Manuel Maria Carrilho, 59 anos, embaixador na UNESCO e militante do PS
Manuel Maria Carrilho ainda não sabe por que está de saída da UNESCO, onde desempenhou o papel de embaixador nos últimos dois anos. Admite que as suas críticas não foram bem recebidas, quer nas necessidades, quer em São Bento. Mas não se atemoriza. “Tenciono manter-me atento, ativo e proposito”, diz, na sua sala, em Lisboa, rodeado pelos retratos do seu bisavô, uma fotografia, e do seu tetravô, num óleo de Almeida e Silva. As obras de arte enchem as paredes do seu apartamento. Os livros mostram uma espécie rara, nos dias que correm: um intelectual que gosta de política. A enciclopédia Einaudi (a mais ousada das enciclopédias) ocupa uma estante. Mas carrilho faz questão de mostrar que não carrega verbetes com respostas para os problemas do País. Pelo contrário.
Ao mesmo tempo que ensaia a mais acutilante crítica a José Sócrates, “alguém sem preparação, com pouca visão sobre o país e o mundo, que recebeu de mão beijada uma maioria absoluta”, avalia os resultados do seu “reformismo”. Que reduz a um “voluntarismo”, muitas vezes um puro “deslumbramento”. E se é normal, numa entrevista a um filósofo, que a palavra “paradigma” surja, uma vez, já será menos habitual que um socialista se refira, por duas vezes, a “capital” e a “capitalismo”. Carrilho quer que o PS regresse “à sua matriz igualitária” e que arrume, de vez, o “socialismo moderno” numa gaveta, em conjunto com a sua “abdicação perante o poder financeiro”. A crise alterou tudo. Começando no paradigma e acabando no socialismo.
As respostas aqui estão, para o debate. O primeiro-ministro tem de “fazer prova de vida da sua liderança”, remodelando. Caso contrário, o PS vai ter de se habituar à ideia de que terá “uma escolha difícil” nas próximas eleições, provavelmente já no próximo ano: ou segue Sócrates, ou muda de rumo. Um dilema semelhante ao da Europa – da qual Portugal é uma espécie de “mordomo chic”, ou “empresa de eventos” -, que tem de assegurar um “governo económico” ou, então, aceitar o fim do euro.
Esta é a primeira entrevista que Carrilho dá, depois da notícia da sua demissão da UNESCO.
Já tem data de saída de Paris?
Estou a tratar disso. Já saiu em Diário da República, agora correm os procedimentos normais. Estou de regresso a Lisboa, dentro de umas semanas.
Vai voltar a dar aulas?
Sim. Sou catedrático de Filosofia Contemporânea, na Universidade Nova, função que exerço desde 1994, no seguimento diversos concursos públicos. É a minha vida. Tenho também responsabilidades em universidades estrangeiras. E tenho imensas saudades da de professor.
Já percebeu o que motivou a sua demissão?
(Risos) Não tenho pensado nisso… Percebi que havia vontade de que eu não continuasse. Assumi uma missão na UNESCO, com a qual me identificava bastante. A partir do momento em que não há confiança no embaixador, para mim é claro que a missão deve terminar. Tenho pena que isso tivesse a ver com o chamado caso do “voto escabroso” …
Está a falar da votação para a Direção-Geral da Unesco…
Sim. Procurei que Portugal não se desalinhasse da posição da União Europeia, ao apoiar um candidato que era responsável pelo encarceramento de imensos jornalistas, escritores, pela proibição de livros, censuras… Enfim, tinha um historial que não recomendava, de forma nenhuma, que Portugal o apoiasse. Não sei se foi por isso… As interpretações, entretanto, acumularam-se. Houve a entrevista [ao Expresso]. Há também quem diga que o memorando que escrevi sobre a reforma da rede diplomática, e enviei ao primeiro-ministro, não ajudou… Para mim, ponto final e missão cumprida. Tenho outra vida. Gosto muito de servir o País nas áreas em que me julgo capaz, mas sinto-me muito bem na minha vida normal.
Só para clarificar: não desrespeitou a ordem do Governo, que era votar no candidato egípcio?
