A história de Portugal também é feita de histórias de intriga, concluio, traições e vinganças. Rui Cardoso, jornalista do Expresso e diretor do Courrier Internacional, recolheu mais de uma centena destes episódios no novo livro “Tudo Pelo Poder”, em relatos divertidos mas rigorosos. Selecionamos cinco histórias do livro lançado esta semana, que vão dos arqueiros medievais ao futebol, passando por Spínola e e espiões.
1385
O segredo dos arqueiros
Com as derrotas francesas na Guerra dos Cem Anos, a cavalaria pesada deixa de ser a rainha incontestada do campo de batalha medieval. As armas que o permitiram (o arco e a besta) já eram conhecidas desde a antiguidade clássica. Faltava era usá-las de forma eficaz.
Ao contrário do arco, a besta só faz tiro tenso, isto é, segundo uma trajectória rectilínea. O projéctil respectivo, o virote, roda sobre si próprio, à maneira de uma broca, e tem um poder de penetração maior, capaz de atravessar as mais espessas armaduras medievais.
A arma maioritariamente usada em Portugal foi a besta. Enquanto nas setas a estabilização da trajectória era assegurada por penas, no virote as aletas eram de madeira ou pergaminho. O que, neste último caso, foi aproveitado pelos besteiros lusos para aí escreverem obscenidades delicadas ao inimigo castelhano, como referem as crónicas de Fernão Lopes.
Em contrapartida, a recarga da arma, mesmo com manivela, era lenta e, em campo aberto, o besteiro tinha que estar protegido por um escudo fixo, o pavez, entre dois tiros. A menos que se posicionasse atrás da sua infantaria, o que só era viável em declives.
Os cavaleiros não tinham piedade dos besteiros se os apanhassem isolados e trucidavam-nos. Mas estes retaliavam com tácticas que hoje chamaríamos terroristas: era frequente envenenarem a ponta do virote para provocarem infecções mortais e a forma mais fácil de o fazer era com esterco, humano ou animal. Foi assim que o emir almoáda Abu Yaqub Yussuf foi mortalmente ferido em 1184 durante o cerco a Santarém, defendida pelo futuro D. Sancho I.
Não menos odiados pelos cavaleiros eram os arqueiros britânicos que usavam de forma devastadora os seus arcos de teixo (long bows). Daí que um dos castigos mais frequentes dos prisioneiros consistisse na amputação dos dois dedos da mão direita indispensáveis para manusear o arco. Virá daí o gesto britânico do «V» da vitória feito com o indicador e o médio?
O long bow tinha entre 1,80 e dois metros de comprimento, disparando setas de madeira de ponta metálica com cerca de metade daquele tamanho. Tanto podia fazer tiro tenso (igual ao das bestas), como curso (em trajectória parabólica), sendo, neste caso, utilizado por grandes formações de arqueiros para tiro de saturação (por exemplo contra formações de cavalaria ou infantaria atacantes).
Em tiro tenso, estas setas podiam perfurar cotas de malha e mesmo placas de metal a 45 metros, um poder de penetração quase ao nível dos virotes. Em tiro parabólico, o alcance máximo andava pelos 365 metros, ainda que o alcance efetivo fosse de 80 metros. A sofisticação dos projécteis nada ficava a dever aos actuais. Contra alvos couraçados (armaduras e escudos) usavam-se setas com ponta longa e aguçada. Em cercos e batalhas navais a seta levava estopa amarrada para poder funcionar como projéctil incendiário. A munição anti-pessoal tinha ponta em cauda de andorinha que, uma vez enterrada na carne, era muito difícil de extrair, pelo menos com os meios dos médicos militares medievais.
A cadência de tiro das formações de arqueiros britânicos era impressionante: dez a 12 setas por minuto, o que, como cada homem não transportava consigo mais que 50, pressupunha uma sofisticada cadeia de reabastecimento entre a carriagem e a frente de batalha, assegurada, por via de regra, por jovens de oito a 16 anos, aprendizes de arqueiros. «Só para a batalha de Poitiers, onde os ingleses fizeram alinhar três mil arqueiros, terão sido mobilizados 12 mil molhos de setas e 60 mil cordas de arco», explica o historiador Pedro Barbosa, para ilustrar a complexidade logística duma batalha medieval.
