A identidade de cada cidadão português é única: resulta da sua carga genética e das suas experiências de vida, que são irrepetíveis. Mas parte importante dessa identidade pessoal não é original: advém de todos vivermos na mesma sociedade, que tem uma história e narrativas próprias. A identidade pessoal é, por isso, influenciada pela pertença ao colectivo. E esse colectivo é Portugal.
No limite, «ser-se português não implica partilhar uma qualquer essência ou substância inefável, mas tão-só reconhecer-se a si e a outros como tais, e a outros como diferentes, estrangeiros», diz José Manuel Sobral no livro Portugal, Portugueses: Uma Identidade Nacional. Ao longo da História, Portugal não foi sempre uma entidade uniforme: o norte do país tinha maiores afinidades culturais com a Galiza do que as que tinha com o actual Alentejo, que por sua vez era culturalmente mais próximo da Andaluzia e da Estremadura espanhola.
Então, que factores determinaram o surgimento e a solidificação da identidade cultural portuguesa? E que identidade é essa, afinal?
A língua
No seu clássico Comunidades Imaginadas, Benedict Anderson garante que a partilha de uma língua e a difusão de conhecimento através dessa língua comum são determinantes para que surja uma consciência nacional. Distinto do leonês e do galego, o português solidificou-se numa identidade popular porque beneficiou da independência do reino de Portugal. A cristalização dessa identidade foi feita (como veremos) à custa de mitos fundadores e da rivalidade com Castela. Mas a batalha pela identidade foi também linguística. Um exemplo: no ensaio Portugal: Um Perfil Histórico, Pedro Calafate cita Duarte Nunes de Leão e D. Francisco Manuel de Melo, que no século XVII descreveram a saudade como um termo próprio dos portugueses, pois só a eles o sentimento tocava tão particularmente.
Os mitos
Ao longo dos vários séculos, mas sobretudo no século XIX, autores tentaram filiar a identidade portuguesa numa linhagem antiga que remontaria aos lusitanos. Esse substrato biológico seria parte da justificação para a existência de um «génio português» que contrastaria com o carácter dos castelhanos. Mas dos mitos portugueses aquele que mais vingou, até porque contribuiu para legitimar o Reino desde a sua raiz, foi o de que D. Afonso Henriques teve uma visão de Cristo na véspera da batalha de Ourique. Segundo Duarte Galvão, citado na obra de Calafate, o futuro rei de Portugal obteve nessa visão de Cristo a garantia de «sempre Portugal haver ser conservado em Reino». Portugal era, portanto, o «povo eleito» por Deus.
A religião
As batalhas de D. Afonso Henriques deram-lhe a vitória sobre cinco reis mouros, os mesmos que as sucessivas bandeiras nacionais destacaram em cinco quinas. Noutra versão da lenda, as cinco quinas representam as cinco chagas de Cristo que D. Afonso Henriques viu na sua visão do filho de Deus. Seja como for, a História de Portugal é em boa parte uma história de devoção cristã: os mouros e os judeus foram repetidamente separados dos “verdadeiros” portugueses, acantonados em mourarias e judiarias.
Foram obrigados a usar insígnias no vestuário e submetidos a impostos elevados. Enfrentaram periodicamente perseguições e pressões para se converterem. Em finais do século XV, D. Manuel I decretou mesmo a conversão forçada, o que prova, segundo José Manuel Sobral, que «para o poder e para o povo ser-se português sempre foi ser-se cristão acima de toda a suspeita de não o ser, como acontecia com os chamados cristãos-novos.»
A expansão
Na bandeira nacional há cinco quinas, símbolo da unidade de um povo; e há uma esfera armilar, o símbolo da expansão ultramarina portuguesa. Nos séculos XV e XVI (até à derrota em Alcácer Quibir e a posterior união dinástica com Castela), intelectuais como Fernão Lopes e o Padre António Vieira situavam Portugal no centro de um novo mundo, como ponto de confluência da História mundial. António Vieira chegou mesmo a dizer que Portugal foi fundado e instituído por Deus, ao contrário de Israel, que resultava não da «vontade deliberativa» de Deus mas da sua «vontade permissiva» (Deus não quis, mas, em resposta à insistência do povo de Israel, ‘permitiu’ que tivessem rei). A recolha destas citações foi feita por Pedro Calafate e ilustra o entusiasmo quase delirante com que em Portugal se viveu a fase dos Descobrimentos. Um entusiasmo que devia muito ao seu espírito de missão: a conquista ao serviço da fé e do Deus cristão, com quem Portugal tinha uma relação especial.
Castela
O sentimento contra Castela é forte em Portugal desde a independência: ao longo dos séculos, as disputas territoriais foram feitas de conquistas e revoltas que se sucederam e alimentaram a animosidade de parte a parte. Castela foi desde sempre «o outro significante», importante para a construção (como contraponto) da identidade colectiva portuguesa. Mas a xenofobia anti-castelhana atingiu o seu pico no período da união dinástica no século XVI, «um trauma profundo num tempo em que Portugal cultivava sentimentos de superioridade assentes na expansão ultramarina» (de acordo com José Manuel Sobral).
A decadência
Antero de Quental e outros autores romperam com a ideia de uma relação especial de Portugal com Deus. Com a queda do império (sobretudo resultado da independência do Brasil), um sentimento de decadência apoderou-se da intelectualidade e do povo portugueses. Quental viu em Luís de Camões uma metáfora de Portugal: o cantor das nossas glórias que nos empobreciam, mendigando para sustentar a velhice, triste e desalentada. Para Quental, as conquistas, o catolicismo e o absolutismo eram as Causas da Decadência dos Povos Peninsulares. No século XX, Fernando Pessoa criticaria o «estado de marasmo e de debilidade» do «Portugal-centavos» que via decadente.
A crise
Um inquérito (International Social Survey Programme) de 2003 sobre a identidade nacional revelou que os portugueses mostram orgulho na sua história, no seu desporto, arte e literatura. Os aspectos que menos motivam o orgulho são a segurança social, a economia, a democracia e a influência política de Portugal no mundo. Dependente política e economicamente do centro e do norte da Europa, o Portugal de hoje vive com uma «sensação geral, anódina, de crise permanente que nunca se esgota e que todo o material mundano pode servir», como a descreve Carlos Leone em Crise e Crises em Portugal. Essa ideia generalizada de que vivemos em crise «é influente desde logo porque se dá como natural». A crise «deixou de ser o momento de viragem e passou a ser um estado; deixou de ser produtiva e passou a ser um processo de reciclagem interminável; perdeu o seu carácter excepcional e tornou-se um contexto que deixa camuflada a realidade.» Seja ela mais ou menos real, a sensação de crise em Portugal é talvez o factor mais recente a ter influência de peso sobre a identidade nacional.