Acordar e adormecer com a presença da Voz, não a de um reality show mas aquela que está na cabeça – exigente, crítica e feroz – é um pesadelo diário. Quem conhece a experiência acredita que não tem o valor que lhe atribuem e, por se achar um logro, teme vir a ser apanhado em falso a qualquer momento. Estima-se que 70% das pessoas são afetadas por este enviesamento psicológico: contra toda a evidência, se vêem como inadequadas, incompetentes e desmerecedoras. De pouco lhes serve saber que errar é humano ou que a perfeição é um mito porque não o sentem realmente. Sofrem por antecipação e imaginam o pior.
Esforçam-se para serem exímios em tudo o que fazem e têm desempenhos acima da média. O problema é que atribuem os frutos ao acaso e à sorte e, se cometem um erro, por menor que seja, culpam-se, reforçando a crença errónea que já tinham. Fazem-no por insegurança, medo da desaprovação dos outros e, principalmente, do carrasco interno que lhes sabota a vida e lhes sussurra: “És um impostor.”
Estima-se que 70% das pessoas são afetadas por este enviesamento psicológico: contra toda a evidência, se vêem como inadequadas, incompetentes e desmerecedoras.
A este respeito, um artigo da Reuters, refere um relatório da consultora KPMG com resultados surpreendentes: setenta e cinco por cento das mulheres executivas em todos os setores de atividade experimentaram algum nível da Síndrome do Impostor, talvez por recair mais sobre elas a pressão para serem perfeitas. Num outro estudo, da Youngstown State University, verificou-se que também os homens não estão imunes, mas resistem a falar disso por medo de serem vistos como fracos. Aconteceu a figuras públicas que admitiram ter passado por tais agruras, depois de se libertarem delas.
O magazine de negócios americano Entrepeneur apresentou até uma lista, de que se destacam algumas. Por exemplo, Sheryl Sandberg, Chief Operating Officer do Facebook, sentiu que não merecia estar na sociedade de honra Phi Beta Kappa em Harvard, e que acreditava piamente estar a enganar os restantes membros. O cantor David Bowie disfarçava os sentimentos de inadequação e uma baixa autoestima, sobrecarregando-se com trabalho. A tenista Serena confessou a Oprah Winfrey, copiar a irmã mais velha e que levou muito tempo a tornar-se quem era. Arianna Huffington, co-fundadora do site de notícias The Huffington Post, revelou numa entrevista que a voz que tinha na cabeça, e a que chamava “colega de quarto desagradável”, lhe fazia a vida negra. No concerto-documentário The Monster Ball Tour (HBO), a famosa Lady Gaga, afirmou sentir-se, por vezes, como a criança que era sempre uma derrotada na escola e ainda precisava de lembrar-se, a cada manhã, que era uma estrela e os fãs precisavam dela. E o ator Tom Hanks admitiu que, há cinco anos, duvidou seriamente ser capaz de desempenhar um papel de um empresário de meia-idade, chegando a perguntar-se porque estava nas rodagens e quando iriam descobrir que ele era uma fraude e pô-lo a andar. Como se chega até aqui?
Forças de bloqueio
Comecemos pelo ambiente académico, em que a competição é o prato do dia, especialmente no meio universitário. Os alunos que colocam a fasquia bem alta em termos de desempenho e a atingem à custa de esforços hercúleos, em vez de ficarem satisfeitos com o resultado acanham-se perante a voz sem rosto que lhes diz: “Não foi mais do que a tua obrigação.” Já a pensar no futuro, ficam esmagados pela dúvida e com vontade de meter a cabeça na areia: “E se não consigo repetir a proeza na próxima vez? E se não for assim tão competente como pareço? Um dia vão descobrir que os enganei!”
Andreia Santos, técnica superior do Gabinete de Apoio Psicopedagógico da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, confirma que há um crescendo de alunos, sobretudo entre aqueles que estão a terminar o mestrado e o doutoramento, a pedir apoio. “Tenho de ser especial para conseguir mais uma bolsa” é uma queixa comum, num ambiente competitivo e com elevada pressão para publicar.