Não. Foi o próprio Governo que – e as palavras do ministro Amado foram precisamente estas – em atenção ao meu “perfil humanista”, me pediu que me fizesse substituir. O que é um processo absolutamente normal, com embaixadores políticos, em matérias delicadas. Não houve nenhum desrespeito pelo voto do Governo, seja ela bom ou mau, a história o dirá… Seria absurdo, e um sinal terrível para o Mundo, que no topo da organização de defesa da educação, ciência, cultura e direitos humanos da ONU estivesse alguém que tinha ameaçado queimar todos os livros da cultura judaica que encontrasse em bibliotecas, a começar pela biblioteca de Alexandria. Aqui houve, provavelmente, um grande equívoco, se me nomearam para eu fazer coisas destas… Mas o equívoco foi corrigido.
Vai manter a sua intervenção política, agora que deixa de ser embaixador?
Manterei a minha intervenção política como cidadão empenhado e militante de base do PS, que está no PS por convicção. Aderi em 1986, com a minha vida profissional, digamos, resolvida. Tenciono manter-me atento, ativo e propositivo. Nas actuais circunstâncias, isso é um imperativo. Devo ao País este capital de experiência, de ter criado o Ministério da Cultura – infelizmente, hoje quase completamente destruído -, e que é um património do PS e da governação dos anos 1995/2000. Estive vários anos no Parlamento, fui candidato à presidência da Câmara de Lisboa, embaixador, Tudo isto está ao serviço do meu partido, e sobretudo do meu País, de uma forma completamente desinteressada. E não sou candidato a nada, deixe-me dizer-lhe antes que me faça a pergunta.
Leu a entrevista de Luís Amado ao Expresso, em que ele defende uma grande coligação? Acredita que esse é o caminho certo para o País?
Não, não acredito, foi uma entrevista estranha… e muito irresponsável. Um ministro que tem a responsabilidade da política externa, e que tem vários assuntos sobre os quais podia falar, não deve falar sobre outros tópicos, sobre os quais não tem responsabilidade. A fórmula do Governo, se é maioritário ou minoritário, bem como a sua composição, são matérias da exclusiva responsabilidade do primeiro-ministro.
Mas ser um Governo minoritário é uma dificuldade acrescida?
O que é bizarro, é que o ministro dos Negócios Estrangeiros só descubra ao fim de um ano e alguns meses, que somos o único Governo minoritário da Europa. A ele, e ao primeiro-ministro, lembrei no momento próprio que o PS tinha ganho as eleições, mas perdido a maioria. O poder, como diz Ítalo Calvino, traz sempre, sobretudo no momento da vitória, alguma alucinação consigo… Calvino tem muita razão. O sinal mais claro daquelas eleições, que o eleitorado não queria o PS a governar sozinho, foi o mais ignorado. Não imagina a impressão que isso me fez, na altura.
O Governo diz que lançou um repto à oposição para que se formasse uma coligação.
É um facto. Lembro-me de comentar isso, na altura, em Paris, com o Francisco Seixas da Costa. Foi tudo teatro. E não vale a pena fazer de conta que as pessoas são estúpidas. Toda a gente percebeu a simulação, em que todos os paridos participaram…. Não foi sério: negociações a sério significa pôr na mesa dossiês, apurar os pontos que são negociáveis e os que são inegociáveis, etc. Não foi feito nem um esboço desse trabalho.
Em Portugal, os Governos de coligação à esquerda são impossíveis?
Criou-se em Portugal uma cultura política de crispação muito acentuada, que é preciso contrariar. Política é negociação. Os eleitorados cada vez mais se fragmentam. O grande tópico, e já há 10 anos, na Europa, é como conseguir governar em maioria. Em minoria, é uma hipótese que nem se põe.
