momento mais emotivo da cerimónia de entrega de Prémios ACTIVA Mulheres Inspiradoras 2020, que decorreu ontem no teatro Tivoli e que celebra o trabalho de figuras nacionais de destaque em várias áreas, da Ciência ao Desporto. Ana Rocha de Sousa, laureada na categoria de Artes, tomou o palco e aproveitou o momento para contar uma história: uma memória dolorosa de violação, de culpa e de superação que aconteceu consigo há 26 anos.
“O perigo não está apenas nos lugares óbvios. Protejam-se. Seja perante a casualidade do homem anónimo escondido nas dunas. Seja perante o cantor famoso que acham conhecer e parece tão seguro porque vos encantou com palavras líricas e bonitas“
“Um dia, também eu baixei a guarda e não devia. Culpei-me. Até porque era tão ingénua, própria da tenra idade, que, mesmo avisada com estranheza do perigo, achei ser impossível. Hoje, falo para meninas, adolescentes, recém-mulheres. O perigo não está apenas nos lugares óbvios. Protejam-se. Seja perante a casualidade do homem anónimo escondido nas dunas. Seja perante o cantor famoso que acham conhecer e parece tão seguro porque vos encantou com palavras líricas e bonitas. Foi em 1995 a história que não vos posso contar”, revelou a realizadora multipremiada no Festival de Veneza, que durante anos teve de lidar e aprender a gerir a culpa. “Arrependo-me de muito pouco na vida, mas lamento ter guardado a história que tenho cravada por contar. A ti, menina, mulher, adolescente, eu digo: não tens culpa. Lembra-te e repete: não tens culpa. A ti, tenho imenso para dizer que pode ajudar. Escreve, se te fizer algum sentido, o que acabo de contar.”
Não revelou o nome do violador, deixando subentendido que seria um cantor famoso e ela uma muito jovem atriz com apenas 16 anos, mas quis com o seu poderoso testemunho apoiar quem possa ter passado pelo mesmo. “Hoje só vos falo disto porque é minha obrigação salientar, primeiro, que a minha geração não é livre de expor factos sem isso duplamente nos voltar a violentar e de pouco servir para avançar. Segundo: as consequências de revelar agora o que para a Justiça, supostamente, já passou à história são nefastas para todos e em vão. Terceiro: quero muito, e é por isso que hoje volto ao passado para vos falar, que vocês, com histórias recentes, sejam elas de assédio, abuso ou violação, saibam que têm o nosso apoio, a nossa ajuda e têm em nós com quem falar”.
Neste discurso emotivo de 10 minutos, Ana Rocha de Sousa surpreendeu a plateia ao distinguir-se pela sua notável capacidade de superação e perdão.
“Nem sou capaz de te desejar mal. Compreendo que só uma alma muito dorida, perdida e atormentada faz o que tu sabes que me fizeste. Ouve bem: nunca mais voltes a fazer“
“A ti, assediador, violador. Sejas tu um outro, uma patrão, um homem da duna ou um cantor famoso. Fui ensinada a desejar o bem. O bem te desejo. Não pretendo nunca destruir a vida de ninguém. Jamais. Quero acreditar que passados mais de 25 anos és outra pessoa. Esperemos que sejas diferente e muito melhor. Quero acreditar que deixaste de fazer uso da tua fama para assediar e aliciar teenagers para o teu universo sexual, violento, louco e promiscuo. Quero acreditar que fui a única a ser forçada a crescer bruscamente sozinha na vergonha da minha culpa. Que assim tenha sido. Oxalá que assim seja”, afirmou.
E repetiu: “Nem sou capaz de te desejar mal. Compreendo que só uma alma muito dorida, perdida e atormentada faz o que tu sabes que me fizeste. Ouve bem: nunca mais voltes a fazer. Nunca mais voltes a fazer”.
No final, a atriz recebeu uma ovação de pé: “Nós somos magoados por pessoas, mas também são as pessoas que nos salvam”, concluiu.
Ana Rocha de Sousa começu como atriz em séries de televisão e conquistou os mais altos prémios na realização, pelos quais foi também agora distinguida. Com a sua primeira longa-metragem, uma coprodução portuguesa e inglesa, Listen, arrecadou seis prémios do Festival de Veneza – incluindo o auspicioso Leão do Futuro –, um feito histórico para o cinema português. Em 2015, Ana tinha sido alvo de uma polémica quando o seu nome foi anunciado como parte de um júri do ICA (Instituto do Cinema e do Audiovisual), apesar de ser licenciada na Escola de Belas-Artes e com um mestrado numa das melhores escolas de cinema do mundo, a prestigiada London Film School.
“Na altura, incomodou-me… Olhando, hoje, à distância, para esse episódio, até compreendo bem a facilidade que há em acontecerem equívocos simples que podem tomar proporções disparatadas. Genuinamente, não sou nada de guardar rancores, até porque eu também erro, claro, e, no fundo, todos temos preconceitos. Prefiro sempre que a minha história seja de esperança”, disse em outubro passado à VISÃO.
Um exemplo, sem dúvida, inspirador.
PRÉMIOS ACTIVA MULHERES INSPIRADORAS
Foram sete laureadas dos Prémios ACTIVA Mulheres Inspiradoras, uma escolha de um júri composto por Natalina Almeida, diretora da revista Activa, Mafalda Anjos, publisher da Trust in News e diretora da VISÃO, a ex-ministra das pastas da Saúde e da Igualdade, Maria de Belém, a Presidente da Grace, Maria da Conceição Zagalo, e o comentador político Luís Marques Mendes.
Ana Rocha de Sousa – categoria de Artes
Joana Gonçalves de Sá – categoria de Ciências
Maria da Conceição – categoria de Desporto
Leonor Freitas – categoria de Negócios
Maria Amélia Ferreira – categoria de Solidariedade
Helena Antónia Silva – categoria de sustentabilidade
Elvira Fortunato – Prémio Carreira