É preciso alguém ter muito sangue-frio para pertencer a um grupo que desvia um avião comercial e, em pleno sequestro, sentar-se num banco da aeronave e dormir um pouco. Foi o que fez, há 60 anos, Camilo Mortágua, quando integrou um comando de seis portugueses (cinco homens e uma mulher) que, a 10 de novembro de 1961, armados de pistolas, tomaram de assalto o Super-Constellation Mouzinho de Albuquerque, que efetuava a carreira da TAP Casablanca-Lisboa, naquele que é considerado o primeiro desvio, por motivos políticos, da história da aviação comercial.
Numa ousada ação pensada pelo capitão Henrique Galvão, inimigo jurado do ditador Oliveira Salazar, tudo acabou por correr bem ao pai das irmãs gémeas e destacadas dirigentes do Bloco de Esquerda, Mariana e Joana Mortágua, e aos cinco companheiros. Tal como os assaltantes pretendiam, foram lançados sobre a capital, a Margem Sul e as cidades de Beja e Faro cem mil panfletos anti-Estado Novo, que iam dissimulados em sete malas, através de arriscadíssimas manobras do aparelho, que trazia 19 passageiros, quase todos estrangeiros (americanos, italianos, franceses, ingleses), e uma tripulação de sete pessoas, e que chegou a voar a escassos 400 metros do solo.
O avião tinha partido de Casablanca às 9 e 15 da manhã daquela sexta-feira e, três horas e cinco minutos depois de ter começado, a Operação Vagô, como Henrique Galvão a batizara, terminava noutro aeroporto marroquino, o de Tânger. À hora combinada, de farda de caqui e boina preta na cabeça, Galvão espetou o nariz para o ar e viu o avião aproximar-se.
Já com o assunto entregue às autoridades marroquinas, o experiente comandante do Super-Constellation, José Marcelino, pediria para falar com o chefe do grupo assaltante. Este era um algarvio alto e seco, à época com 39 anos, chamado Palma Inácio, um dos alvos mais apetecidos da PIDE, a polícia política do regime salazarista. Em 1947, sabotara uma mão-cheia de aviões na Base Aérea de Sintra, na sua primeira ação contra o regime. A partir daí, foi alternando golpes espetaculares com não menos fantásticas fugas de prisões, até ao 25 de Abril de 1974, que por acaso o apanhou enclausurado em Caxias.
No edifício da secreta marroquina em Tânger, para onde foi levado, José Marcelino ouviu, num gabinete ao lado daquele em que estava, o abrir festivo de garrafas. Foi quando solicitou a presença do “chefe dos assaltantes”. O comandante da TAP queria certificar-se de que podia regressar em segurança à Portela, de que não havia nenhuma sabotagem armadilhada no avião. Palma Inácio deu-lhe todas as garantias.
Mas o abrir festivo de garrafas, que comemorava o êxito dos adeptos da ação direta na oposição não comunista ao regime ditatorial, revelar-se-ia algo precipitado. No mês que se seguiu à aterragem em Tânger, as pressões do Governo português para a extradição dos operacionais da Operação Vagô ainda levaram as autoridades marroquinas a tentarem pôr o grupo assaltante em Gibraltar – era uma forma indireta de os entregar à PIDE.
Acabariam por voar para o Rio de Janeiro, onde o governador, Carlos Lacerda, procurou ajudar o seu amigo Oliveira Salazar a obter a extradição dos assaltantes do Super-Constellation da TAP. Mas sobre Lacerda prevaleceram o Presidente da República, João Goulart, do Partido Trabalhista Brasileiro, e Álvaro Lins, o embaixador que já em 1959 tinha viabilizado o asilo de Humberto Delgado. Palma Inácio, Camilo Mortágua, Amândio Silva, Helena Vidal, João Martins e Fernando Vasconcelos puderam então suspirar de alívio…
Tensão no “cockpit”
De volta ao assalto. O comandante José Marcelino e Palma Inácio (com brevet de piloto tirado anos antes) travaram um jogo do gato e do rato no cockpit do Super-Constellation, depois do sinal de sacar armas. Após a explicação do que o grupo queria fazer, Marcelino ensaiou uma objeção, para ver até onde iam os conhecimentos do outro lado. “Não tenho combustível para ir a Lisboa e voltar.” E Palma, sabido: “Mostre-me o plano de voo.” Ambos sabiam bem que o combustível chegava e sobrava. Ainda restava ao comandante uma segunda hipótese: “Como é que se vai deitar os papéis? Eu não posso abrir as janelas do avião.” Resposta: “Pode, pode. Despressuriza a cabine, abrem-se as janelas de emergência, deitam-se os panfletos e volta-se a fechá-las.” Era tempo perdido continuar com a encenação.
Mas, perto da Portela, o comandante pareceu efetuar a aproximação normal à pista 05, deixando Palma Inácio aos gritos: “O que é que vai fazer?! Aterrar?! Ficamos aqui já todos! Se formos presos, eles dão cabo de nós!” José Marcelino remeteu os motores a hélice, voltou a ganhar altura e recebeu a surpreendente luz verde da torre para rasar os telhados da capital. O comandante não chegou a saber quem era o controlador que, sem mais, lhe deu autorização para voar baixo sobre Lisboa, o que era (e é) rigorosamente proibido. Mas nunca lhe saiu da cabeça que o controlador “estava feito com eles”.
