Mulher. Atleta. Lésbica. A ex-tenista de origem checa e naturalizada americana, uma das maiores tenistas da história e ícone da causa gay, foi expulsa este mês do grupo LGBTQ “Athlete Ally”. Motivo: um texto publicado no jornal The Sunday Times em que defendia que a participação de mulheres transexuais em competições femininas era uma forma de batota: “Deixar os homens competirem como mulheres apenas porque mudaram o nome e tomaram hormonas é injusto.” Injusto por continuarem a ter uma biologia masculina e esse legado genético não contar para o campeonato, digamos assim, dando-lhes uma vantagem à partida.
A organização considerou o comentário transfóbico. Outras organizações defensoras da inclusão de minorias sexuais, como a Trans Actual, lamentaram a atitude da antiga campeã de Wimbledon, um presente envenenado: se ganham, é porque têm vantagem biológica; se não ganham é por não se revelarem, afinal, grandes atletas.
No Twitter, o conflito subiu de tom. Martina não se fez rogada e tweetou: “Fico feliz em falar com mulheres trans do modo como preferirem, mas não gostaria de competir com elas porque é injusto.” E será que Martina tem razão, quando diz que há uma vantagem competitiva da biologia que acaba por prejudicar as outras desportistas?
O elefante no meio da sala
Há dois anos, o Comité Olímpico Internacional adotou uma nova política relativamente aos atletas trans: os homens podiam participar nas competições oficiais sem qualquer tipo de restrições; as mulheres teriam de ter níveis de testosterona iguais ou inferiores a 10 nanomol por litro na corrente sanguínea, no ano prévio à prova. Porém, há outras diferenças a considerar no corpo de um homem – densidade óssea, massa muscular, o próprio esqueleto e o sistema cardiovascular – que dão vantagem ao competir no desporto feminino. Martina, que sempre defendeu os direitos da comunidade LGBTQ no desporto, e até foi treinada pela primeira profissional trans da modalidade (Renée Richards), despertou os fantasmas do estigma e da discriminação. Mas a ciência parece estar do lado dela.
“A atleta, que reflete o pensamento de muitos atletas desportivos heterossexuais, teve a coragem de verbalizar o que só se fala em círculos restritos”, afirma João Paulo Almeida, diretor-geral do Comité Olímpico de Portugal (COP). Ser ativista e famosa dá outro peso à discussão sobre “a evolução dos standards da competição, que têm vindo a ser melhorados, embora haja ainda muito a fazer”. O representante do COP adianta que “há países com políticas consolidadas que visam transformar homens em mulheres pela via hormonal para terem vantagens competitivas em determinado tipo de competições”.
Quando se fala de manipulação de resultados pensa-se em substâncias químicas que potenciam o desempenho, em pequenos propulsores usados com a intenção de alavancar uma prova de canoagem e, até, motores minúsculos colocados numa bicicleta. No caso da reatribuição sexual, as terapias hormonais podem ser consideradas uma forma de manipular uma competição? “Ainda é cedo para dizer, mas a questão está na ordem do dia”, sintetiza João Paulo Almeida.
A ditadura da biologia
Paulo Corte-Real, que dirige há mais de um ano o Coisas do Género, plataforma de reflexão e intervenção sobre género e sexualidade, fala na necessidade de compatibilizar posições em vez de extremar conflitos. No desporto em particular, “é preciso trocar experiências e criar empatia e dialogar reivindicações “. Não é o que está a acontecer agora. O professor universitário fala numa dupla tensão, fruto do abalo no ativismo trans que deseja ser reconhecido na sua identidade, e do facto de existirem modalidades femininas e masculinas por se aceitar que existem diferenças físicas entre sexos.
Para o sexólogo Nuno Monteiro Pereira, Martina tem razão: “Não faz sentido a comunidade [LGBTQ] sancioná-la por afirmar coisas que não lhe são agradáveis.” A mudança de sexo, total ou parcial, e a manipulação hormonal “não modificam totalmente o corpo, mesmo que o cérebro seja feminino”. O médico refere-se à “ditadura da biologia” que as associações LGBTQ esquecem ou querem esquecer. “O género define-se após 24 meses de vida e pode até ser uma construção social, mas no desporto não se aplica”. Um corpo masculino com uma mente feminina e não sujeito a manipulação hormonal pode competir com atletas masculinos. O sexólogo lembra que a pessoa trans “já não tem a pressão social que tinha para mudar de sexo, e na maioria das vezes não quer a cirurgia porque aceita a sua diferença”. O problema é na hora da competição desportiva, na medida em que “essa diferença comporta limitações”.
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