Esta história começa a 21 de janeiro de 2014, meses após a chegada do primeiro candidato independente à presidência da Câmara do Porto. Por esta altura, as hostes do novo inquilino, Rui Moreira, e do antecessor, Rui Rio, já mal disfarçam a separação que começara na noite da vitória, mas o verniz do enamoramento pré-eleitoral ainda amortece tensões internas. Nesse dia, a reunião pública do executivo decorre morna até se discutir a alteração do júri dos concursos para cargos dirigentes no município. A proposta em cima da mesa contempla os nomes de Guilhermina Rego (vice-presidente), Carlos Mota Cardoso (psiquiatra) e Francisco Nazareth (advogado), mas Amorim Pereira, jurista e vereador do PSD, desafina. “Este júri não cumpre a lei e não garante critérios de isenção”, justifica, escudado na legislação e alertando para a circunstância, entre outras, de Francisco Nazareth ser “funcionário de uma sociedade de advogados que presta serviços à câmara”, a Cuatrecasas.
Desejando evitar suspeições sobre as figuras indicadas pela maioria, o autarca da oposição insiste na escolha de outras personalidades “de reconhecido mérito profissional, credibilidade e integridade pessoal” na cidade. Porém, a ideia não vence. A proposta inicial é aprovada, com votos contra do PSD e a abstenção da CDU. Dias depois, a 27, na assembleia municipal, invertem-se os papéis: o PSD abstém-se, CDU e BE estão contra. Nada de preocupante: o acordo de governação celebrado entre o movimento político Rui Moreira: Porto, O Nosso Partido e o PS garante os votos necessários para aprovar a composição do júri.
Enquanto isso, Fernando Paulo é mais um ex-autarca fora da política. Em outubro de 2013, completara 19 anos de atividade autárquica enquanto vereador de Valentim Loureiro na Câmara de Gondomar. O major atingira a limitação de mandatos e aprovara a escolha do delfim para encabeçar o movimento independente Gondomar no Coração às autárquicas desse ano. O Tribunal Constitucional é que não esteve pelos ajustes: detetou “irregularidades” nas listas e rejeitou a candidatura.
Gorada a tentativa de suceder a Valentim com a bênção deste, nem tudo era mau para Fernando Paulo: o antigo dirigente do PSD podia, por fim, receber a subvenção mensal vitalícia a que tinha direito. Nascido a 17 de agosto de 1968, reformara-se em 2005, aos 37 anos, beneficiando do último suspiro do antigo Estatuto dos Eleitos Locais, que permitia duplicar cada ano de exercício de funções políticas para efeitos de aposentação até ao limite de 20 anos. De saída de Gondomar, o ex-vereador, licenciado em Filosofia, reclamou a pensão de 1911 euros e foi à sua vida.
Concurso à medida?
Estamos nisto quando, a 15 de julho de 2014, o executivo de Rui Moreira leva à reunião pública de câmara a proposta de alteração ao mapa de pessoal. Há cargos de topo vagos e é preciso lançar concursos públicos para preenchê-los. Entre eles, está um lugar de enorme poder e influência: a Direção Municipal da Presidência, na dependência direta do líder da autarquia. Tal como acontecera antes, por causa da composição do júri, Amorim Pereira volta a desafinar: “Ninguém entende por que razão se exige um licenciado em Filosofia para preencher este cargo”, questiona, advertindo: “Está-se a criar, sem necessidade, um efeito de alguma desconfiança relativamente a este procedimento.”
É a vice-presidente Guilhermina Rego quem responde: as competências exigidas, precisa, “são aquelas que o vereador responsável considera ser o perfil mais adequado”. Uma forma rebuscada de dizer ao vereador que, no caso da Direção Municipal da Presidência, a competência sobre essa definição cabe, em exclusivo, ao próprio Rui Moreira. Questionado pela VISÃO, o executivo prefere falar em “responsabilidade colegial”. Trata-se, acrescenta, “de uma decisão política, sujeita a escrutínio público, através de deliberação, como foi neste caso”.
Apesar das dúvidas levantadas na altura, a estranheza não passou dali: PSD e CDU abstiveram-se e a proposta foi aprovada. A alteração ao quadro de pessoal passaria também sem alvoroço na assembleia municipal de 21 de julho, com 14 abstenções de PSD, CDU e BE. Oito dias volvidos, a 29 de julho de 2014, o júri reúne-se pela primeira vez. Conforme o perfil aprovado semanas antes, os candidatos a diretor municipal da presidência devem possuir “licenciatura em Filosofia e áreas afins”. Os anos e a experiência em cargos dirigentes ou executivos na Administração Pública serão dos fatores com mais peso na avaliação. Os termos do concurso são publicados a 5 de agosto de 2014 no Diário da República e registados na Bolsa de Emprego Público.
