Na quinta-feira, na sua comunicação diária, o presidente da Ucrânia não poupou nas palavras, mas desta vez o alvo da sua fúria era uma ONG, não o Kremlin. “Se alguém faz uma denúncia em que a vítima e o agressor são iguais, se for analisada informação sobre a vítima e ignorado o que o agressor estava a fazer, isso não pode ser tolerado.”
O ministro dos Negócios Estrangeiros fez uma crítica semelhante. “Este comportamento da Amnistia Internacional não passa por encontrar e transmitir a verdade ao mundo, mas sim por criar um falso equilíbrio entre o criminoso e a vítima, entre o país que destrói centenas e milhares de civis, cidades, territórios inteiros e o país que se está a defender desesperadamente, a salvar o seu povo desse ataque.”
Volodymyr Zelensky e Dmitro Kuleba referiam-se ao relatório da Amnistia Internacional (AI) intitulado “Táticas de combate ucranianas põem civis em risco”, que inflamou Kiev e os seus aliados, ao acusar o exército defensor de montar bases militares em zonas residenciais, nomeadamente em hospitais e em escolas, e lançar ataques a partir daí.
Entretanto, os meios de propaganda russos não perderam tempo a instrumentalizar o relatório para justificar os ataques a zonas civis. A Embaixada da Rússia no Reino Unido, por exemplo, que a semana passada apelou ao enforcamento de prisioneiros de guerra ucranianos, imediatamente publicou um tweet: “A Amnistia Internacional confirma que a Ucrânia viola leis humanitárias internacionais e põe civis em risco”, tal como “a Rússia tem vindo a dizer”.
Os ucranianos deviam montar as suas bases em… florestas
A AI, cujos investigadores se concentraram em recolher testemunhos e provas nas regiões de Kharkiv, Mykolaiv e Donbass, diz ter encontrado evidências de que o exército ucraniano montou bases em, ou lançou ataques a partir de, 19 vilas ou aldeias. “A maioria das áreas residenciais onde os soldados se localizavam ficavam a quilómetros de distância das linhas de frente. Havia alternativas viáveis que não colocariam civis em perigo – como bases militares ou áreas densamente arborizadas próximas, ou outras estruturas mais distantes de áreas residenciais.”
Além de a distância da localização dos soldados às “linhas da frente” ser extremamente vaga (quantos quilómetros? Dois? Vinte? 200?), é bizarra a sugestão de que as “alternativas viáveis” são bases militares e florestas, quando os militares estão a proteger as cidades. “Não é uma violação do Direito Internacional Humanitário que os militares ucranianos se situem no terreno que têm a tarefa de defender, em vez num pedaço aleatório de floresta adjacente, onde possam ser contornados”, escreveu Jack Watling, investigador sénior do Royal United Services Institute, o mais antigo think tank britânico de defesa e segurança.
Os militares não evacuaram as zonas residenciais
“Nos casos documentados, a AI não está ciente de que os militares ucranianos que se localizaram em estruturas civis em áreas residenciais pediram ou ajudaram civis a evacuar prédios próximos – uma falha em tomar todas as precauções possíveis para proteger os civis”, lê-se no relatório.
É uma acusação estranha, sabendo-se que, desde o início da invasão, as autoridades ucranianas têm repetido os apelos aos civis para abandonarem as suas casas nas regiões sob ataque dos russos e procurarem refúgio. Ainda no dia 1 de agosto, Zelensky ordenou à população da região de Donetsk sob controlo ucraniano para abandonar esse território. O próprio exército, aliás, tem organizado inúmeros corredores humanitários para ajudar os civis a fugirem para zonas mais seguras. Mas estes apelos esbarram muitas vezes na intransigência dos habitantes, que se recusam terminantemente a sair, mesmo sob ordens diretas. A Ucrânia poderia forçar a evacuação – mas, nesse caso, estaria a violar o Direito Internacional Humanitário, que determina a proibição de deslocação de pessoas contra a sua vontade.
A AI também parece culpar os agredidos pela falta de pontaria dos agressores. “Em Bakhmut, vários moradores disseram à AI que os militares ucranianos estavam a usar um prédio a apenas 20 metros do outro lado da rua de um arranha-céus residencial. A 18 de maio, um míssil russo atingiu a frente do prédio, destruindo parcialmente cinco apartamentos e danificando prédios próximos.”
Hospitais usados como base militar
“Investigadores da AI testemunharam forças ucranianas a usar hospitais como bases militares de facto em cinco locais. Em duas cidades, dezenas de soldados estavam a descansar, a circular e a comer em hospitais. Em outra cidade, soldados estavam a disparar de perto de um hospital. (…) Usar hospitais para fins militares é uma clara violação do Direito Internacional Humanitário.”