E por cá houve a má experiência dos governos Guterres…
Ainda por cima… O que mais me choca, é isto vir de pessoas que tiveram essa experiência. A grande diferença entre o Governo de hoje e os de António Guterres é que então não só ficámos, por duas vezes, a poucas décimas da maioria absoluta, como o resultado melhorou da primeira para a segunda eleição. Havia uma grande expectativa de chegarmos à maioria absoluta, e assim se conseguiu muito ânimo. Mas isso não aconteceu, e depois o que se deu foi o colapso pessoal e político do primeiro-ministro. Foi um ano terrível. Saí desse segundo governo de A.Guterres ao fim de nove meses, porque percebi que se tinha desistido de não se governar. Hoje, já o posso contar: na última conversa que então tive com Guterres, quando lhe pedi que me libertasse, disse-lhe que percebia muito bem que, quem já se queria ir embora naquela altura, muito mais do que eu, era ele. Era uma situação completamente bloqueada. Mas que conduziu àquilo que, hoje, volta a estar no horizonte: o pântano. Se não há maiorias claras, tudo se torna pantanoso.
Com quem é que o PS devia negociar uma maioria, hoje?
O problema é que as coisas, quando começam mal, às vezes não têm remédio…só remendos.
Se voltasse a Setembro do ano passado, o que faria?
O PS devia, nessa altura, ter chamado os partidos para avaliar com quem seria mais fácil, dadas as circunstâncias, negociar. Negociar é uma arte. É preciso discrição, mas também uma grande transparência. Saber quem cede o quê e porquê. E também convinha ter uma apreciação realista sobre a crise, que na altura se negava. Havia uma dupla ilusão: que a maioria relativa é, no fundo, igual a maioria absoluta. E que a crise estava a acabar. Viu-se!
E hoje, ainda é possível negociar?
Parece-me muito difícil, porque ninguém quer… Todos os partidos sobem nas sondagens, menos o PS. Não levo a sério propostas de salvação nacional, ou de remodelação sem a presença do actual primeiro-ministro. O problema da credibilidade deste governo deve-se à ausência de programa. O governo negou a realidade, mas ela vingou-se e privou-o do seu programa.
Que era o do estímulo à economia.
Sim, o das grandes obras públicas. E não há coordenação, como se vê pelos fait-divers dos últimos tempos. O primeiro-ministro não tem liderança. Há ministros muito fracos, que nunca ouvimos falar, há desadequações de pastas. Neste momento, vejo com muita dificuldade que se possa mudar a fórmula.
O que se pode fazer?
Quando não se pode mudar a fórmula, tem que se recorrer a outros meios. O primeiro-ministro tem um mandato para governar nas condições que quis, é o primeiro-ministro legítimo. Como não conseguiu alargar o seu mandato pela negociação, deve fazê-lo pelo élan. Relançando-o em termos de ideias, de estratégia, de pessoas, com o melhor que conseguir.
Como?
Remodelando, apesar de sabermos que não adianta muito mudar apenas pessoas…
E há condições de recrutamento?
Aí, é que Sócrates tem de fazer a prova de vida da sua liderança. Se não, terá talvez que tirar as condições que tiraram Tony Blair e António Guterres… Ou há capacidade para revigorar o governo, com novas causas que mobilizem o País, indo buscar o melhor que a sociedade tem, ou então, sem querer fazer de profeta, parece-me que caminhamos para eleições antecipadas no próximo ano. E nessas eleições, antevejo que o PS vai ter de tomar uma decisão muito difícil: se segue com esta liderança, que vai aparecer completamente entrincheirada e com um balanço que dificilmente será muito bom, ou…
Já fez esse balanço?
Há um inventário a fazer, que creio que apontará para um reformismo que, finalmente, acabou por ter poucos resultados. Foi um reformismo que se esgotou, em grande medida, numa afirmação da vontade, de puro voluntarismo. Mas não conseguiu transformar quase nada. Ainda agora li algo sobre o caso das rendas, da habitação. Fez-se do reformismo uma questão de vontade, como se fosse a mesma coisa reformar a saúde, a justiça ou a educação. Como se fosse uma questão de método, indiferente ao conteúdo, à realidade. O PS vai por isso ter de decidir se se apresenta ao País a defender apenas um passivo, sem capacidade de se projetar no futuro, ou se renova a sua liderança e estratégia.
E qual é a sua resposta a esse dilema?
