RECORDE A REPORTAGEM: Quando a morte chega pelo correio
A sua luta pró-eutanásia leva já 25 anos. Nitschke é hoje o mais radical porta-voz pela legalização da morte assistida para doentes terminais, e não só. Este médico australiano de 68 anos, fundador da Exit International, uma associação sem fins lucrativos com mais de 18 mil membros, defende o direito ao suicídio racional.
Escreveu o manual de referência para uma morte fácil e indolor, intitulado Peaceful Pill Handbook. Foi Nitschke quem, nos últimos anos, mais incentivou o uso do barbitúrico Z. como droga letal, servindo de fonte dos sítios fidedignos onde o medicamento pode ser adquirido e promovendo workshops pela Europa onde explica as técnicas mais eficazes.
Com tamanha proatividade, que lhe valeu o epíteto de Dr. Morte, comprou, como seria de esperar, diversas guerras. Algumas no seu país de origem, onde a classe médica, sobretudo a psiquiátrica, lhe é crítica. Mas mesmo entre os defensores da eutanásia, a sua abordagem agressiva está longe de ser consensual. A gota de água foi a morte de um homem Nigel Brayley, 45 anos que não estava com uma doença terminal mas sim deprimido e que se suicidou usando as técnicas que Nitschke lhe recomendou num fórum da Exit. Soube-se depois que Brayley era suspeito da morte da mulher e de uma namorada. Após este caso, Nitschke viu a sua cédula profissional suspensa pela Ordem dos Médicos australiana em julho de 2014. No final de 2015, queimou o seu diploma num ato público, abdicando de exercer como médico para poder continuar a sua luta pela causa do direito à morte tranquila.
Numa entrevista à VISÃO, feita numa longa troca de mails, Nitschke explicou a dimensão do mercado negro em torno da Z. e a forma como a droga penetrou em Portugal.
Se a lei de um país não permite a morte assistida, que opções procuram as pessoas que querem morrer com dignidade em caso de doença terminal?
A escolha entre os meios disponíveis, na ausência de uma mudança legislativa, depende sempre do indivíduo e do caso em questão.
Muitos ficam confusos com a grande quantidade de documentação necessária para uma candidatura bem sucedida na Suíça [onde o suicídio assistido é legal], ou não querem sair das suas casas e morrer num país estrangeiro.
Muitas vezes torna-se impossível viajar, o que muitas vezes sucede quando se está em fase de doença terminal. Por esta razão, há quem prefira importar uma droga, a Z., normalmente do México ou da China, onde o processo está bem organizado, e morrer em casa, mesmo correndo riscos. Há, claro, a questão da ilegalidade do procedimento muitos temem as consequências legais, e o risco de não comprar o produto certo. Ainda ontem visitei um paciente no Reino Unido que estava a agonizar com estas dúvidas, e por isso está a tentar as duas vias.
Pode-se, efetivamente, comprar de forma segura a Z. online? Há vendedores fidedignos que garantam a qualidade?
Há alguns. Recentemente o número de vendedores de confiança diminuiu, e existiu uma explosão de sites de burla. O número de fornecedores chineses de confiança, por exemplo, desceu de cerca de 10, em 2014, para apenas dois, hoje em dia. Nós acompanhamos todas estas mudanças e quando as confirmamos, publicamos na edição digital do livro Peaceful Pill Handbook.
Há muitos esquemas e burlões online a tentarem vender esta droga?
Muitos, e cada vez mais. Este é, diga-se, um mercado ferozmente competitivo. Há pouco tempo houve mesmo uma série de falsas denúncias desenhadas para prejudicar um fornecedor de confiança, presumivelmente para canalizar mais tráfego para os burlões.
A sofisticação dos sites burlões é grande. Há quem se apresente como uma organização não governamental e grupo de apoio aos doentes terminais, e até use a sua imagem e a da Exit International para credibilizar a venda da droga.
Sim, a utilização da imagem da associação e a minha própria para tentar passar a ideia de que o site é de confiança é um problema crescente.
Denunciamo-los sempre.
É por essa razão que aconselha sempre que se faça um teste de pureza do produto antes de o tomar ou injetar?
Na verdade, essa só se tornou uma questão relevante quando os chineses entraram no mercado, oferecendo a versão em pó da droga. Quem encomenda da América do Sul recebe o medicamento na versão esterilizada e engarrafada, e se a etiqueta estiver perfeita e o selo intacto, podem estar geralmente descansados que têm o produto certo. Já receber um pacote com 20 g de um pó branco causa muito mais preocupações, o que gerou o rápido crescimento da procura de kits para testes de pureza.
