O incêndio começou a 3 de agosto e só foi dado como estabilizado a sete dias depois. Pelo meio, arderam mais de 27 mil hectares do território nacional. O incêndio, que terá sido o maior de 2018, ficou conhecido como sendo de Monchique, mas alastrou aos concelhos de Portimão e Odemira. O relatório redigido pelo Observatório Técnico Independente para Análise, Acompanhamento e Avaliação dos Incêndios Florestais e Rurais, que foi criado por despacho da presidência da Assembleia da República, aponta como provável causa da ignição o contacto de árvores com linhas elétricas – mas admite eventuais teses diferentes que venham a ser elaboradas pela Judiciária. Pelo contrário, o relatório não tem dúvidas em apontar falhas numa estratégia de combate que desperdiçou duas janelas de oportunidade, registou casos de perda de cadeia de comando e falta de preparação para operar à noite ou para seguir o comportamento do fogo. A VISÃO falou com Francisco Castro Rego, presidente do Observatório e professor do Instituto Superior de Agronomia de Lisboa, na quarta-feira, dia em que o Parlamento publicou o relatório sobre o que passou em Monchique.
Quais as causas prováveis do incêndio de Monchique do verão passado?
Temos indicações sobre o local provável do incêndio. O local apontado por vários agentes está próximo de uma linha (elétrica) de média tensão e essa será uma possibilidade. No entanto, a Polícia Judiciária (PJ) está a fazer uma investigação. Não somos conclusivos nesta matéria. Apresentamos apenas as hipóteses… e essa hipótese tem alguma probabilidade.
A investigação da PJ é legal e é também paralela à do Observatório… mas será que tem o mesmo valor técnico-científico?
No dia anterior às ignições (que originaram o incêndio), houve outras que suscitaram o problema das linhas elétricas. Essa é uma causa que estava um pouco na ordem do dia… mas não temos os instrumentos ou as competências para investigar a causa propriamente dita e, portanto, não somos conclusivos. O sistema está montado para que atue em primeiro lugar a GNR e, nos casos de maior complexidade, com incêndios mais graves, a PJ assume a investigação com outras ferramentas e outras técnicas. A única referência que fazemos é que esta investigação (da PJ) poderia ser mais célere. Nove meses depois do incêndio… enfim… mas não avançamos mais que isso.
Os meios e os métodos usados pela PJ são muito diferentes daqueles que são usados pelo Observatório?
Os objetivos também são diferentes. O nosso objetivo vai no sentido de analisar o sistema, no sentido de o melhorar e de propor soluções que evitem preocupações futuras. Alertamos para esta possível causa de ignição e, portanto, há que fazer uma limpeza, que evite contacto com as árvores (e linhas elétricas)… sobretudo os eucaliptos, que crescem muito rapidamente. Apontamos para a necessidade de ter essas preocupações, independentemente de aquele caso específico ter sido ou não desencadeado por esta via.
O Observatório conseguiu identificar o local exato do início do incêndio?
O local aproximado está determinado. Não é um ponto; é um local genérico. É difícil localizar o ponto exato e é por isso que se recorre a equipas e técnicas mais especializadas. O relatório do Observatório apresenta uma fotografia provável do início do incêndio. Terá sido naquela zona, porque também há reconhecimento de fotos e de fumo que vem daquele local. É naquela proximidade… se a causa foi da linha elétrica ou não… bom, temos também o relatório da EDP que tem uma versão diferente que aponta para outra causa possível. O local em causa é conhecido como Perna da Negra.
Uma vez que não é a primeira vez que o Observatório e a PJ e a EDP têm versões diferentes sobre causas de incêndio… Em quem é que a população deve acreditar?
A população tem de acreditar naquilo que a PJ apurar. O Observatório acredita em absoluto na investigação da PJ. A única crítica que fazemos é que não foi uma investigação célere… e não havia razão para demorar tanto tempo para esta investigação. Mas independentemente disso, a nossa convicção é que aquilo que a PJ apurar será a causa mais provável para ignição deste incêndio.
Se for esse caso, fica a ideia de que se trata da negação do vosso trabalho de investigação!
Nós não chegamos a conclusão nenhuma. Indicamos que há algumas probabilidades. Dizemos qual a localização genérica e que há uma possibilidade de que as linhas elétricas tenham a ver com esta ignição. Isso é claro, mas ficamos ao nível das probabilidades e não ao nível da determinação das causas, porque não é essa a nossa competência, nem a qualidade de investigação nos permite apurar com rigor a causa do incêndio. E por isso há entidades especializadas para o fazer.
Essa lógica também é válida para os relatórios dos grandes incêndios de 2017 que revelaram conclusões diferentes da PJ?
Sim. Do ponto de vista da Comissão Técnica Independente (anterior à constituição do Observatório), em que também participei, todos os trabalhos foram neste sentido. Apontamos para probabilidades, mas deixamos que as entidades competentes façam o seu trabalho. Temos uma confiança absoluta nessas entidades. Foi sempre a nossa postura como Comissão Técnica Independente e também agora com o Observatório.
Que comentário faz às conclusões do relatório da EDP?