Sou completamente a favor de um PS que retome, com os olhos bem abertos para o mundo de hoje, a sua inspiração histórica e ideológica. Fui sempre muito crítico do socialismo “moderno”. A “modernidade” deste socialismo pareceu-me sempre apoiar-se em duas coisas: por um lado, numa abdicação em relação aos grandes valores do socialismo, à sua matriz igualitária, e às suas grandes causas, como a igualdade, a educação e a cultura. E, por outro lado, numa abdicação perante o poder financeiro e tecnológico. O socialismo “moderno” pretendia-se arejado, descomplexado – mas tudo não passava de deslumbramento com o poder tecnológico e financeiro. O deslumbramento em política é muito negativo. Mas é típico de pessoas com pouco conhecimento da história, que não têm a perspectiva do futuro, que só respiram no curto prazo, que avaliam necessariamente mal as coisas. Não foi por acaso que tive outra opção, em 2004, quando se sufragou o socialismo “moderno”.
Aí apoiou Manuel Alegre. Que perdeu…
Apoiei, trabalhámos na altura muito a ideia do Estado estratega…
Em 2007 chegou a pensar que isso seria possível, quando a crise pôs a nu a falência de um modelo neo-liberal?
Vários políticos, nacionais e internacionais, diziam nessa altura que a política ia voltar. Como se a desregulamentação, a ideologia neo-liberal não fossem elas próprias políticas… É muito dececionante o que se tem passado internacionalmente, no G20 e na União Europeia. Estamos quase exatamente no ponto em que estávamos há dois. E não deixa de ser preocupante que as soluções encontradas para os problemas, sejam as mesmas por todo o lado, independentemente da orientação política dos governos. O que aconteceu, foi que se esgotou o que tenho chamado o paradigma do ilimitado, tudo podia crescer sem fim: as matérias-primas, o consumo, o crédito, a dívida. Isso terminou. Desde os anos 70, o crescimento no Ocidente alavancou-se no crédito. Há um crescimento salarial até aos anos 70, depois ele estanca e começa o crédito. Mas se não há mais salário nem mais crédito, como crescer? Qual vai ser o motor do crescimento? Esta é a pergunta. Quanto a nós, é gravíssimo não se ter percebido tudo isto, e as suas consequências, a tempo. Agora deixámos de ter política. Quando só há orçamento, acabou a política.
O que se devia ter feito?
Desviar, e há muito, o investimento do betão para a qualificação. Investir na criatividade e na formação como base da nossa produtividade e competitividade. Nas universidades, nas escolas, no pré-primário. Penso que foi um erro ter-se prolongado o ensino obrigatório até ao 12º ano, devia era começar-se aos três anos. Aí é que começam as grandes desigualdades. E não são as percentagens do PIB que interessa comparar, é a realidade. Vamos a uma escola alemã, e vemos o ginásio, o laboratório, a biblioteca, a mediateca, os instrumentos musicais, etc. Vamos à escola portuguesa e as condições são fraquíssimas, apesar de muitas delas terem agora sido recuperadas. Esse é o nosso maior défice, não é o orçamental. Desde o século XIX, o défice português é o das qualificações, quando a Europa do Norte já estava toda alfabetizada e nós ainda tínhamos 80% de analfabetos.
Nenhum político percebeu isso?
Guterres percebeu. Mas não foi capaz de levar isto para a frente.
Não conseguiu porquê?
Porque não teve maioria. É uma das tragédias da nossa história política recente que o líder mais qualificado, mais dotado e mais preparado, de todos os líderes que o PS teve, não tenha tido a maioria absoluta. E, depois, que também não tenha tido coragem. Muitas vezes acusam-me de ter criticado Guterres, mais do que a atual direção. Mas se fui muito crítico, foi porque fui muito fã.
Teve mais expectativas com Guterres do que com Sócrates?
Tive uma expectativa e confiança política em Guterres, que não tive em mais ninguém. Como ele diria, é a vida… Mas não deixa de ser uma ironia que acabe por ser alguém sem preparação, com pouca visão sobre o país e o mundo, que receba de mão beijada, sem ter feito quase nada por isso, três ou quatro meses depois de chegar a líder, uma maioria absoluta. Para, do meu ponto de vista, esbulhar o potencial dessa maioria.