1942/44
Espiões duplos e triplos
No submundo da espionagem quase nada é o que parece. Alguns dos espiões que actuaram em Lisboa notabilizaram-se por trabalhar para mais do que um lado, o que acabou por ser a chave do sucesso deles ou, pelo menos, da sua sobrevivência física.
O caso mais espectacular é o do catalão Juan Pujol Garcia, que usava o pseudónimo Garbo. Instalado no Suíço Atlântico Hotel, junto ao elevador da Glória, começará por trabalhar para os alemães, aos quais fornece informação aparentemente fidedigna mas sem importância de maior. Chega a criar uma rede de informadores em Londres que é completamente inventada mas à qual tem artes de conferir credibilidade e para cujo financiamento recebe bastante dinheiro dos nazis. A determinado momento é aliciado pela contra-espionagem britânica para intoxicar os serviços secretos alemães. E será por esta via que os serviços de informações de Hitler serão inundados em 1944 com relatórios fantasiosos relativos, por exemplo, ao desembarque da Normandia, que desviarão as atenções do verdadeiro plano. Era uma parte da Operação Fortitude que incluiu a encenação de concentrações de tropas e blindados no sul de Inglaterra, comandadas por Patton e destinadas a atacar Pas-de-Calais e não a costa normanda. Por ironia do destino, Garbo acabou por receber as mais altas condecorações tanto do Governo inglês como do alemão.
Outro famoso agente duplo que acabará por ajudar mais os Aliados do que o Eixo será Dusko Popov. Aristocrata sérvio, a sua figura terá inspirado Ian Fleming, que também passou por Lisboa como agente secreto britânico, para criar a personagem James Bond. De resto, também o edifício onde se desenrola a acção de Casino Royale tem raízes lusas: é o Casino do Estoril, onde aristocratas, espiões e aventureiros jogavam todas as noites os seus perigosos jogos. Recrutado em Setembro de 1939 para a Naval Intelligence Division, serviço de informações da marinha britânica, Ian Fleming chega a Lisboa em Maio de 1941, frequentando o Hotel Palácio do Estoril e, claro, o Casino.
O próprio Graham Greene que, a partir de 1943, integra o MI6, (contra-espionagem britânica), também trabalhará em Lisboa. Diz-se que as aventuras de Juan Pujol Garcia, o agente Garbo, e de Paul Fidrmuc, um agente checo também conhecido por Ostro, que tanto vendiam reais ou supostos segredos a uns como a outros, inspiraram a personagem de Jim Wormold, no seu romance O Nosso Homem em Havana, onde põe a nu o cinismo dos serviços secretos. Em Cuba, nas vésperas da revolução, um vendedor de aspiradores completamente falido forja informações para extorquir dinheiro à espionagem de Sua Majestade.
1962
Futebolistas em fuga
Durante a greve estudantil de 1962, uma das medidas tomadas contra a Associação Académica de Coimbra foi a nomeação de uma comissão administrativa para a gestão da equipa de futebol, que também entrou em greve, não se apresentando para jogar contra o Beira-Mar a 5 de Maio. O comunicado oficial sobre o assunto rezava assim: «O desafio não se realizou hoje por circunstâncias muito especiais que não se deseja constituam precedente».
O jogador angolano Daniel Chipenda (1931-1996), que se transferira do Benfica para a Académica, estava na mira da PIDE por suspeitas de simpatia pelo MPLA. Levado de carro pelo seu patrício Santana, que continuava a jogar no clube encarnado, foi mandado parar a caminho da Figueira da Foz. Santana protestou e invocou o seu estatuto de bicampeão europeu, mas teve de esperar até chegar pelo telefone a informação de que uma busca pidesca ao seu quarto no Lar do Benfica dera em nada. Chipenda chega a ir preso, mas é libertado depois de manifestações estudantis.
Aproxima-se o fim do campeonato e aumentam as pressões sobre a Briosa para se apresentar em campo no último jogo da época, a disputar com o Sporting. O capitão Mário Wilson, futuro treinador do Benfica, diz que têm de ser os jogadores a decidir. E quando estes votam «sim», Chipenda fica furioso e decide desertar. Pega na sua mulher e nos companheiros de equipa Araújo, França e José Júlio e fogem para o Algarve, onde pagam umas dezenas de contos a um arrais para os levar de traineira para Marrocos, porta para a guerrilha do MPLA.
