Feitas as contas, a investigação da Operação Influencer recolheu, nos últimos anos, quase 300 mil escutas telefónicas a vários suspeitos. Neste gigante acervo, além das que dizem diretamente respeito aos casos do lítio, hidrogénio e, sobretudo, ao centro de dados de Sines, existem outras que indiciam uma interferência na atividade legislativa do Governo por parte da empresa “Star Campus”, cujos gestores, Afonso Salema e Rui Oliveira Neves, estão entre os detidos do processo.
Começando pela matemática. Nos processos-crime, quando um suspeito é colocado sob escuta telefónica é-lhe atribuído um número de “alvo” e cada conversa escutada é contabilizada como uma “sessão”, sendo que apenas as consideradas “relevantes para o objeto do processo” são transcritas para os autos, enquanto as irrelevantes de mantêm no processo até para as respetivas defesas as consultarem.
Rui Oliveira Neves (Alvo 113613040), gestor da “Star Campus” e advogado na “Morais Leitão”, surge como o suspeito mais escutado. A 22 de setembro de 2022, este arguido manteve um conversa com um tal “Luís” sobre uma portaria do Governo, ficando esta interceção registada como a “sessão 105830), querendo isto dizer que a investigação já tinha ouvido mais de 100 mil conversas telefónicas do suspeito.
No ranking dos suspeitos mais escutados, segue-se João Galamba, ex-secretário de Estado da Energia, atual ministro das Infraestruturas (Alvo 114404060). Foi nestas duas qualidades que o seu telefone foi intercetado. A última referência aponta para a sessão 82676. Por sua vez, a última sessão relativa a Diogo Lacerda Machado (Alvo 127229060) está identificada como a 49005, logo mais de 40 mil conversas ouvidas. O último do ranking é Afonso Salema, que teve dois telemóveis sob escuta, por isso é identificado por outros tantos alvos (126000040 e 125413060). Ao todo, nos últimos anos, foram-lhe intercetadas mais de 50 mil chamadas telefónicas.
Se adicionarmos estes números, perto de 290 mil chamadas escutadas, a outras escutas que decorreram no nas matérias relativas ao lítio e ao hidrogénio, estaremos muito perto das 300 mil chamadas telefónicas ouvidas desde 2019, ano de início desta investigação.
Daí que, além daqueles assuntos, o Ministério Público tenha recolhido outras suspeitas, sobretudo relacionados com a atividade governativa, como a redação da Portaria 248/2022 de 29 de setembro. De acordo com a investigação, os gestores da “Start Campus” “diligenciaram pela elaboração de um documento” que contivesse as “normas necessárias para permitir que as infraestruturas de passagem de gás da REN fossem também utilizadas para passar cabo de fibra ótica, o que permitira facilitar as ligações de dados ao data center”.
A 9 de setembro de 2022, Rui Oliveira Neves foi escutado a pedir ajuda a uma pessoa apenas identificada por Joana para a preparação um “projeto de despacho para o secretário de Estado da Energia”, João Galamba, “autorizar que a concessão da REN Gás permita a exploração de cabos de fibra óptica”.
Após contactos com quadros da REN e com outra pessoa apenas identificada como Luís, este declarou que o “João já enviou ao Rui o esboço da portaria”, referindo-se a João Marques Mendes, o advogado que estava a tratar do assunto. O interlocutor de Rui Oliveira Neves mostrou-se cuidadoso com o assunto, declarando que “nós não fazemos portarias, fazemos é ‘memos’ que dão conteúdos que alguém pode usar para fazer portarias”, acrescentando que o “sumário executivo naquele formato já está com forma relativamente prescrita, se alguém quiser aproveitar”.
Certo é que o “memo” ou “draft de portaria” chegou ao gabinete de João Galamba. Na portaria original, lia-se (96/2004 de 23 de janeiro): “Os terrenos vendidos ou arrendados nos termos da presente portaria não poderão ser destinados a fim diferente daquele a que estão atualmente afetos enquanto constituintes de sítio de centros eletroprodutores hidroeléctricos ou termoeléctricos”
Com a alteração, passou a constar: “Os terrenos vendidos ou arrendados nos termos da presente portaria não poderão ser destinados a fim diferente da produção de energia com recurso a qualquer das tecnologias previstas na lei que contribuam, em exclusivo, para a descarbonização e transição energética, sem prejuízo da necessária observação das modalidades de acesso e dos procedimentos de ligação à rede elétrica de serviço público no termos previstos pela lei, quando aplicáveis” (Portaria 248/2022)
No número 3 do artigo 1º, lia-se: “O Ministro da Economia pode autorizar a afetação a fim diferente do referido no número anterior, mediante requerimento dos respetivos proprietários, ouvidas a Direção-Geral de Geologia e Energia, a Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) e a entidade concessionária da RNT.”
A alteração de João Galamba fez esta modificação:
“O membro do Governo responsável pela área da energia pode autorizar a afetação a fim diferente do referido no número anterior, mediante requerimento dos respetivos proprietários, ouvidas a Direção-Geral de Geologia e Energia, a Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos e a entidade concessionária da RNT.”
“Ou seja, para além de alargar a amplitude de fins a que os terrenos poderão ser afetos, a alteração introduzida pelo arguido João Galamba também permitia que a autorização para qualquer outro fim fosse concedida por ele, enquanto secretário de Estado da Energia, e não apenas pelo ministro, como anteriormente sucedia”, explicam os procuradores João Paulo Centeno, Hugo Neto e Ricardo Lamas.
Há também suspeitas de que o “Simplex Industrial”, programa aprovado a 19 de outubro deste ano pelo Conselho de Ministros, só não teve a mão da “Start Campus” porque um jurista da empresa se atrasou na elaboração de um documento que deveria ter chegado às mãos de João Galamba e do advogado João Tiago Silveira, também da “Morais Leitão, já constituído como arguido no processo. Isto mesmo é referido numa conversa telefónica, a 20 de outubro, entre Miguel Santos, CFO da empresa, e Afonso Salema, na qual este último arguido refere que “O Nélson demorou muito tempo a responder a uma coisa que pediu na semana passada que era para o Galamba e só ontem à noite mandou para o Galamba, mas o Galamba disse que já mandou tarde de mais.”
Esta escuta surge na sequência de outras sobre o mesmo assunto. Numa delas, Rui Neves Oliveira afirma estar por dentro da matéria, declarando saber que tinha sido João Tiago Silveira, seu colega de escritório, a “fazer esse regime”.
O Ministério Público considera que o ministro das Infraestruturas, João Galamba, arguido no processo dos negócios do lítio e do hidrogénio, agiu ilegalmente para desbloquear procedimentos relacionados com a Start Campus em beneficio da empresa.
O despacho de indiciação do MP refere que o arguido João Galamba “agiu livre e lucidamente em conjugação de esforços e de fins” com os arguidos Afonso Salema e Rui Oliveira Neves (sócios da Start Campus), bem como com Diogo Lacerda Machado (advogado, consultor e amigo do primeiro-ministro António Costa) e Vítor Escária (chefe de gabinete do primeiro-ministro), decidiu ilegalmente “nos procedimentos administrativos e legislativos relativos à Start Campus e imprimindo maior celeridade” à apreciação do negócio em causa.