Tem ideia de quantas pessoas escolhem morrer em privado, utilizando este medicamento ou outras formas de morte assistida?
É muito difícil de estimar. Muitos dos nossos membros obtêm a droga como “rede de segurança”, na esperança de nunca terem de a usar. Às vezes ouvimos que aconteceu, mas muitas vezes não há seguimento. Sabemos que centenas de pessoas por ano compram a droga, mas, quantas efetivamente usam o produto, não conseguimos saber ao certo. Ouvimos falar de cerca de um caso por semana, mas tenho a certeza que isto é claramente uma estimativa por baixo. Por outro lado, é muito comum que um membro da família ou um amigo chegado nos contacte a dizer que alguém morreu de uma doença e deixou a droga, e que não sabem o que fazer com ela.
Sabe da existência da Z. em Portugal, ou alguma vez foi contactado por portugueses para a obter?
Sim. Aliás, a Exit tem um conjunto de membros portugueses, temos mais de 30 registados na nossa base de dados que dão Portugal como a sua zona de residência. Em 2014, fui a Lisboa falar com alguns membros. Cerca de metade dos inscritos compraram o nosso livro e, geralmente, todos o fazem com o fim de obter a droga. Uma vez, um português encomendou e, quando recebeu efetivamente o produto, ficou tão impressionado com o conteúdo que nos disse que ia contactar as autoridades para “fechar este tráfico ilegal de drogas”. Não sei se o chegou a fazer.
E sabe se alguns efetivamente morreram em Portugal através do seu uso?
A resposta é “provavelmente sim”. Isto porque sabemos que alguns indivíduos a receberam em Portugal e, como nunca mais ouvimos falar deles, acreditamos que provavelmente a droga terá sido usada.
Além desta droga, também defende o uso do Saco Exit [um saco de asfixia], que até ensina a fazer.
Algumas pessoas têm doenças que tornam a administração oral impossível, ou têm problemas em engolir ou vomitar (e muitas temem a possibilidade de vomitar). Nestas situações, o Saco Exit com Y. [um gás cuja aquisição é legal] é por vezes preferível. Ocasionalmente, as pessoas fazem esta escolha porque é uma opção legal que não implica um ato ilícito.
No Reino Unido tem feito workshops de suicídio. Está a planear fazê-los em Portugal?
Sim. Já estive em Portugal em 2014 e planeio ir em breve ao Porto, onde temos alguns membros.
Tem uma ideia da dimensão real do mercado negro desta droga?
Quanto vale o negócio da eutanásia? Não consigo estimar. O mercado negro está na distribuição da Z., mas não existe evidência do envolvimento de uma atividade criminal organizada. A razão para isto é que não existe um mercado permanente com um vendedor, por isso não se enquadra no modelo tradicional das drogas ilegais. Há anos que fazemos lobbying para descriminalizar a posse e a importação de pequenas quantidades (até 10 g). Isto encaixaria perfeitamente no modelo português da descriminalização da posse de drogas.
Ao facilitar de tal forma o acesso a quem quer morrer com dignidade por causa de doenças terminais, não teme estar a promover o suicídio para pessoas que não estão nessas condições, como aconteceu com Nigel Brayley?
Não concordo que dar às pessoas informação rigorosa sobre as suas alternativas para terminarem com as suas próprias vidas promova o suicídio. O que faz, sim, é dar informação que permite que um indivíduo possa fazer uma escolha informada. Alguns, quando obtêm informação de confiança, afastam-se da ideia. Como princípio, a Exit acredita que os adultos racionais devem poder conseguir acabar com as suas próprias vidas quando assim entenderem, sejam ou não doentes terminais. E o Nigel Brayley fez uma escolha racional para ele era melhor morrer do que ficar 30 anos preso por matar duas mulheres.
Quais são os seus argumentos principais para defender o suicídio racional?
Este é um tema muito complicado e, sobretudo, um tema que a profissão médica tem muita dificuldade em resolver. A opinião médica prevalecente é que todos os suicídios são uma manifestação de alguma (possivelmente não diagnosticada) doença mental. A ideia de que um adulto de mente sã possa escolher morrer é algo muitas vezes inconcebível para um médico. Foi precisamente esta minha convicção que levou à campanha que a comunidade médica australiana conduziu contra mim para me retirarem a carteira de médico. Mas a minha posição baseia-se na experiência que tenho nesta matéria há anos que estou envolvido no tema e tenho conhecido muitas pessoas com razões atendíveis e não-médicas para querem terminar com as suas vidas. Há, aliás, cada vez mais artigos com esta perspetiva em jornais académicos.
(Entrevista publicada na VISÃO 1198, de 25 de fevereiro de 2016)