Conta-se que, em 1967, quando Chipenda comandava o sector de leste de Angola, mandou suspender as operações do MPLA porque ouvira dizer que do lado da tropa portuguesa estava o seu ex-camarada da Briosa, Jorge Humberto, com quem estava preocupado. Desistente do MPLA depois do 25 de Abril, acabaria por regressar ao partido em 1992.
1964/66
O inspector que conspirava pelo Benfica
A crónica da relação dos atletas do Benfica com a PIDE não se fica pelos casos Chipenda e Santana. Também o guarda-redes Costa Pereira e o médio Coluna eram considerados politicamente suspeitos por serem ambos moçambicanos. E Coluna era casado com a angolana Fernanda, que nem a polícia sonhava ser simpatizante do MPLA e sua discreta financiadora.
Costa Pereira é mais que uma vez chamado à António Maria Cardoso, sobretudo depois de, em 1964, se ter encontrado com o seu conterrâneo Marcelino dos Santos antes de um jogo do Benfica em Praga. Também ficou famoso um ralhete a Coluna no regresso de um jogo em Praga mas pela Selecção, a contar para o apuramento do Mundial de 1966. Durante um breve encontro com estudantes angolanos exilados, o jogador deu-lhes roupa, dinheiro e bilhetes para o jogo. Chamado no regresso a Lisboa, disse-lhe o inspector que o ouviu: «Se eu não fosse benfiquista você estava completamente lixado. Veja lá no que se mete…».
Nem todos tinham esta bonomia. Referindo-se a Casimiro Monteiro, o inspector Rosa Casaco, chefe da brigada que assassinou Humberto Delgado, classificava assim o seu subordinado: «Um facínora, esse Casimiro, isso era verdade. Matava a torto e a direito. Mas era um patriota exacerbado…».
1976
Quando Wallraff enganou Spínola
Não foram as balas, nem os tribunais nem as eleições a acabar com a carreira do general Spínola. O ex-Presidente da República caiu na mais velha das armadilhas desde que há jornais e jornalistas: um repórter que se fez passar por quem não era. É sempre um recurso na fronteira do que é deontologicamente aceitável, mas a verdade é que, pelo menos neste caso, funcionou em pleno e revelou à luz do dia o que ia na alma do velho militar.
Em princípios de 1976, apesar da acalmia política trazida pelo golpe militar de 25 de Novembro, as organizações armadas de extrema-direita, nomeadamente o ELP e o MDLP, ainda não tinham deposto as armas. O repórter alemão Günter Wallraff, na altura a colaborar numa cooperativa agrícola, resolveu infiltrar-se nos círculos da extrema-direita lusa para chegar à fala com Spínola.
Como nos contos de fadas, se bem pensou melhor o fez. Após contactos preliminares na Póvoa de Varzim em bares e restaurantes conhecidos como pontos de encontro de conspiradores, como o famoso Pelintra, conseguiu convencer os seus interlocutores de que era um enviado de Franz-Josef Strauss, o líder católico conservador de Baviera.
Em Março, Wallraff recebe indicações para um encontro com o general em Dusseldorf. Durante a conversa, Spínola diz-se disposto a tomar o poder pela força, necessitando para isso de dinheiro e de armas. E frisa que está disposto a liquidar os seus adversários políticos em Portugal. O relato do encontro sai em Abril na imprensa portuguesa. Segue-se a revista alemã Stern e depois o livro A Descoberta de uma Conspiração, a Acção Spínola. É o golpe de misericórdia no prestígio externo e interno do general.
Dia 15, «por imperativo de consciência», Spínola decreta a suspensão do MDLP. Aguarda o resultado das eleições legislativas de 25 de Abril, ganhas pelo PS com maioria relativa, e das presidenciais vencidas por Ramalho Eanes. Regressa a Lisboa a 10 de Agosto, ainda passa pela Prisão de Caxias mas é libertado por «falta de indícios suficientes de culpabilidade». Reintegrado nas Forças Armadas, passará à Reserva como marechal.
A 13 de Agosto de 1986 falecia aquele a quem o seu camarada e sucessor na Presidência da República, Costa Gomes, um dia classificou com «um bom militar mas um mau político».