E não é de salientar que o PS não tenha dirigentes que se imponham a esse rumo?
Provavelmente… sabe, a determinação e a teimosia tanto podem vir de uma profunda segurança, como de uma extrema insegurança. Penso ter sido este o caso, uma grande insegurança. Guterres, pelo contrário, era uma pessoa muito aberta, que ouvia todas as opiniões com imenso prazer, os conselhos de ministros tinham sempre uma primeira parte de debate, que era a mais importante, sobre política geral…Um bom estadista tem de ter a capacidade de ouvir. Ouvir o inesperado porque, como digo muitas vezes, ouvir aumenta a visão. Como, com o fim do guterrismo, se criou uma ideia – justa, de resto – de indecisão, passou a valorizar-se cegamente a determinação. Mas ela pode ter consequências ainda mais funestas, o que conta é o que se faz…
E fez-se?
Esse lado muito determinado, muito voluntarista, acabou por desvalorizar o conteúdo das coisas. É como se tudo dependesse da vontade… Não há ninguém tão parecido com com Sarkozy, como Sócrates, que de resto o elogiou várias vezes. Eu prefiro um programa realista, que dependa mais da composição das vontades. Obama conseguiu a reforma da saúde, nos EUA, porque agiu com realismo, sem ímpetos voluntaristas.
Mas Obama é, de facto, uma exceção, ou não? Os políticos portugueses não são todos voluntaristas, desse ponto de vista?
Há uma ligação entre o voluntarismo e uma certa cultura, digamos, vanguardista. Todos os partidos políticos, da extrema-direita à extrema-esquerda, em Portugal, são vanguardistas. Acham que conseguem cozinhar, num gabinete, com três ou quatro membros, um caminho para o País. Ao contrário dos alemães ou dos ingleses, não têm grupos de estudos, nem ligações às universidades ou a think-tanks. Mas imaginam que conseguem definir, em “petit comité”, o projeto que o País há-de seguir. Ignoram a sociedade, que é muito melhor que a política. É na sociedade que fervilham ideias, audácia, conhecimento. A política é tão dogmática, quanto a sociedade é aberta.
No seu livro fala disso. E da legitimidade que um governo tem de ganhar, durante o mandato, fora das eleições. Como vê a atuação do governo do PS?
Foi sempre muito insensível em relação a todas as outras formas de legitimidade. É um sinal de anacronismo, imaginar que, porque se tem a maioria dos deputados, se tem legitimidade suficiente para tudo. Já ninguém pensa assim nas sociedades contemporâneas, com o individualismo de massas, com a informação e a comunicação que hoje existe, é completamente anacrónico.
Esse individualismo pode ser mobilizado, veja-se o caso de Obama.
Claro. Nas últimas primárias americanas votaram 18,5% dos americanos. Sabe quantos portugueses intervieram nas “directas” dos dois principais partidos? 0,65 por cento. À legitimidade eleitoral, juntam-se hoje os media, as sondagens, as autoridades independentes, que são outras tantas formas de legitimidade com que um político tem de saber lidar. Por isso é errado dizer-se “nós temos toda a legitimidade porque tivemos mais votos”. O cidadão sente isto como uma agressão, como uma forma de desrespeito. É o que mais falta hoje – respeito.
E isso não pode ser uma estratégia, agredir uma parte da sociedade para receber a simpatia da maioria?
Não me parece. Esta forma de agir agride toda a sociedade. A dinâmica da maioria absoluta foi sempre de grande sobranceria, de grande arrogância, com base nesta leitura arcaica da legitimidade. O PS, no futuro, tem de se enriquecer no pluralismo, no debate interno.
E existe esse debate interno?
Sou militante há 25 anos, encontro constantemente socialistas que lamentam não serem ouvidos para nada. O debate desapareceu por completo. As Novas Fronteiras não passam de simulacros de discussão. Tenho algum incómodo, quase vergonha dos universitários que vejo lá, quando na véspera já se anunciou tudo aquilo que vão dizer. Prestarem-se a simular debates, é uma coisa aterradora.
Quando fala do património social, defende mais ou menos Estado providência?
