Será difícil encontrar alguém que só aceite os Termos e Condições de uma aplicação depois de ler cuidadosamente até as letras mais pequenas. Contudo, os utilizadores da internet parecem estar cada vez mais atentos à proteção da sua privacidade. “As pessoas começam a ter a perceção de que deve haver limites e de que não têm de aceitar tudo”, congratula-se Ricardo Lafuente, vice-presidente da associação sem fins lucrativos D3 – Defesa dos Direitos Digitais.
O mais recente grito de alerta foi lançado por milhões de utilizadores da aplicação de mensagens WhatsApp, após ser anunciada uma controversa alteração na sua política de privacidade. O Facebook, proprietário da app desde 2014, pretende, agora, aumentar a partilha de informação entre as duas empresas.
De acordo com a gigante norte-americana, a recolha de dados só acontecerá quando os utilizadores usarem o WhatsApp para comunicar com serviços comerciais. Todas as mensagens trocadas através da aplicação continuarão a estar encriptadas ponto-a-ponto, ou seja: só o emissor e o recetor conseguirão lê-las, mas esta alteração de política permite a partilha dos chamados metadados com a empresa-mãe, sempre que houver interação com um negócio. Os metadados incluem informações como quem está a contactar com quem, a quantidade de dados partilhados, a frequência das comunicações ou, mesmo, o número de telefone utilizado, o que pode ser precioso para direcionar publicidade personalizada e, claro, maximizar lucros.
“Continuamos a surpreender-nos com o facto de que, quando não pagamos, é porque o serviço somos nós”, sublinha Henrique Corrêa da Silva, fundador da Privus, uma empresa especializada em segurança digital. “Muitas pessoas têm o discurso de que não têm nada a esconder, talvez por não perceberem o alcance da informação que oferecem, que tanto pode ser usada para vender sabonetes como para manipular politicamente as pessoas. É um perigo para todos nós”, alerta.
A atualização da política de privacidade do WhatsApp deveria ter entrado em vigor a 8 de fevereiro, mas a contestação obrigou a adiar as alterações para 15 de maio. Até lá, o Facebook pretende esclarecer todos os utilizadores, depois de muitos se terem voltado para outros serviços de troca de mensagens.
“Usem o Signal.” Foi com este tweet telegráfico que o empreendedor multimilionário Elon Musk promoveu, junto dos seus quase 45 milhões de seguidores, uma das principais concorrentes do WhatsApp. Na semana seguinte ao Facebook anunciar mudanças, o Signal bateu todos os seus recordes e somou cerca de 8,8 milhões de downloads. Atualmente, a app rondará os 40 milhões de utilizadores. O Signal foi cofundado por um dos criadores do WhatsApp, Brian Acton, que abandonou o Facebook em desacordo com a sua gestão da privacidade.
Também o Telegram, a aplicação criada pelos irmãos russos Nikolai e Pavel Durov, beneficiou da indignação. Numa semana, conquistou quase 12 milhões de pessoas e garante ter ultrapassado a marca dos 500 milhões de utilizadores.
Já o WhatsApp terá duas mil milhões de contas ativas.
Sob proteção da União Europeia
“O Facebook afirma que a troca de informações só vai acontecer quando se comunicar com empresas, mas, mesmo assim, isto gera muita ansiedade nas pessoas”, constata Nelson Zagalo, professor de Multimédia na Universidade de Aveiro. A desconfiança em relação às intenções do Facebook não surge por acaso; basta lembrar o escândalo de partilha de dados com a consultora política Cambridge Analytica.
Apesar da garantia de que, na União Europeia (UE), os novos termos de privacidade não vão incluir a partilha de dados com o Facebook para fins comerciais, a verdade é que a empresa já mentiu antes.
Aquando da aquisição do WhatsApp, a tecnológica assegurou à Comissão Europeia que seria impossível combinar os dados dos utilizadores dos dois serviços… Até que uma atualização da política de privacidade da app admitiu isso mesmo. A mentira saldou-se numa coima de 110 milhões de euros. E os diferendos na UE não se ficam por aqui.
“Quem precisa realmente de privacidade há muito que não está no WhatsApp”, afirma Nelson Zagalo. Mas não é fácil deixar uma app para trás quando todos os outros lá ficam. “O problema de trocar é o efeito de rede, ou seja, temos de convencer os outros a mudarem também”, sob pena de se ficar a falar sozinho, nota Ricardo Lafuente. Por isso, é previsível que os utilizadores mantenham várias aplicações ativas. Outro fator que pode limitar as opções dos utilizadores é o facto de várias operadoras de comunicações disponibilizarem tarifários em que os dados consumidos por algumas aplicações, incluindo o WhatsApp, são grátis, o que estimula a sua utilização em detrimento de outras. “É uma condicionante da liberdade de escolha na internet”, defende o especialista da D3.
Henrique Corrêa da Silva considera que persiste o paradoxo da privacidade: “As pessoas dizem que se preocupam, mas não estão dispostas a pagar por ela.” Quanto a alternativas… “O Signal é útil para a conversa do quotidiano, mas não é seguro para a partilha de informação classificada”, nota o também CEO da Privus, certificada pelo Gabinete Nacional de Segurança (GNS) e atualmente responsável por garantir a segurança das comunicações da Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia. O empresário não tem dúvidas: “A informação é o petróleo do século XXI.”
Admirável mundo novo
O descontentamento provocado pela alteração da política de privacidade do WhatsApp, que poderá permitir uma maior partilha de dados com o Facebook, levou muitos utilizadores a procurarem alternativas gratuitas
Signal
Tal como no WhatsApp, todas as mensagens trocadas, sejam de texto, áudio ou vídeo, são encriptadas ponto a ponto, ou seja, só os utilizadores têm acesso ao seu conteúdo.
Esta app dotou-se de algumas funcionalidades da líder de mercado, como permitir alterar o papel de parede das conversas, enviar figuras animadas, escrever uma pequena biografia no perfil e reduzir a qualidade da ligação para economizar dados.
Os chats em grupo podem incluir até mil participantes, mas as chamadas de áudio e de vídeo estão limitadas a oito contactos.
À semelhança do WhatsApp, dispõe de uma função que programa o desaparecimento automático das mensagens ao fim de cinco segundos ou até uma semana.
Segundo o Signal, a única informação armazenada pela empresa é a data de ativação da conta e a última vez que o utilizador esteve online. Porém, pede o número de telefone e acesso à agenda para criar uma rede de contactos.
Telegram
As conversas não são encriptadas por defeito, ou seja, é necessário ativar esta funcionalidade através das Conversas Secretas.
Os chats podem ter até 200 mil participantes e os canais, usados para transmitir mensagens a audiências ainda maiores, não têm limite de inscritos. Já as videochamadas em grupo nãoestão disponíveis, mas os chats de áudio sim.
É possível apagar os conteúdos enviados, sem deixar rasto, em qualquer altura. Nas Conversas Secretas, as mensagens não são reencaminháveis e podem estar programadas para se autodestruírem.
É possível importar as conversas do WhatsApp para a aplicação, seja de um telefone com software Android ou iOS.
Ao contrário do Signal, que só armazena as conversas nodispositivo do utilizador, o Telegram guarda-as na nuvem, o que pode torná-las mais vulneráveis.