No início, este texto cheira a café acabado de tirar. E pode ser lido de trás para a frente ou de frente para trás, porque a história que vamos contar, e que dá pelo nome de Nãm, desenrola-se em círculo virtuoso, com epicentro num rés-do-chão da Rua dos Anjos, a chegar ao largo do Intendente.
O seu protagonista é Natan Jacquemin, 23 anos, belga – um pormenor que se reflete apenas na comunicação, já que o seu português ainda não é perfeito. Este antigo estudante do mestrado em Gestão na Universidade Católica vive em Lisboa há um ano e meio. Agora que já não tem aulas nem teses para defender, nem por isso voltou para a Bélgica. Preferiu antes investir cinco mil euros para dar corda a um negócio sustentável de economia circular. “Não me contento com a forma redutora de criar valor que nos ensinam na escola. Gostaria de gerar valor económico, sim, mas também social e ambiental.” São princípios que foi buscar à Blue Economy, um modelo inspirado na Natureza, em que não existe desperdício.
Está a dar os primeiros passos no seu projeto, e à procura de investidores, pois considera que a ideia tem tudo para correr bem e resume-se numa frase: Aproveitar as borras de café que os comerciantes deitam para o lixo para produzir cogumelos boletus e depois voltar a vendê-los às mesmas pessoas que lhe guardam os desperdícios.
Sabe de antemão que existe a Gumelo, uma empresa nacional criada em 2012 por três amigos, com ideias semelhantes – vender caixas de cartão para que, em casa, qualquer um de nós, possa gerar cogumelos a partir de borras de café inutilizadas. O processo de produção é o mesmo. A finalidade não.
Uma bica que é um desperdício
Enquanto circulamos por Lisboa, no seu velhinho Twingo descapotável, num constante para-arranca com o objetivo de apanhar os restos de café, Natan vai falando do desperdício que se contabiliza por ano, só em Lisboa. E mostra que sabe a lição de cor: “Poucas pessoas sabem que a colheita, o processamento, a torragem e a preparação do café são actividades que resultam em 99,8% de desperdício de biomassa. Enquanto apenas 0,2% por cento adquire valor no mercado, o remanescente – rico em cafeína – acaba por ser desperdiçado. Um valor estimado de 15 milhões de toneladas de desperdícios agrícolas são deixados em decomposição, gerando milhões de toneladas de gás metano e contribuindo, dessa maneira, para as alterações climáticas.”
Nisto chegamos à Baixa e Natan arranja um lugar quase à porta. Abre a bagageira, tira de lá uma caixa de plástico e dirige-se ao Juicy, na Rua se São Julião, um dos muitos cafés trendy que recorrem à Flor da Selva, uma pequena torrefação, de carácter artesanal. Foi esta empresa familiar que lhe deu a lista de uma dúzia de sítios onde Natan vai, desde setembro, apanhar as borras. Recolhe cerca de 500 quilos por mês, quantidade de que necessita para fazer crescer os seus cogumelos urbanos.
É suposto os restaurantes guardarem-lhe de véspera os restos nas caixas que lá deixa, para ficarem bem acondicionados, minimizando assim o risco de as bactérias entrarem no café já esterilizado. “Para produzir os cogumelos, preciso de fibra limpa. A água quente utilizada nas bicas faz esse trabalho por mim – é mais uma forma de economizar energia.”
Marion R. é a manager do Juicy e está visivelmente satisfeita com esta parceria, muito embora só vá ver o resultado das suas dávidas dois dias depois. “Esta oferta faz todo o sentido. Nós já gastámos o dinheiro no café, por isso qualquer aproveitamento é bom.”
Aqui come-se saudável e, de preferência, orgânico. Será este o perfil dos outros cinco sítios onde parámos com Natan, nesta tarde de outubro: mais dois no Cais do Sodré, um no Poço dos Negros, outro na Rua das Gaivotas e o último na Rua da Esperança. Aqueles que não visitámos desta vez também ficam por perto e inserem-se no mesmo género de oferta.
Incubação de três semanas
Carlos Boavida está em stress para gerir os pedidos dos clientes do café que leva o seu apelido. Mesmo assim, consegue dizer-nos que mal ouviu a proposta de Natan, nem pensou duas vezes em contribuir com as borras que normalmente deitava fora. Quanto aos cogumelos, há de querer acrescentá-los à ementa. Já não falta muito, garante-lhe o empreendedor belga.
Quando regressamos àquele rés-do-chão no Intendente que lhe serve de incubadora, uma hora e meia depois de termos partido, percebemos que não exagerara na garantia. Já há cogumelos prontos a serem colhidos e degustados.
Para já, vemos Natan a preparar as borras que acaba de recolher, para que não fiquem mais tempo nas caixas. Na sala da mistura – desinfetada com álcool por causa das bactérias – começa por borrifar o saco de plástico que enfia num tubo aberto dos dois lados e prende com molas. Pesa cinco quilos de café, mistura-lhe 100 gramas de sementes e ainda acrescenta dois a três quilos de palha molhada. Depois de fechar o saco, pendura-o numa sala escura, cheia de cordas pendentes de traves de madeira (tudo isto foi feito no verão, artesanalmente, quase sem ajudas), onde se sente um forte cheiro a café. É aqui que os cogumelos começam a germinar, como se estivessem a rebentar da casca das árvores, tal como acontece na Natureza. Quando os sacos perdem a cor castanha e começam a esbranquiçar, significa que terminou o período de incubação, o que normalmente acontece ao fim de três a quatro semanas.
Imitar a Natureza
Natan muda-os então para outra sala, para frutificarem, sempre imitando as estações e o processo natural. Sente-se a humidade, em forma de vapor, mas também a circulação de ar, saído do circuito aqui montado para que o ambiente seja o perfeito para os cogumelos brotarem. Em alguns sacos, vemos então os fungos identificados como pleurotus, que os cafés hão de comprar a oito euros o quilo. “Não tenho selo, mas a minha produção é totalmente biológica”, assegura este agricultor urbano.
Já passaram seis semanas desde a primeira vez que recolheu borras e iniciou este processo circular, por isso já pode cortar os primeiros cogumelos que levará aos seus potenciais clientes para degustações. É disso que se ocupará nos próximos dias, enquanto deixa que a fabricação da Natureza faça o seu trabalho.
Voltamos a entrar no Juicy. Desta vez é o chefe Iuri Cardoso que nos recebe e chama para a cozinha. Natan levou-lhe cerca de um quilo de cogumelos e ele está prestes a cortá-los e salteá-los num ápice, com azeite, alho e alecrim. Depois de os provarmos assim, achamos que não precisam de mais nada. Mas quem sabe é o chefe, e ele prefere juntá-los ao mix que normalmente serve nos flat breads (uma especialidade da casa), na salada morna japonesa ou num hambúrguer. “São muito bons”, solta, depois de depenicar uns exemplares. “A ideia é vir a substituir os shitake, que estão na mistura do restaurante, pelos Nãm do Natan”, assegura Iuri, apesar de se queixar do preço.
Chegados ao final do círculo virtuoso que é este negócio – e este texto -, perdeu-se o cheiro a café, mas ganhou-se um sabor delicioso a cogumelos. Os restos, porque ainda há restos que ficam nos sacos da mistura que Natan faz com as borras e a palha, hão de ser entregues a agricultores para fertilizante orgânico. Quando escrevemos no superlead que nada se perde, tudo se transforma, não era apenas um recurso fácil a uma frase feita. Era literal.