O Estado providência tem que ser séria e profundamente repensado, nas actuais condições da globalização. Não basta repetir slogans. É preciso trabalhar para instituir um novo equilíbrio entre o capital e o trabalho, o que é extremamente difícil porque o trabalho é local e o capital é global. Com a globalização, todos os dados se alteraram, e o socialismo democrático ora procurou uma compensação ideológica com o tema europeu (foi o que aconteceu nos anos oitenta), ora se deixou seduzir pela exuberância financeira (foi o que aconteceu nos anos noventa). Desmuniciou-se. É aqui que é preciso trabalhar hoje, sabendo que não existe nenhuma alternativa global ao capitalismo, em termos de modelo económico. O momento exige, por isso, muita abertura de espírito, muita visão global, muita atenção local e muita capacidade propositiva, com os olhos postos na necessidade de alargar o estado de direito ao nível global. É isso ou a selva.
Esse problema não é europeu? Não lhe parece que o projeto europeu está a colapsar?
Ainda há dias ouvia Hubert Védrine, que foi ministro dos negócios estrangeiros de Jospin, em França, depois de ter sido conselheiro de Mitterrand. Ele lembrava que todos os meses havia encontros, públicos ou privados, entre Mitterrand e Kohl. Ele fez mais de 100 cimeiras. Trabalhava-se assim. Hoje, estes líderes encontram-se meia hora, e em tempo de crise! Entregam tudo a assessores, a conselheiros de comunicação, fogem dos jornalistas. Penso que sem um referendo simultâneo em todos os países da Europa, não haverá nunca uma Europa democrática. Provavelmente hoje já é tarde demais…Com o Tratado de Lisboa passou-se ao lado do essencial: o governo económico e o imperativo democrático. A zona euro, sem governo económico, vai estoirar. A heterogeneidade das economias é tal e tão crescente, na produção de riqueza, na vitalidade estratégica, na competitividade, na fiscalidade, que não há instrumentos para segurar o euro.
Qual devia ter sido o papel de Portugal nesta crise? Devia ter tentado articular uma posição com o das outras economias sob ataque?
Por exemplo. Podia ter feito muita coisa, mas Portugal hoje gosta de ter esta posição de ser uma espécie de mordomo de eventos. Acolhe nos Jerónimos, na Expo, recebe muito bem as pessoas, vai buscá-las ao aeroporto…. E ideias? Nada. Bom, é uma opção. Decidimos ser uma empresa de eventos. E estamos a fazê-lo muito bem. Qual foi a contribuição de Portugal para o Tratado de Lisboa? Devia ter-se feito finca-pé no governo económico, que era o ponto decisivo. Mas como se queria fazer a festa em Lisboa, abriu-se mão de tudo. Na altura propus a Sócrates que se criasse de forma permanente em Lisboa um Fórum sobre a Europa, um laboratório de ideias sobre a Europa, com pensadores de várias origens e formações, que ajudassem a pensar os problemas no médio e longo prazo, que é hoje a grande dificuldade dos políticos.
Apoia Manuel Alegre nas presidenciais?
Até ao momento, ainda não me manifestei publicamente. E pondero se devo ou não fazê-lo. As presidenciais são importantes, mas infelizmente não ouvi a nenhum candidato nada de relevante. Não partilho da leitura minimalista de Cavaco Silva, em quem nunca votei na vida, e não penso que isso se vá alterar. Mas esperava de Manuel Alegre um discurso mais em fase com os problemas do País e do Mundo.
O próximo Presidente pode ser o agente da mudança?
Estava a escrever sobre isso. A única hipótese de haver uma solução que não passe por eleições, e não decorra de um eventual relançamento da atual liderança do PS, só pode acontecer por iniciativa presidencial. Mas se isso for uma hipótese, tem de ficar claro na campanha presidencial. A eleição dará uma legitimidade fortíssima ao candidato que for eleito. Espero que depois não aconteçam surpresas que não tenham sido faladas durante a campanha. Espero que Manuel Alegre e Cavaco Silva digam, claramente, se e como encaram uma intervenção presidencial. Devem isso ao País.