A 3 de setembro, o júri – onde, entretanto, Emília Galego (então diretora de Recursos Humanos) substituíra Francisco Nazareth – exclui cinco dos oito candidatos por falta de requisitos. Nos finalistas há duas mulheres sem currículo político autárquico e um homem com mais de duas décadas de poder local: Alda Berenguel é técnica superior do Arquivo Municipal de Bragança, licenciada em Filosofia e possui formação para altos dirigentes da Administração Pública; Célia Ruão, de Paredes, vem das Literaturas Modernas e está desempregada; o outro é Fernando Paulo, ex-vereador em Gondomar, cujo dossier de candidatura tem 336 páginas e a quem o perfil e os critérios do concurso encaixam que nem uma luva.
As entrevistas de avaliação decorrem a 9 de setembro. Célia Ruão falta por razões de saúde. Ainda telefona a perguntar se pode ser ouvida noutro dia, mas é excluída. Alda Berenguel obtém pouco mais de 11 valores. Quanto a Fernando Paulo, só por três décimas não atinge a nota máxima (20) na classificação final. Sem surpresa, é o melhor. E o escolhido. O despacho de nomeação é assinado pelo presidente Rui Moreira a 10 de setembro de 2014, e Fernando Paulo assume o cargo cinco dias depois, sendo-lhe atribuída uma remuneração mensal bruta de 4 512,51 euros.
Tudo certo? Nem por isso, garantem três juristas, independentes entre si e com experiência nesta área do Direito. A pedido da VISÃO, analisaram os documentos essenciais do caso e coincidem: as deliberações do júri estarão feridas de “nulidade” e a mesma “pode ser suscitada a todo o tempo”. Na prática, o concurso da Câmara do Porto parece um “fato feito à medida de um candidato específico, mas coberto com uma manta de legalidade. Quem definiu o perfil dos candidatos sabia que a conjugação da licenciatura em Filosofia e da experiência autárquica tornariam Fernando Paulo praticamente imbatível”, refere um deles.
A composição do júri também terá desrespeitado a “clara separação entre a entidade que seleciona e recruta e a entidade que escolhe e designa”. Os seus membros até poderiam cumprir o triplo padrão do mérito, credibilidade e integridade, mas, segundo os juristas, não garantiam independência, imparcialidade e reconhecimento exteriores à autarquia. No recrutamento para diretor municipal da presidência terá sido também violada a obrigação de candidatar os titulares dos cargos de direção imediatamente inferiores àquele para o qual foi aberto o concurso. Já as ações dos detentores de cargos políticos (presidente da câmara e vereadores) poderão ser abrangidas pelos “crimes de prevaricação, abuso de poderes e de recebimento indevido de vantagem”. A responsabilidade civil e extracontratual da autarquia e dos respetivos titulares de órgãos e agentes, essa só se coloca em caso de dolo ou culpa grave.
Para tal, as candidatas lesadas teriam de intentar uma ação judicial. Mas Alda Berenguel e Célia Ruão não estão na disposição de fazê-lo, nem têm meios para iniciar essa odisseia na Justiça, na qual as decisões, nestes casos, demoram anos e a responsabilização dos prevaricadores chega quase sempre tarde. Quando chega. De resto, Fernando Paulo já nem é diretor municipal da presidência: deixou o cargo no final do primeiro mandato de Rui Moreira e, nas autárquicas de 2017, foi eleito vereador, com os pelouros da Educação, Habitação e Coesão Social. “Estou cansada de candidatar-me a cargos reservados para quem está na política. Em vez de investir na minha formação, deveria ter seguido a carreira partidária”, lamenta-se Alda Berenguel à VISÃO. “Quando vi o nome escolhido, concluí que o melhor foi faltar à entrevista. Teria sido uma perda de tempo”, refere, por seu lado, Célia Ruão. Ambas se afirmam prejudicadas por “injustiças e violações graves” na igualdade de acesso ao emprego, mas, nos seus quotidianos, não há tempo nem folga financeira para travar batalhas judiciais desta dimensão. Dos três membros do júri do concurso, só o psiquiatra Carlos Mota Cardoso esteve disponível para falar à VISÃO: “Não me apercebi de qualquer irregularidade”, assume.
