Na sua casa, em Lisboa, o homem que todos conhecem por ser um clínico com uma postura acutilante e destemida recebe-nos sentado no sofá, acompanhado da sua nova companhia, uma cadela pug, que diz preferir aos felinos. Filho único, crítico em relação à família, pai e avô por quatro vezes e avesso a todo o tipo de dogmas, Carlos Amaral Dias não se deixou vencer pelas sequelas deixadas pelo AVC que sofreu há quatro anos. Aos 70, não chegou a ser o jornalista que sonhava ser. Em vez disso, colaborou em vários media portugueses, continua a trabalhar no seu consultório e dedica-se à AP (Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica), que fundou com outros psicanalistas. E, no final de outubro, lançou mais uma obra, em parceria com a colega e amiga Clara Pracana. Quando o Estranho Bate à Porta (Climepsi, 216 págs., €19,90) foi o pretexto para ir ao encontro do pensador, freudiano assumido, e acompanhar o seu olhar sobre as “estranhas” questões que marcam os nossos dias.
O que o fascina tanto no conceito de estranho? Já na TSF tinha um programa de rádio com um nome semelhante (Esta Inquietante Estranheza).
O estranho resulta do não familiar e implica abrir a mente ao desconhecido, sem medo. O contacto com o que não se sabe caracteriza os avanços na ciência, e está presente na atitude poética e na alma humana. Saber é saber acerca de e, ao mesmo tempo, não o saber.
Que tema escolheria para um programa de rádio, ou outro, hoje?
Cosmopolitismo e fanatismo, porque, na sociedade que temos, a abertura ao diferente coexiste com o agarrar-se a certos pontos de vista. Tenho uma mulher em análise que esteve num campo de refugiados e contou-me que, ali, as crianças eram capazes de brincar umas com as outras, como no filme A Vida é Bela. Aquilo só pode acontecer porque a criança participa na mentira, no desmentido do pai, por saber que ele o faz por amor ao filho. Freud disse, por ocasião da Primeira Guerra Mundial, “eu sou do tempo em que cada um de nós transportava o seu próprio Parnasus, a sua própria Atenas”, um tempo em que os intelectuais viam aqui um refúgio. Isso está a desaparecer e deixa-me muito zangado com a Europa, a mesma em que há jovens a pensar que Darwin é uma marca de sapatos.
Como fala desse mundo à sua filha mais nova, agora com 13 anos?
Sempre fiz questão de passar a todos os meus filhos a mensagem que referi há pouco: amem o desconhecido. Ao Henrique, à Joana e, agora, à Leonor. Instalei-lhes esse vírus, que nos consome, mas nos dá o sentimento de que vale a pena viver. O lado tendencialmente provocador.
Quem diz diferente, diz liberal, ou que foge à norma. Isso é uma marca comum a si e aos seus?
Sim. A minha filha Joana, por exemplo. O Bloco de Esquerda, naquilo que diz é, de certa forma, liberal. Defende causas que também são minhas: a interrupção voluntária da gravidez, os casamentos e a adoção por casais do mesmo sexo.
Como encara a legalização das drogas leves?
Completamente a favor. Os estudos revelam que não há diferenças entre quem consome e não consome, a nível de assaltos por exemplo. A ideia de que o consumo de umas potencia o das outras está por provar.
Na política portuguesa, há mais gente fanática ou depressiva?
Vou contar-lhe uma anedota a esse respeito. Os judeus adoram café. Um dia, um judeu saiu de um café e viu um homem vestido de branco com um ar diferente. E perguntou-lhe: Você é Deus, não é? O outro: “Sou.” E o primeiro: “Qual é o nosso Deus: o Messias? O Alá?” Deus responde-lhe: “Você é maluco? Acha que eu sou religioso?”
Estou a pensar na Geringonça e na Caranguejola…
Caranguejola, nunca tinha ouvido. Isso designa o Passos Coelho? E a Geringonça, significa uma aparente falta de solidez? A maneira como as palavras ganham uma dimensão que não têm liga-se à forma como são usadas. É o caso de “psicanálise”, ou de “psicodrama”, que tiveram um momento de glória na voz dos políticos.
Os políticos são responsáveis pela imagem distorcida da saúde mental?
A Organização Mundial de Saúde dizia, há algum tempo, que a maneira como um país encara as questões da saúde vê-se pelo modo como exige cuidados de saúde mental. Somos um povo com dificuldade em libertar-se.
