A verificação não é teórica. É a realidade que a demonstra. A maior parte das pessoas que hoje procuram a rede nacional de Comissões para a Dissuasão da Toxicodependência (CDT) são consumidoras de cannabis. E apresentam uma dependência que as torna “incapazes de corresponder a outros aspetos” da sua vida, relata à VISÃO João Goulão, diretor do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD). “A substância transforma-se no centro das suas vidas.”
O tema será por certo objeto de debate no balanço dos 15 anos da lei que em Portugal descriminalizou o consumo e a posse para uso próprio de drogas, que esta terça e quarta-feira, dias 8 e 9, reúne no Porto dezenas de especialistas. A propósito, João Goulão diz que está atualmente adquirida a consideração técnica de que a cannabis “deixou de ser uma droga leve”.
Consumidores compulsivos de cannabis a ser tratados nas CDT apresentam, por exemplo, quadros clínicos de “surtos psicóticos” e de “ataques de pânico”, descreve o diretor do SICAD. “A cannabis de hoje é mais potente”, explica João Goulão. “Manipulações na planta aumentaram os efeitos do THC”, o princípio ativo da substância.
Já houve tentativas para legalizar em Portugal a distribuição e o consumo de cannabis. O Bloco de Esquerda procurou legislar no sentido da utilização da substância para fins terapêuticos, e a Juventude Socialista para uso recreativo – ambos sem sucesso.
Por agora, o diretor do SICAD encontra-se entre os céticos da legalização. “No consumo de cannabis, está demonstrado que as coisas não são tão inocentes como se pressuporia no início”, diz. “O quadro legal existente é satisfatório.”
Mas João Goulão afirma ser necessário “acompanhar novas experiências, ver as suas vantagens e desvantagens”. O diretor do SICAD refere-se a “laboratórios sociais” como os dos EUA, onde a cannabis já é legal em quatro Estados. Noutros cinco Estados, a questão vai a votos nas eleições desta terça-feira, 8.
SALAS DE CHUTO? SIM
Desde a entrada em vigor, há 15 anos, da lei portuguesa que descriminalizou o consumo de drogas (elogiada internacionalmente), diminuiu a taxa de infeção por VIH entre os toxicodependentes, baixaram as mortes por overdose e decresceu o número de condenados por tráfico de estupefacientes.
Uma componente da lei, porém, continua por ser concretizada – as “salas de consumo assistido” ou salas de chuto. Aqui, o diretor do SICAD mudou de posição. Há pouco tempo, dizia ter dúvidas de que “ainda se justifiquem”, argumentando com a redução substancial de heroinómanos.
Mas as suas equipas no terreno convenceram-no do contrário. Em Lisboa e no Porto, reconhece agora João Goulão, “existem outra vez populações totalmente desorganizadas” de consumidores de heroína e de base de coca, ou crack. A maioria destas pessoas sofreu recaídas, “provocadas pelas dificuldades acrescidas por que passaram na recente crise”, diz.
“O que hoje é evidenciado pelas estruturas de redução de danos é um número significativo de pessoas com estas adições que estão fora da nossa rede”, admite. “As salas de consumo assistido vão suscitar a sua aproximação e a melhoria da saúde individual e coletiva destas pessoas.”
As salas de chuto hão de surgir nas zonas mais fustigadas pelo “consumo desorganizado” – e é de esperar protestos dos habitantes das redondezas. “É preciso fazer um trabalho de esclarecimento e de conquista da população”, antecipa João Goulão. O diretor do SICAD recorda o que se passou há duas décadas, com a constituição da rede dos então chamados Centros de Atendimento a Toxicodependentes. “Enfrentámos muitas resistências, mas as populações verificaram depois que o efeito era positivo.”