E vem a voz: “Um dia eles vão descobrir que eu não sou tão bom como eles acham”. Uns adotam a estratégia de controlo: “Trabalham muitas horas, reveem muitas vezes as mesmas coisas com pensamentos carregados de crítica e de auto-desvalorização; a culpa leva-os a sentir que têm de fazer mais.” Outros, optam pelo evitamento: “Fogem às tarefas ou a apresentar o trabalho aos orientadores e colegas e a emoção mais presente é a vergonha.”
“Muitos sempre foram bons alunos e com padrões muito elevados de exigência interna, a sua autoestima foi construída sobre esta imagem de perfeccionismo, excelência e de não poder falhar”, adianta a psicóloga clínica. No meio académico, confrontam-se com “situações em que têm menos controlo, menos aprovação ou reconhecimento por parte dos orientadores do que esperavam e o fator crítica ”.
Sem uma boa gestão emocional, “o medo de falhar e as inseguranças face ao desempenho criam desconforto mental, estados ansiosos e depressivos; se forem muito intensos levam a bloqueios e, até, à desistência”. O trabalho a fazer passa por convidá-los a “acolher e aceitar esse lado que se sente vulnerável, sem se punirem e a reconhecer que têm os mesmos recursos, capacidades e valor pessoal, simplesmente estão numa fase transitória desafiante”.
A mulher que estudou o “bicho”
“Tive estes sentimentos quando frequentava a minha pós-graduação”, conta, na secção biográfica do seu site, a psicóloga americana Pauline Rose Clance e pioneira, juntamente com a colega de profissão Suzanne Imes, do termo “Fenómeno do Impostor”, em 1978. “Ia fazer um exame importante e tinha muito medo de falhar; só me vinha à cabeça tudo aquilo que eu não sabia e atormentava-me com isso”, lembra. “Os meus amigos cansaram-se das minhas preocupações e guardei as minhas dúvidas para mim.”
Quando começou a dar aulas é que se apercebeu de que este “estado de sítio” era partilhado por muitos estudantes brilhantes:: “Tinham medos semelhantes aos meus e procuraram aconselhamento; um deles disse-me que se sentia um impostor.” Terá sido esse episódio que levou a professora emérita da Universidade Estatal de Atlanta, no Estado da Geórgia, a abordar o tema com os seus alunos e a estudá-lo, o que se traduziu em livros e na Escala do Fenómeno do Impostor Clance (tradução livre para português, no final do texto). Contactada pela VISÃO, explica que “o fenómeno do Impostor, que envolve sentimentos de pavor e de ansiedade, não é uma doença psicológica ou mental, embora todos se refiram a ele como uma síndrome”. O tema parece ser universal, já que continua a despertar o interesse de investigadores em todo o mundo: “Estão a fazer estudos na Holanda, na Coreia, na China, na Suécia, no Irão, na Índia, no Egito, na Austrália, no Canadá e no Reino Unido”, faz saber. No seu livro, The Impostor Phenomenon: Overcoming the Fear That Haunts Your Success (1985), que se converteu num clássico, dedica um capítulo às sugestões para mudar ou superar os efeitos nefastos de quem passa por esta experiência. “Pessoas com pontuações elevadas no teste são engenhosas a descartar elogios e ignoram o feedback positivo”, esclarece. “Para mudarem, precisam de ter consciência disso e encontrar uma pessoa de confiança ou de um profissional qualificado com quem possam abrir-se e expor o que sentem.”