O tipo de diagnósticos é hoje diferente de há algumas décadas?
Evoluiu o modo como olhamos. As personalidades limite, ou borderline, eram consideradas histerias no tempo de Freud. Os borderline e com esquizofrenia não se reconhecem naquilo que se mantém constante neles. Não têm personalidade, têm outra coisa. E têm raiva narcísica, tentativas de exercer um poder que é vazio.
Acha que a Geringonça foi bem digerida pelos portugueses?
Se, como muitas pessoas pretendem, António Costa quis ter o poder com o apoio do PCP e do BE, isso é um julgamento moral. O poder está acima da moral, ou é visto como acima dela por quem o exerce. Não conheço estudos feitos com políticos, mas os que existem com dirigentes de empresas mostram uma relação entre o exercício do poder e as perturbações da personalidade: cerca de 30% têm perturbações narcísicas e de tipo borderline. Os políticos não são assim tão diferentes.
Na campanha presidencial americana, a insanidade dos candidatos foi um tema recorrente.
Merece a pena questionar é porque é que, a nível global, assistimos ao regresso ou à revitalização dos que se intitulam salvadores, sejam eles Trump, Erdogan, Putin ou quem ergue muros na Europa. Ou porque é que há tanto espaço para dirigentes nacionalistas no mundo.
Somos todos descendentes de assassinos, como costuma referir nas suas palestras?
A afirmação não é minha, é de Freud, embora ele não o tenha dito assim. Quando uma tribo se encontrava com outra, os que perdiam o fígado em primeiro lugar eram os fraquinhos, não eram os fortes. O mesmo para a reprodução: as mulheres possuíam os genes dos mais fortes e inteligentes, os que inventavam coisas, a bem da sobrevivência da espécie.
A força, ou a fraqueza, dos movimentos sociais: os taxistas que se manifestaram estavam de cabeça perdida?
Teve o efeito oposto ao que se pretendia, apesar de eu gostar daquilo que em Maio de 68 se chamavam greves selvagens e ser avesso à autoridade.
Já era assim desde miúdo? Avesso à autoridade?
Sim, mas uma vez interroguei-me. E se o ser a favor do antissistema me empurrar para pessoas como Hitler, que também não era do sistema? Compreendi que não podia pensar assim. Eu nunca quis ser um rebelde. Era porque era.
Quem estaria mais necessitado de divã: António Costa ou José Sócrates?
Sócrates resolveu o problema dele quando adotou o nome José Sócrates. Ele é ele, não tem pai nem mãe. Eu, Carlos Amaral Dias, estou condenado a ser filho do meu pai, António, e da minha mãe, Nazaré. Porque é que quem inventou o Bilhete de Identidade achou que lá deviam constar os nomes do pai e da mãe? Ninguém escapa a isso, mesmo apesar dessa coisa extraordinária que foi a Revolução Francesa, a partir da qual o poder deixou de depender dos laços de sangue.
António Guterres alcançou uma posição de poder mundial sem ser um rebelde. Que leitura faz disso?
É uma pessoa inteligente, característica comum às pessoas que têm alguma diferenciação. Ele costumava ir buscar aos seminários a sua primeira mulher, uma psiquiatra com formação analítica e que era minha aluna. Trocámos conversas de ocasião. Vi-o como um homem redondo, sem arestas, ou que não as mostrava.
O que leva alguns governantes a assumirem-se como católicos?
Os portugueses adoram a religião, embora não a pratiquem. Acreditam que quem é católico é bom chefe de família. Ser católico, em Portugal, confere seriedade.
António Costa não se inclui neste grupo, onde pertencem Marcelo e Guterres e… Cristiano Ronaldo.
Não se elegem governantes laicos por serem laicos. Mas, se forem religiosos, isso joga a favor deles na organização social. Não podemos esquecer que temos a Concordata com o Vaticano, o único Estado teocrático do mundo, e isto corresponde a um desejo latente na população.
Estamos a chegar ao fim do Ano do Entendimento Global. Parece-lhe irónico que ele seja marcado pela falência das instituições?
