“Eu não percebo porque é que o senhor doutor vai embora. Eu estou a falar. É o mínimo, respeitar as pessoas que estão aqui a perguntar alguma coisa. É o mínimo”. Passavam 2h25m do início da audição de José Maria Ricciardi como testemunha na fase de instrução do processo do Banco Espírito Santo (BES) quando o juiz Ivo Rosa decidiu levantar-se e sair da sala, deixando que a pequena algazarra entre a procuradora do Ministério Público, Olga Barata, que protestou ao ver o magistrado a sair da sala, e alguns advogados continuasse.
À entrada para o Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC), na última quarta-feira, 25 de maio, José Maria Ricciardi, antigo presidente do Banco Espírito Santo Investimento (BESI), prometeu dar “o melhor” pela descoberta da verdade. Mas a sua audição acabaria por terminar de forma acalorada. Não consigo, mas entre o juiz, a procuradora e os advogados. Estes não gostaram que Olga Barata, após ter colocado as suas perguntas e depois de os próprios advogados fazerem o mesmo, voltasse a questionar o banqueiro, já que foi definida uma regra de que cada interveniente tem 15 minutos para colocar questões. Só que a procuradora decidiu colocar mais questões a Ricciardi, o que levantou um protesto na sala.
“A procuradora já alega…”; “Eu não posso fazer perguntas” – são alguns dos comentários que se ouvem na gravação da diligência a que a VISÃO teve acesso. “A testemunha está cá, porque eu requeri. Sou o único que tinha interesse na testemunha!”, protestou o advogado Paulo Saragoça da Matta, que representa João Martins Pereira, antigo responsável pelo departamento de compliance do BES, acusado pelo Ministério Público de três crimes de burla qualificada.
A meio do caminho, entre a cadeira e a porta de saída, o juiz Ivo Rosa tentou colocar alguma ordem: “Já disse que as perguntas são feitas por meu intermédio. Vamos lá ver uma coisa, estabelecer regras: aqui, as pessoas não dialogam entre si. Isto é uma diligência para produzir prova. Fazem-se perguntas às testemunhas e as testemunhas respondem. É isto. Não há trocas de conversas ou insinuações. A partir de agora, não admito mais isso”.
“As pessoas não podem estar aqui a dialogar umas com as outras. Quando digo que é para interromper, é para interromper. Sou eu que estou a presidir aos trabalhos”, continuou Ivo Rosa, procurando colocar um ponto final na discussão e também marcando uma linha para as próximas inquirições e interrogatórios que devem prolongar-se, pelo menos, até final do mês de setembro. “Então, o senhor doutor”, interveio Olga Barata, “permite-me reafirmar a pergunta (sic) que fiz: é normal que os prémios sejam recebidos pelo banco e se não foram são refletidos onde? “Pode haver pessoas que estão nos bancos e receberem outras remunerações. Isto é legal. Têm é que as refletir no relatório e contas”, respondeu Ricciardi, finalizando a discussão.
Queria o lugar de Ricardo Salgado?
Uns minutos antes deste reboliço, a temperatura na sala já tinha subido um pouco, quando Adriano Squilacce, um dos advogados de Ricardo Salgado, o confrontou com uma ata do conselho de administração do BES, de finais de 2013, na qual José Maria Ricciardi manifestava confiança em Ricardo Salgado, como presidente do banco. Isto depois de a testemunha ter declarado não ter apoiado Ricardo Salgado, tendo até tentado reunir apoios nos ramos da família para a sua destituição. “Das duas uma: ou está a mentir agora ou mentiu na altura”.
“Quando, em novembro de 2013, numa reunião do Conselho Superior, não dei um voto de confiança, o meu voto não serviu para nada, porque o voto que valia era o do meu pai”, o comandante Ricciardi, recentemente falecido, começou por dizer o banqueiro. Para, em seguida, acrescentar que, mais tarde, Ricardo Salgado lhe diria que iria dar início ao processo da sua sucessão: “Aquilo que eu queria e desejava, a alteração da governance do grupo, ia verificar-se e que, portanto, não poderíamos entrar numa guerra. Perante o que ele me disse, eu aceitei fazer o voto de confiança, para não criar mais problemas”.
Já antes, Adriano Squilacce tinha perguntado: “Queria ficar com o lugar de Ricardo Salgado?”. Ricciardi respondeu: “Não, isso foi a narrativa que ele usou”.
O número dois que ganhava mais do que o número um
Durante a sua inquirição, José Maria Ricciardi reafirmou que nunca teve conhecimento dos chamados “pagamentos por fora” que alguns quadros do BES recebiam através do “saco azul” do grupo, a ES Enterprises. Neste ponto, aliás, Ricciardi até contou um episódio com Ricardo Abecassis Espírito Santo, presidente do BESI/Brasil, ou, como explicou, o número dois do banco de investimento.
“Só depois do início desta investigação é que soube desses pagamentos. Inclusivamente, até me apercebi que elementos da minha própria família recebiam por aí. E fiquei muito surpreendido”, declarou.
E deu um exemplo concreto: “Uma das pessoas da família, que era o presidente executivo do Banco no Brasil, queixava-se que ganhava pouco, mas ganhava bem para o nível de vida em Portugal e no Brasil. E ele ganhava um pouco menos do que eu, mas achava que ganhava pouco… Fiquei absolutamente boquiaberto quando soube desses pagamentos…Ele não podia ganhar mais do que eu, que era o número um”. “Quando soube dos pagamentos, vim a perceber que ele ganhava muito mais do que eu”, finalizou.
Quanto ao motivo concreto do seu testemunho, José Maria Ricciardi declarou não acreditar que o arguido João Martins Pereira estivesse a par do esquema de falsificação de contas que terá sido levado a cabo para esconder o problemas do BES. “Este é um exemplo de como convém ouvir uma testemunha pela segunda vez, mesmo que ela tenha sido ouvida em inquérito”, sublinhou o advogado Paulo da Matta.
À saída do Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC), Ricciardi confirmou não ter sido confrontado com qualquer facto novo pelo juiz de instrução Ivo Rosa e escusou-se a prestar mais declarações, alegando cansaço. “Estou muito cansado, mas foi muito esclarecedor”, disse unicamente sobre a diligência, da qual saiu acompanhado do seu advogado Pedro Reis.
Esta semana, os procuradores do Ministério Público (MP) do processo do Banco Espírito Santo (BES) acusaram o juiz Ivo Rosa de confundir a sua liberdade de ação na condução da fase de instrução do caso com “arbitrariedade”. Na base desta acusação está o facto de o magistrado judicial ter aceitado ouvir durante esta fase processual 56 testemunhas, 26 das quais já foram inquiridas durante a fase de investigação do processo, algumas delas por mais do que uma vez. O depoimento do antigo primeiro-ministro Pedro Passos Coelho, arrolado pela defesa de Ricardo Salgado, é um dos que o MP considera como irrelevante
O processo BES/GES conta com 30 arguidos (23 pessoas e sete empresas), num total de 361 crimes. Considerado um dos maiores processos da história da justiça portuguesa, este caso agrega no processo principal 242 inquéritos, que foram sendo apensados, e queixas de mais de 300 pessoas, singulares e coletivas, residentes em Portugal e no estrangeiro.
Segundo o Ministério Público (MP), cuja acusação contabilizou cerca de quatro mil páginas, a derrocada do Grupo Espírito Santo (GES), em 2014, terá causado prejuízos superiores a 11,8 mil milhões de euros.