Porque ser suficiente não basta
Pessoas famosas e intelectualmente brilhantes têm frequentemente em comum histórias familiares marcadas por padrões elevados de exigência. Crescerem em ambientes onde têm a perceção de só serem apreciadas se forem “número um” e cedo começam a adaptar-se ao que pensam que esperam deles para obterem aprovação. As comparações excessivas e o estado hipervigilante tornam-nos mais propensos a sofrer de estados ansiosos e depressivos e, mais tarde, vem a fatura do desgaste. Se partilham a sua angústia, dificilmente são levados a sério pelos outros, que os reconhecem e estimam. “Outra vez essa conversa? Lá estás tu e a tua falsa modéstia.” Bom era se pudessem dizer isso ao carrasco interno e baixar o volume da voz inimiga, mas como, se ela mora na central de comando mental?
A autossabotagem impede que a pessoa explore o seu potencial, ofusca-lhe as qualidades e priva-a de desfrutar das conquistas alcançadas
O pediatra e psicanalista inglês Donald Winnicott, usou a expressão “mãe suficientemente boa” referindo-se ao papel das figuras parentais que respondiam às necessidades emocionais dos bebés enquanto lhes davam espaço, também, para doses de frustração tolerável, não reagindo ao primeiro choro como se de uma emergência se tratasse. Desta forma, a criança aprendia a diferenciar o ideal e o possível, tornando-se um adulto suficientemente bom, ou seja, seguro do seu valor, sem ficar refém do ranking das opiniões alheias e da crença irrealista de ter de ser “o melhor do mundo”.
Interiorizada a ideia de não estar à altura de responder a desafios, chega-se a adulto com a convicção de que a vida será sempre assim: ficar aquém e viver com embaraço e vergonha. A autossabotagem impede que a pessoa explore o seu potencial, ofusca-lhe as qualidades e priva-a de desfrutar das conquistas alcançadas na carreira, no plano social ou na esfera privada. Não lhe ocorre que sentir-se inseguro é normal e faz parte da vida. Note-se que o fenómeno pode acontecer até no seio de famílias apoiantes, ou “suficientemente boas”, usando a terminologia do pediatra inglês Winnicott. A personalidade e o ambiente extrafamiliar também desempenham um papel importante na equação.
Dar a mão ao inimigo
No mundo empresarial existe uma expressão para designar pessoas muito ambiciosas que correm atrás de metas e resultados de forma compulsiva: os “overachievers”. Move-os a imperativa necessidade de fazer mais, com urgência e de forma irrepreensível, não tanto pelo sentido de brio e de missão – que não constituiria um problema ou uma fonte de sofrimento – mas por algo mais profundo, abaixo da linha de água: o pavor de serem expostos se alguma coisa sair do molde e não correr como seria suposto, levando-os a sentir-se não merecedores de confiança. Uma vez que as afirmações positivas não bastam para desmantelar esta crença, aplica-se aqui o lema “se não podes vencê-lo, junta-te a ele”. Ao inimigo interno. À voz autocrítica. De que precisa “o bicho”? O que acontece se o tranquilizar e lhe propuser algo como “nós podemos lidar com tudo o que nos aparecer no caminho? A sugestão partiu do psicólogo e coach Aziz Gazipura, especialista mundial em confiança social. Após dez anos de submissão a essa força de bloqueio, que caminha de mãos dadas com a timidez e a ansiedade social, foi dessa forma que conseguiu mudar a sua vida para melhor.
O autor do livro On My Own Side: Transform Self Criticism and Self Doubt Into Permanent Worth and Confidence defende que o segredo está na capacidade de aceitar essa parte de nós que nos tiraniza e desmoraliza, mas também na disposição de dialogar e negociar com ela, para poder dirigir essa força interna a nosso favor. Nos seus workshops e palestras, defende que podemos lá chegar através do treino de competências para alcançar cinco metas simples: colocar um travão na comparação e autocrítica constantes; reconhecer e cultivar o valor próprio e a confiança interna; escolher confiar mais em si e menos na dúvida; vencer o receio de errar e “imunizar-se” à reprovação dos outros e experimentar gostar de si como é, sem excluir qualquer das suas partes. O “prémio” é deixar para trás pesos e dores e sentir-se mais pleno.