Tivemos acesso ao relatório da EDP já muito em cima do nosso trabalho… também demoraram bastante tempo a disponibilizarem esse relatório, que não tinha material que pudéssemos aprofundar. Do ponto de vista da investigação, há de facto vias diferenciadas que apontam para causa humana, mas também não há evidência que nos permita corroborar essa hipótese.
Inicialmente, chegaram a circular notícias que davam conta de que o incêndio estaria controlado… mas as chamas acabaram por se expandir aos concelhos de Odemira e de Silves. O que falhou no ataque ao incêndio?
O contexto era complicado e tinha três ingredientes que produzem uma mistura explosiva: um local remoto, portanto, longe das populações e dos corpos de bombeiros e de difícil de acesso; depois as condições de meteorologia, com temperaturas muito altas, algum vento e secura dos combustíveis (árvores, arbustos e derivados); e por fim o terceiro ingrediente que tem a ver com a monocultura e a acumulação de combustíveis, sobretudo de eucaliptal e de mato. O que complicou o combate a partir do momento em que o fogo adquire dimensão. Uma vez adquirida essa dimensão não há possibilidade de combate direto; isso vem nos livros. Há um determinado limite em que o combate direto não é possível. Atingiu-se esse nível por ser uma zona difícil de aceder. Apesar de terem sido mobilizados todos os meios e de estarem todos a postos para isso, os bombeiros, quando chegaram lá, o incêndio já tinha uma dimensão que era muito difícil de conter.
Houve descoordenação ou atraso na abordagem ao incêndio por parte de bombeiros e Proteção Civil?
Não, tudo o que foi feito na parte do ataque inicial seguiu o protocolo… o sistema de triangulação; foram três corpos de bombeiros fazer o ataque ao incêndio no local. A definição do local não era completamente exata, mas isso não foi um problema especial. Foi ativado um meio aéreo… eventualmente, para aquelas circunstâncias será necessária uma vigilância “armada”. O que significa haver helicópteros no ar para, ao mínimo sinal de fumo, poderem logo atuar…
… Para isso seria necessário os helicópteros encontrarem-se no local antes do incêndio. Isso é viável?
Há manobras de antecipação, mas que são complicadas de pôr em prática. Há que evoluir nesse sentido, mas não há uma receita que seja facilmente posta em prática. Mas seria essa a receita que poderia ter dado um resultado diferente no ataque inicial.
E depois do momento inicial, o protocolo também foi seguido? A cadeia de comando funcionou?
Houve sobretudo a perda de duas janelas de oportunidade em duas manhãs. O que tem a ver com uma questão que não é específica daquele incêndio, mas que tem a ver com uma falta de preparação geral para atacar incêndios à noite. A noite e o princípio da manhã são as alturas ideais. Neste incêndio, verificou-se que a meteorologia ajudou em algumas situações, mas essas janelas de oportunidade não foram bem aproveitadas. O não aproveitar tem a ver, com certeza, com essa deficiências na cadeia de comando; houve instruções para que alguns grupos fizessem algumas coisas que não chegaram a ser feitas… e também houve uma dificuldade geral em fazer o combate e usar as técnicas de combate mais específicas que se podem usar durante a noite, por falta de experiência e preparação para esse tipo de combate.
Foi por isso que o incêndio teve uma dimensão tão grande?
Nos primeiros dias, houve ventos fortes durante a tarde; combustível muito seco; uma grande acumulação de combustível… um contexto desfavorável. E não foram aproveitadas as tais janelas de oportunidade.
E que conclusões são tiradas quanto à atuação das autoridades na salvaguarda das populações?
Houve o caso de Alferce que foi um pouco problemático, mas foi um caso pontual. Fora isso, a intervenção mais musculada da GNR, retirando as pessoas e não permitindo a exposição dessas pessoas aos caminhos do fogo quando não estava controlado é, quanto a nós, perfeitamente justificável. É desagradável para as pessoas; pode ser um pouco violento do ponto de vista psicológico, mas em muitos casos é necessária essa intervenção mais musculada, porque o objetivo é, de facto, proteger a vida das pessoas.
Sem essa intervenção musculada teria havido risco de perda de vidas humanas?
Sim, teria havido esse risco. De facto, foi importante que essa atuação fosse efetuada, não só porque protege as pessoas, mas também porque se consegue pensar o combate ao fogo, independentemente, da proteção das pessoas. Há dois tipos de preocupações, que muitas vezes se atropelam uma à outra. Com a ânsia, que é perfeitamente legítima, de proteger pessoas e bens, muitas vezes não se privilegia o combate ao incêndio. Se essa preocupação for retirada do caminho, há mais capacidade de concentrar as preocupações no combate. Mas para isso é necessário um comando muito eficaz e habilitado… e que utilize toda a informação e previsões que possam ser feitas. E notámos também um défice na utilização dessa informação…
… refere-se à informação meteorológica?
Da meteorologia e também do comportamento do fogo. Houve entidades a fazerem esse tipo de previsão, mas nunca foi completamente absorvida e nem sempre foi utilizada no planeamento estratégico. Quando se previa que o comportamento do fogo pudesse ir numa direção e com um determinada velocidade e etc. e que isso levasse a uma estratégia de contenção naquela zona, houve de facto trabalho no sentido de apoio à decisão, mas a digestão e a utilização dessas ferramentas e dessa informação não foi otimizada.