Mais uma vez, o relatório é surpreendentemente vago, neste caso não descrevendo o que significa “usar hospitais como bases militares”. Eram centros de comando e controlo? Estavam lá guardados equipamentos militares e munições? A frase seguinte dá a entender que os soldados poderiam estar simplesmente a receber tratamento (“descansar, circular e comer”), o que não é proibido pela Convenção de Genebra: Os hospitais são “zonas neutralizadas”, “destinadas a proteger os feridos, enfermos e civis dos efeitos do conflito”. Ou seja, ao fazer esta distinção, a lei internacional prevê que os feridos não sejam necessariamente civis, pelo que a presença de militares nos hospitais não é automaticamente ilegal.
Não se pode usar escolas como base militar, mas… afinal pode
A AI dedica todo um bloco do relatório ao facto de o exército ucraniano utilizar escolas como bases militares. “Os militares ucranianos estabeleceram rotineiramente bases em escolas em cidades e vilas no Donbass e na área de Mykolaiv”, começa por acusar. Mas acrescenta, de seguida, que as escolas estavam desativadas, admitindo que “o Direito Internacional Humanitário não proíbe especificamente as partes em conflito de se estabelecerem em escolas que não estão em funcionamento.”
“No entanto”, continua o relatório, “os militares têm a obrigação de evitar o uso de escolas próximas a casas ou prédios de apartamentos cheios de civis, colocando essas vidas em risco, a menos que haja uma necessidade militar imperiosa.” Além disso, “a Ucrânia é um dos 114 países que endossaram a Declaração de Escolas Seguras, um acordo para proteger a educação durante conflitos armados, que permite que as partes façam uso de escolas abandonadas apenas quando não houver alternativa viável.”
A AI, no entanto, não explica o que a levou à conclusão de que haveria alternativas. Steven Haines, professor de Direito Internacional Público da Universidade de Greenwich, em Londres, entrevistado pelo Guardian, diz que “o uso de escolas – se não estiverem a ser usadas para o seu propósito principal – não é invariavelmente ilegal”. “Muito obviamente, a situação na Ucrânia conta como excecional a esse respeito, pelo que os militares ucranianos não estão necessariamente a violar estas diretrizes.” Num cenário ideal, conclui o especialista em Direito Internacional, as áreas povoadas não fariam parte da guerra, mas a natureza da invasão significa que a guerra urbana é inevitável na Ucrânia.
Em todos os conflitos, é comum os militares usarem escolas desativadas, uma vez que são infraestruturas com casas de banho, duches, cozinhas e várias salas onde podem ser instaladas camas para os soldados.
A culpa é da vítima?
Agnès Callamard, a secretária-geral da AI, é citada duas vezes no relatório, apontando o dedo claramente à Ucrânia. “Documentámos um padrão de forças ucranianas a colocar civis em risco e a violar as leis da guerra quando operam em áreas povoadas. Estar numa posição defensiva não isenta os militares ucranianos de respeitarem o direito internacional humanitário”, diz. “O governo ucraniano deve garantir imediatamente que localiza suas forças longe de áreas povoadas ou deve retirar civis de áreas onde os militares estão a operar. Os militares nunca devem usar hospitais para se envolver em combate e só devem usar escolas ou casas de civis como último recurso quando não houver alternativas viáveis.”
Em momento algum do relatório se apresentam provas da existência dessas alternativas em concreto, para lá da sugestão genérica de se usarem bases militares ou florestas. Para Jack Watling, o investigador do Royal United Services Institute, “o relatório demonstra uma compreensão fraca das leis de conflito armado, nenhuma compreensão das operações militares e entrega-se a insinuações sem fornecer provas de apoio”.
O estudo da AI levou já à queda da diretora da filial ucraniana da Amnistia Internacional: Oksana Pokalchuk demitiu-se, acusando a casa-mãe de ter ignorado as contribuições da equipa local, depois de terem sido apontadas evidências incompletas na avaliação, feita exclusivamente por membros estrangeiros da organização. “Os argumentos de nossa equipa sobre a inadmissibilidade e incompletude de tal material não foram levados em conta.” O ramo da Ucrânia da Amnistia Internacional tem feito análises altamente críticas para o país, incluindo relatórios sobre ataques às minorias ciganas e LGBT.
Vários ucranianos têm recorrido às redes sociais para protestar contra o que aparenta ser uma maior responsabilização das vítimas do que dos agressores, lembrando o que aconteceu em localidades onde não havia soldados ucranianos para proteger os civis, nomeadamente em Bucha e Irpin, como execuções sumárias de homens com as mãos atadas atrás das costas e violações em massa de mulheres e crianças. Outro motivo de preocupação geral é que este relatório dê cobrimento, a partir de agora, aos ataques indiscriminados do exército russo contra alvos civis.
A secretária-geral da AI, por sua vez, respondeu no Twitter às reações negativas e aos pedidos de demissão de que tem sido alvo, intitulando de “trolls” os que têm criticado a organização – e equiparando mais uma vez o povo agredido e o país agressor. “Turbas e trolls dos media ucranianos e russos: eles estão todos a atacar hoje as investigações da @amnistia”, escreveu Agnès Callamard. “Isso chama-se propaganda de guerra e desinformação.”