O QUE DEVE SABER
O que é a Síndrome do Impostor? Um mecanismo de defesa que se traduz no desfasamento entre a imagem que a pessoa tem de si (negativa) e aquela que os outros têm dela (geralmente positiva). A sua insegurança, o elevado nível de autocrítica e de exigência impedem que vejam os seus sucessos. Em vez disso, têm pavor de não conseguir replicá-los no futuro, achando que são uma farsa.
De que formas se pode manifestar no corpo? Sintomas de mal-estar idênticos aos do “panicar”: palpitações, transpiração, suores frios, palidez, tonturas, dores de cabeça e fraqueza súbita. Em casos limite, que são raros, pode chegar ao desmaio (o nervo vago, situado na nuca, entra em ação e reduz a pressão arterial e os batimentos cardíacos, como forma de “arrefecer” o sistema).
Como se ultrapassa? Falar do assunto com pessoas de confiança ou um profissional de ajuda. Aceitar partes de si que considera “defeituosas” ou imperfeitas no seu discurso interno (as conversas mentais no duche, antes de adormecer, durante uma tarefa ou deslocação para o trabalho), perceber que necessidades representam e criar um consenso entre todas as partes, sem excluir nenhuma.
TESTE: Avalie se as suas defesas jogam a seu favor ou contra si
Responda a esta lista de 20 itens da escala assinalando um dos números:
1 – Totalmente falso; 2 – Raramente; 3 – Às vezes; 4 – Com frequência; 5 – Totalmente verdadeiro
- Correu-me bem uma avaliação ou tarefa mas tive medo de falhar antes de fazê-la
- Dou a ideia de ser mais capaz do que realmente sou
- Evito avaliações e tenho pavor de ser avaliado(a) por terceiros
- Quando recebo elogios por algo que fiz receio não conseguir responder às expetativas
- Às vezes acho que só cheguei onde cheguei por estar no local certo à hora certa
- Tenho medo que as pessoas que gosto descubram que não sou tão capaz como pensam
- Costumo lembrar-me mais das vezes em que não dei o meu melhor do que o contrário
- Raramente faço uma coisa tão bem como gostaria
- Às vezes, sinto que meu sucesso na vida ou no trabalho foi fruto do acaso
- Custa-me aceitar elogios sobre mim ou acerca das minhas conquistas
- Às vezes, sinto que meu sucesso é fruto da pura sorte
- Às vezes dececiono-me com as minhas realizações e acho que devia ter feito mais
- Por vezes temo que outros descubram as minhas falhas de conhecimento e competência
- Muitas vezes receio fracassar numa nova tarefa ou projeto, embora me saia bem
- Quando eu tenho sucesso em algo e sou reconhecido(a) duvido que consiga mantê-lo
- Se recebo muitos elogios e reconhecimento pelo que fiz tendo a não lhe dar importância
- Muitas vezes comparo-me com outros e penso que podem ser mais inteligente do que eu
- Preocupo-me em não ter sucesso num projeto ou exame, mesmo se outros têm confiança de que me vou sair bem
- Se for receber uma promoção ou prémio, hesito em contar a outros
- Sinto-me mal se não for “o(a) melhor” em situações que envolvam realizações.
Cotação: Some os números das respostas de cada item. O risco de desconforto psicológico aumenta em função do total de pontos obtido
Até 40 pontos: não compromete as suas rotinas nem afeta o seu bem-estar
41 – 60 pontos: tem experiências moderadas do fenómeno do impostor
61 – 80 pontos: tem sentimentos frequentes do fenómeno que afetam o seu bem-estar
80 ou mais pontos: tem experiências intensas deste fenómeno que trazem sofrimento e comprometem seriamente a sua qualidade de vida, podendo precisar de ajuda
Fonte: Clance Impostor Phenomenon Scale (CIPS) – Pauline Rose Clance, The Impostor Phenomenon: When Success Makes You Feel Like A Fake, 1985, Toronto: Bantam Books