Jaime Gomes, amigo e ex-sócio do ex-ministro Miguel Macedo, estava há uns meses sob escuta nos Vistos Gold quando a Polícia Judiciária (PJ) intercetou uma conversa com Marques Mendes, ex-líder do PSD. Essa conversa, que consta dos anexos do processo a que a VISÃO teve acesso, mostra que Marques Mendes sabia, por exemplo, que a empresa Intelligent Life Solutions tinha sido beneficiada em sede de IVA pela Autoridade Tributária, num negócio de tratamento de feridos líbios em hospitais privados portugueses que valia à empresa quase 50 mil euros por cada doente. Esse favorecimento à empresa gerida por Paulo Lalanda e Castro, patrão de José Sócrates na Octapharma, em dois contratos de 2013 e de 2014, acabaria por lesar o Estado português em mais de 1,8 milhões de euros, concluiu a acusação. E acabaria por arrastar Miguel Macedo para uma acusação por crimes de tráfico de influência e prevaricação.
Faltavam quatro meses para rebentar o escândalo do caso Vistos Gold quando, a 22 de julho de 2014, Marques Mendes telefona a Jaime Gomes, seu antigo sócio, a perguntar por novidades. O empresário tinha uma “boa” e “má” notícia. A boa é que, no que respeitava “ao assunto do IVA”, as Finanças tinham dado “um parecer favorável”. A má é que naquele momento andavam “aos tiros no aeroporto” de Trípoli, capital da Líbia. E os feridos continuavam lá à espera, lamentava.
Marques Mendes começa por concentrar-se na parte positiva, dizendo que “essa coisa do IVA” era “importante”. Porque sem isso o negócio estaria “furado”, não era?, indagou o comentador televisivo. Mais do que isso: estaria “morto, morto, morto”, respondeu Jaime Gomes. A conversa seguiu com os dois interlocutores concentrados na parte negativa. Era preciso, dizia Marques Mendes, ver se a situação acalmava, se “não se matam todos”. Jaime Gomes sugere que até era melhor que não morressem: “Quanto mais feridos houver, mais oportunidades existem.” E continuou, entre risos, fazendo uma comparação com a história do cangalheiro que tinha uma funerária no hospital e dizia:
“Não quero que ninguém morra, mas quero que a minha vida corra.” Marques Mendes concordou: ali era a mesma história, só convinha era que “os gajos” não morressem. Mas se ficassem nem que fosse um pouco “tortos”, isso até daria “jeito”, ironizou.
Contactado pela VISÃO, Marques Mendes confirmou ter sabido da questão “do diferendo fiscal sobre o IVA”: “Porque o dr. Jaime Gomes chegou a ter, por meu intermédio, uma conversa com uma minha colega de escritório especialista em direito fiscal. Só isso. Nada mais.”
Quando, em novembro de 2014, a megaoperação Labirinto fez 11 detidos, de imediato apareceram referências a Marques Mendes por o advogado e comentador ter sido sócio de uma das empresas sob investigação: a JMF – Projects e Business. Na altura, aproveitando o seu espaço de comentário na SIC, Marques Mendes disse ter entrado naquela empresa com mais três pessoas [Miguel Macedo, Jaime Gomes e Ana Luísa Figueiredo, filha do ex-presidente do Instituto dos Registos e Notariado, António Figueiredo, também arguido no processo], mas sublinhou nunca ter exercido “qualquer cargo”, ter ido a qualquer reunião, tomado qualquer decisão ou “auferido um único euro” na empresa desde 2011.
O ex-líder do PSD também negou qualquer outra ligação ao Vistos Gold. Mas, mais tarde, seria noticiado que o então conselheiro de Estado tinha sido apanhado nas escutas do processo a interceder junto de António Figueiredo para a atribuição da nacionalidade portuguesa a cidadãos estrangeiros e a pedir ajuda para resolver um problema que a filha tinha com o cartão de cidadão. Nessa altura, Marques Mendes terá argumentado que se limitara a pedir informações sobre o andamento de dois processos que estavam bloqueados.
Perdão de IVA a quanto obriga
As conversas telefónicas e as sms registadas no processo mostram que Jaime Gomes, dono de uma empresa contratada por Lalanda e Castro para ajudar no processo de obtenção de vistos, teve durante meses uma preocupação constante: conseguir a isenção de IVA para a Intelligent Life Solutions. Fez um relatório detalhado para a Autoridade Tributária a explicar porque a empresa deveria ser isenta do pagamento de IVA, e insistiu junto de Miguel Macedo e do então diretor nacional do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), Manuel Palos, para que a emissão dos vistos fosse facilitada. A 4 de julho de 2014, um dia depois de jantar com o então ministro da Administração Interna num restaurante da linha de Cascais, Jaime Gomes garantia a Nélson Pereira, outro sócio da Intelligent Life Solutions, que Macedo daria ao negócio a necessária “cobertura política”. É a Macedo, o “grande chefe”, que passará a recorrer sempre que não consegue desbloquear outros contactos, quando alguém está de férias ou não atende o telefone. A 21 de agosto, após novo jantar com Macedo, comentará de novo com Nélson que o então ministro também já teria falado com o seu colega dos Negócios Estrangeiros, Rui Machete.
A 22 de agosto desse ano, é António Figueiredo quem insiste em falar com Macedo, pois precisava de lhe dizer que tinha “gente perigosa” no gabinete. Em sua posse teria documentação que mostraria que o então governante estaria rodeado de pessoas que estariam “a tentar lixá-lo”.