Na Câmara… com Gondomar
No outono de 2014, Fernando Paulo estava então já instalado na Direção Municipal da Presidência. Aí reencontrou o amigo Nuno Nogueira Santos, adjunto, chefe de gabinete do presidente Rui Moreira, e, desde o primeiro mandato, responsável pela área de Comunicação na Câmara do Porto. A dupla conheceu-se nos primeiros anos deste século quando o então vereador de Gondomar era figura de peso junto de Valentim Loureiro e o assessor chefiava o gabinete de Imprensa do município. Responsável pela comunicação da campanha eleitoral do major em 2005, Nuno Santos foi também adjunto entre 1 de agosto de 2006 e 14 de março de 2008. No convívio com Fernando Paulo forjou uma “relação pessoal mais profunda” e “a certeza de uma amizade duradoura”, conforme assumiu no livro que publicou sobre esses tempos, A Varinha Mágica de Valentim Loureiro. Editado em 2008, nele desvendou “méritos, truques e habilidades populistas” do então presidente. E concluiu: “Todos deveríamos aproveitar de Salazar e de Valentim qualidades que se foram perdendo nos tempos da democracia moderna que julgamos viver em Portugal.”
O peso da “marca” Gondomar na Câmara do Porto não fica por aqui. Meses após a chegada de Fernando Paulo à “presidência”, Otília Oliveira entrava também na autarquia, em situação de mobilidade. Entre 1994 e 2013, ela fez carreira no município gondomarense na dependência dos pelouros de Fernando Paulo. Em 2015, na Invicta, foi integrada no departamento de Educação, então tutelado pela vice-presidente Guilhermina Rego. Nomeada, por proposta do vereador Manuel Pizarro, para chefe de divisão da Ação Social, em regime de substituição, foi depois admitida por concurso. Em menos de três anos, tornou-se diretora municipal de Educação, o seu cargo atual. A amizade e a cumplicidade familiar entre Fernando Paulo e Otília Oliveira está bem espelhada nos perfis de ambos nas redes sociais, embora o autarca não confirme nem desminta se Otília é, na verdade, sua comadre. De resto, ignorou os insistentes pedidos para responder às perguntas da VISÃO.
Eleito em 7º lugar na lista de Rui Moreira nas últimas autárquicas, legitimado pelo voto, o vereador e presidente da empresa municipal Domus Social, precisou de reforçar o seu gabinete. Deu-se o caso de a sala de espetáculos da Associação Amigos do Coliseu do Porto, onde a autarquia é acionista, estar perto. Foi ali que Fernando Paulo recrutou Carla Queirós, especialista em Comunicação e mulher de Nuno Santos. No coliseu, prestava serviços de assessoria de Imprensa desde 2016, recebendo 24 mil euros por ano (sem IVA), mas a 6 de novembro do ano passado tornou-se adjunta de Fernando Paulo.
Enquanto isso, o lugar deixado vago pelo vereador nem sequer arrefeceu. E o substituto selecionado não precisou de ser dado a “filosofias”. A 6 de fevereiro, a maioria propôs mudar de novo o júri dos concursos para cargos de direção superior de 1º grau, recorrendo, aqui sim, a personalidades “de reconhecido mérito profissional, credibilidade e integridade pessoal” exteriores ao município. A escolha recaiu em Isabel Macedo Pinto (professora auxiliar da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto), Paula Marques (diretora-executiva da Porto Business School) e Sónia Martins Alves (diretora de Recursos Humanos do grupo Soja de Portugal). A nova composição foi aprovada nos órgãos autárquicos.
O concurso para diretor municipal da presidência apareceu a 21 de março no Diário da República, mas, ao contrário do que fora definido quando Fernando Paulo concorreu, o perfil exigido aos candidatos já não incluía a licenciatura em Filosofia “ou áreas afins”. Na formação académica, exigiu-se apenas uma “licenciatura”, sem especificar qual. O eleito para a função foi Adolfo Sousa, ex-diretor do Centro de Emprego de Gondomar. Na prática, o sucessor de Fernando Paulo já era da “casa”: entrara em 2016 para diretor do departamento de Auditoria Interna e, nos meses anteriores ao concurso, assumira, em regime de substituição, a Direção Municipal da Presidência, sucedendo a Fernando Paulo. Adolfo Sousa é também próximo do ex-vereador de Valentim Loureiro: antigo dirigente do PSD no concelho, ia em 4º lugar nas listas do movimento Gondomar no Coração às autárquicas de 2013 quando o Tribunal Constitucional “chumbou” a candidatura.
Apesar da eventual ligação de alguns protagonistas aos “méritos, truques e habilidades” que marcaram o consulado de Valentim Loureiro em Gondomar, para citar Nuno Santos, a “gondomarização” da Câmara do Porto não é crime. Mas o desconforto e as suspeitas em relação ao peso e à influência deste novo poder no município são indisfarçáveis. De resto, se tudo é transparente, como sugere o executivo, por que motivo se lê na página oficial do movimento político do presidente que o vereador Fernando Paulo foi, em 2014, “convidado por Rui Moreira para diretor da presidência”? Gralha ou lapso freudiano?