A harmonia entre tripulação e assaltantes funcionou bem: os segundos não andavam a mostrar pistolas pelo avião e os primeiros até ajudaram no lançamento dos papelinhos anti-Salazar
No entanto, José Marcelino explicaria já depois do 25 de Abril de 1974 que jamais pensou em aterrar. “Até ao aeroporto, tinha de vir por aí como se nada fosse, como se viesse aterrar, porque senão abatiam-nos”, esclareceu. Seguiu-se, depois das voltas por Lisboa e Margem Sul, o voo rasteiro até Faro, “para evitar a cobertura do radar de deteção, que de outro modo nos teria facilmente localizado”, diria ainda o comandante. José Marcelino sabia bem o que fazia: nas décadas de 1930 e 1940 tinha sido um dos principais pilotos de caça da Força Aérea.
O Super-Constellation, porém, seria mesmo perseguido por dois caças Sabre, que descolaram da base de Monte Real com ordem do então Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, general Gomes Araújo, para abater o avião, caso não o conseguissem fazer aterrar em território nacional. Os caças alcançaram o Mouzinho de Albuquerque algures no percurso entre o Barreiro e Faro, mas os pilotos fizeram vista grossa.
Houve elementos que foram omitidos nos registos que ficaram da conversa rádio da Batina (o radar de Montejunto) com os caças, assim como partes da rota foram anotadas e outras não. Tudo para não queimar os pilotos e o pessoal da Batina no inquérito que se seguiria.
E os passageiros? Foram inundados pelas hospedeiras com champanhe, vinho e whisky, e ficaram muitíssimo bem dispostos. Como, para lançar os panfletos, a janela mais fácil de abrir era a de trás, onde à época se situava a 1.ª classe, os passageiros nem estranharam serem daí tirados, por “razões operacionais”, para outra zona do avião.
A harmonia entre tripulação e assaltantes funcionou bem: os segundos não andavam a mostrar pistolas pela aeronave e os primeiros até ajudaram no lançamento dos papelinhos anti-Salazar.
Iam dois portugueses a bordo, que ficaram sob rigorosa, embora discreta, vigilância do grupo de assaltantes. Mas nem isso notaram, como testemunharia muitos anos mais tarde um deles, Luís Barbosa Duarte, à época empregado de uma multinacional: “Por incrível que pareça, tanto eu como o meu colega, eng.º Camilo, só soubemos do que realmente se tinha passado quando chegámos a Tânger e vimos o Henrique Galvão.”
Manobras de diversão
Mesmo antes do desvio do Super-Constellation, 1961 era já um “ano negro” para Salazar. Os acontecimentos funestos para o ditador começaram logo em janeiro, com a tomada do paquete Santa Maria (em que Camilo Mortágua também participou), operação batizada de Dulcineia e igualmente comandada por Henrique Galvão, com a cobertura política de Humberto Delgado. Durante 15 dias, o paquete ostentou o nome de Santa Liberdade. Seguiram-se em tropel, logo nos meses imediatos, o assalto às prisões de Luanda, a insurreição no Norte de Angola com o assassínio de centenas de colonos e o putsch falhado do ministro da Defesa, Botelho Moniz.
Os panfletos da Operação Vagô incitavam à revolta e denunciavam mais uma fraude política do Estado Novo – as “eleições” para a Assembleia Nacional, marcadas para o domingo seguinte, 12 de novembro. Os candidatos da oposição já no dia 7 tinham desistido de enfrentar o partido único salazarista, a União Nacional, alegando ausência de condições mínimas de seriedade democrática.
Palma Inácio, Camilo Mortágua e companheiros iniciaram em Tânger uma manobra de diversão, na qual a PIDE caiu sem hesitar. Deram a entender que estavam a preparar uma espécie de Santa Maria II: iam todos os dias ao porto da cidade, ficcionando contactos com marinheiros.
Por estar grávida, Helena Vidal (que era casada com Fernando Vasconcelos) ficou com a missão de levar dissimuladas na cinta, para dentro do Super-Constellation, cinco armas. E, para ganhar confiança, passeou-se como iria para o avião em frente de um café em Tânger, onde estavam agentes da PIDE. Até dançou para eles!
A última manobra para despistar a polícia política foi feita na madrugada do próprio dia 10 de novembro. Os seis elementos do grupo meteram-se num automóvel, com Camilo Mortágua, à época com 27 anos, ao volante, e tomaram o caminho de Tetouan, outra cidade próxima de Tânger. Perseguidos por um veículo onde iam agentes da PIDE, tinham já estudado um plano para lhes fugir. A alta velocidade, o grupo revolucionário virou de repente à esquerda a seguir a uma curva, entrou num atalho e percorreu-o longamente de faróis apagados. Depois, puderam rolar com toda a tranquilidade até Casablanca. E como diz Camilo Mortágua, hoje com 87 anos (e, claro, militante do Bloco de Esquerda), “fomos entregar ‘os nossos votos’ para as ‘eleições’ de novembro de 1961…”