Espanta-me. Aí é que está aquilo que ia falar há bocado, sobre o desmentido. O Papa perde o seu nome e ganha o que lhe é atribuído pela Igreja que vai representar. Ao contrário do Bento XVI, mais tradicional e um de vários Bentos, é a primeira vez que a Igreja, com a sua enorme capacidade de reinventar-se, tem um Papa Francisco, mais ligado às emoções. Espero que não chegue a haver um Papa Carlos [ri-se]. Sinto-me um pouco atingido na minha identidade!
Apesar do sucesso no futebol, no turismo e da projeção no mundo, a identidade portuguesa ainda é marcada pela dependência do “pai salvador”, seja ele austero, hiperativo, homem dos mercados ou pródigo em afetos?
Como o Mário Soares, que sabia ouvir as pessoas. Cavaco Silva ou o general Ramalho Eanes, têm uma imagem pública mais austera e autoritária. António Costa, por exemplo, o que foi fazer à China? Mercados. É o milagre da comunicação mentirosa: uns ficam ligados aos mercados, outros são vistos como uns chicos, outros como impolutos e sem nada a ver com os mercados. É fantástico, não é?
Poderia dizer-se que é estranho.
Não espero milagres dos políticos. Tivemos o Salazar e veja o que nos ia acontecendo! Precisamos de acreditar num político. Se eu tivesse uma medida de zero a 100, bastava que ele desse 20 à causa pública e que o resto fosse movido pelo seu narcisismo. Mas estou a ser utópico.
Ou então caminhamos para uma distopia institucional. O que significam o Brexit ou os muros à prova de emigrantes e refugiados?
Outra utopia, chamada Europa. Eu sou um federalista. Se tivéssemos um exército e uma política fiscal comum, haveria um espaço mais favorável ao desenvolvimento europeu. A situação dos refugiados é um problema do qual a Europa se vai arrepender.
Já nem com comezainas lá vai. Não é o professor que diz que, enquanto estão todos à volta da mesma mesa como comensais, não se matam?
É, sou um bocadinho bruto. A Europa que Kant definiu como unida não aconteceu. Foi feita a pé, pelo exército do Carlos Magno e também pelo de Hitler. A rua onde eu moro tem nomes de pessoas. Se vivesse nos Estados Unidos, as ruas teriam números. Em Paris, as ruas têm nomes como Descartes. Na cultura inglesa, os edifícios têm o nome de quem lá viveu. Nós, europeus, temos uma relação com a memória e em nome dela deveríamos criar condições para o medo não voltar. Os Estados Unidos da Europa seriam a forma de não nos matarmos uns aos outros.
Tem esperança que isso venha a acontecer?
Não sou adepto das teorias da felicidade. Acredito que é possível ser minimamente feliz.
Os pacientes perguntam-lhe como é que isso se faz?
Perguntam. Ao procurarem a felicidade, caem numa utopia.
Numa distopia também não corre lá muito bem.
Mas há alguma utopia que não seja uma distopia? Quer coisa mais distópica do que a descrição feita por Thomas More? As ruas todas iguais, as casas todas iguais. Eu lá queria viver assim… É um crime contra o indivíduo. Foi em abono disso que se fizeram os chamados países comunistas. Os fascismos. Os nazismos. Mussolini dizia que o indivíduo fora do Estado não existe.
O que mudou na sua vida depois de ter sofrido um AVC?
Algumas coisas mudaram para pior. Sempre fui avesso à dependência. Agora sei o que é ficar na mão do outro. Precisar de alguém para me calçar os sapatos ou cortar o bife. Nem sabe o que isso custa. Pedir à secretária para me levar da mesa para o sofá. Nada disso é bom e foi o que eu perdi. O que ganhei? Não tenho medo de mostrar aos outros o quanto os amo, sem defesas narcísicas que afastam o outro. A minha solidão era importante para ler, escrever, ter a minha autonomia. Agora sou menos filho único. Continuo a não acreditar na felicidade mas estou a apreciar cada vez mais o vínculo com o outro.
Isso refletiu-se na relação com os seus pacientes, ou clientes?
O psiquiatra fala em doentes. O psicanalista, em pacientes. Gosto muito do termo, que deriva de Pathos. Significa ter paciência e aprender, como aprendi com eles, a viver com o seu sofrimento.
Se pudesse trocar correspondência com Freud, o que lhe diria?
“Foi muito bom conhecer-te mas foi muito mau conhecer-te, porque tiraste algumas das minhas ilusões.” Ele escreveu um livro chamado O Futuro de uma Ilusão. Eu estou condenado a ser o arauto do futuro das desilusões.