Mas não é só desses lados que Miguel Macedo recebe pressões. Os contactos para que ajudasse no negócio da prestação de cuidados médicos a feridos de guerra tinham começado muito antes. Já em março de 2013, António Marques, presidente da Associação Industrial do Minho (AIMinho), aproveitava uma conversa ao telefone com o então governante para lhe dizer que lhe iria enviar por email uma folha A4 sobre o tratamento que o hospital de Guimarães estava a fazer aos líbios. E dizia que o embaixador da Líbia queria conversar com Macedo porque o hospital de Guimarães estaria com “umas certas dificuldades”. O então ministro respondia que o SEF tinha ajudado, emitindo rapidamente os vistos. Mas esse não seria o único problema. Teófilo Leite, presidente da Associação Portuguesa da Hospitalização Privada, teria comentado com António Marques que queria que quem viesse fazer fisioterapia ficasse hospedado “no hotel”. “Ele fala-me em milhões, já recebeu não sei quantos milhões”, disse o presidente da AIMinho a Macedo. O então ministro concordou que eram “muitos milhões”, disse que “facilitavam” por ser um negócio e ajudar as empresas, mas que era necessária cautela para não se meterem num “31 qualquer”, pois podia haver infiltrados naquelas zonas de conflito. Além do mais, sublinhou, não seria a primeira vez que teriam de ir para a rua à procura de alguns líbios mais fugidios.
Estas conversas estavam a ser ouvidas no âmbito de outro processo que investiga suspeitas de fraude na AIMinho, uma das maiores associações empresariais do País, em projetos cofinanciados pelo orçamento português ou pela União Europeia. Em abril de 2015, o juiz Carlos Alexandre, responsável por validar as escutas dos processos conduzidos pelo Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), decidiu extrair uma certidão e juntar o conteúdo destas conversações ao processo Vistos Gold. Contactado pela VISÃO, Miguel Macedo não quis prestar declarações.
De Costa a Salgado
A 4 de julho de 2014, Lalanda e Castro tenta perceber junto de Jaime Gomes como estão a decorrer as negociações e se irão ter “uma nega” em relação à Líbia. O empresário responde que se for preciso envolve “a cavalaria toda”. O líder da Octapharma aproveita para fazer um convite: que reservasse o dia 10 de setembro para viajar com ele próprio, com o seu sócio Nélson Pereira, com José Sócrates e com Cunha Ribeiro, ex-responsável da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, até à Argélia, num avião privado, com o objetivo de visitar presidentes e ministros e procurar novos negócios.
Jaime Gomes e Lalanda e Castro estavam concentrados em descobrir novas áreas de investimento. A 12 de novembro, Jaime Gomes liga a Lalanda para o informar que estava num jantar com um investidor chinês que queria comprar os terrenos da Feira Popular e pergunta-lhe se podia pedir ao seu “subordinado” (José Sócrates) para interceder junto de António Costa, então presidente da Câmara de Lisboa, para que o recebesse. Paulo responde que precisamente no dia seguinte iria jantar com Costa e Sócrates. E acrescenta que quem ele conhece muito bem é o arquiteto Manuel Salgado, vereador de urbanismo da autarquia. “Já sei que mandas no Salgado”, disse Jaime Gomes, mas “eu quero é que mandes no Costa”. Lalanda e Castro divergiu: quem mandava ali, dizia, já não era Costa, mas Salgado. Não há qualquer indicação no processo de que aquelas tentativas de influência tenham ido avante. Afinal, todos os planos acabariam por ser travados. No dia seguinte, 13 de novembro, Jaime Gomes e outras dez pessoas eram detidas por suspeitas de terem montado uma rede de corrupção, prevaricação e tráfico de influência em torno da atribuição de vistos dourados. Miguel Macedo não chegaria a ser detido. Mas terminaria aí – até ver – a sua carreira política.
O julgamento
Carlos Alexandre concordou com a acusação do Ministério Público e decidiu levar os arguidos do processo Vistos Gold (ao todo 17) a julgamento. Todos eles, incluindo o ex-ministro Miguel Macedo, irão responder por terem “comercializado” aquilo que o juiz considerou serem “os alicerces do aparelho de Estado”. António Figueiredo, ex-presidente do Instituto dos Registos e Notariado (IRN), é a personagem no centro do tabuleiro. Iria movendo influências para levar avante os seus negócios imobiliários privados que giravam em torno de vistos dourados atribuídos a cidadãos chineses. Mas a investigação, que apanhou ainda figuras como o ex-diretor do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), Manuel Jarmela Palos, e a ex-secretária- -geral do Ministério da Justiça, Maria Antónia Anes, foi além disso. Passou pela Líbia, cruzou-se com outros processos e pôs a nu uma rede de troca de favores montada entre políticos e altos quadros do Estado. Em causa estão crimes de corrupção, abuso de poder, prevaricação e tráfico de influência.
As ligações
– Miguel Macedo, Jaime Gomes, António Figueiredo e Paulo Elísio de Souza, presidente da Câmara do Comércio e Indústria do Rio de Janeiro, abriram uma empresa no Brasil – a Tecnobras –, em 2011, já depois de Macedo tomar posse como ministro da Administração Interna. Através dos emails apanhados durante as buscas, os investigadores perceberam que usavam testas de ferro no negócio
– Macedo, Jaime Gomes, Marques Mendes e a filha de António Figueiredo partilharam a sociedade da empresa JMF – Projects & Business
– A Intelligent Life Solutions, de Paulo Lalanda e Castro, contratou a JAG de Jaime Gomes para ajudar no processo de emissão de vistos de entrada de cidadãos líbios em Portugal