A 21 de março de 2014, Vladimir Putin assinou a lei que finalizava, aos olhos da lei russa, a anexação da Crimeia. No mesmo dia, Igor Khashin foi o anfitrião da 8ª Conferência Regional de Compatriotas Russos, um encontro anual de imigrantes russos na Europa, que nesse ano se realizou em Lisboa. Khashin apresentou-se como secretário-executivo do Conselho Coordenador dos Compatriotas de Portugal e presidente da associação de imigrantes Edinstvo (“unidade”, em russo).
Quatro anos depois, os dois homens cruzar-se-iam em Moscovo: Khashin participou no VI Congresso Mundial de Compatriotas Russos que Vivem no Estrangeiro, evento em que Putin discursou (tal como o ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov). A delegação portuguesa contou ainda com Yulia Gundarina, Marina Ustyuzhanina e Vladimir Plyasov. Marcaram presença no congresso 400 pessoas de 98 países.
Igor Khashin está agora no centro de uma polémica na Câmara de Setúbal. O Expresso noticia que ele e a mulher, Yulia Khashina, têm recebido famílias ucranianas refugiadas da guerra, no gabinete da Linha Municipal de Apoio aos Refugiados, que pertence à autarquia. Num mês, o casal atendeu 160 ucranianos, conta o jornal, fotocopiando documentos e recolhendo informações (incluindo moradas) destes refugiados e dos seus familiares. Muitas destas pessoas são mulheres que deixaram os maridos na Ucrânia.
Yulia fora contratada pela câmara em dezembro, como jurista. Igor não tem vínculo à autarquia, o que não o impediu de estar no gabinete que recebia os ucranianos, sentado ao computador. A associação Edinstvo, no entanto, tem um protocolo de cooperação com a câmara desde 2005, que foi renovada por mais um ano em maio de 2021. Esse novo contrato foi assinado pela presidente da câmara, Maria das Dores Meira, e pela presidente da associação, Yulia, a mulher de Igor. Entretanto, a autarquia passou para as mãos de André Martins, da CDU (tal como a sua antecessora). Igor Khashin apoiou o candidato comunista nas eleições autárquicas.
Representante de uma organização criada por Lavrov
No início de abril, a embaixadora da Ucrânia em Portugal deu uma entrevista à CNN Portugal em que já referia o nome de Igor Khashin e a associação Edinstvo, apontando para a sua ligação à embaixada da Rússia. “No caso de acolhimento de refugiados ucranianos, isso pode pôr em causa a segurança dos ucranianos que chegam a Portugal”, alertava Inna Ohnivets. “Estas associações pró-russas que têm a ligação muito estreita com a embaixada russa podem receber informações sobre os dados pessoais destes refugiados, mas não só sobre eles, também sobre os familiares que agora estão na Ucrânia e participam no exército ucraniano e podem também informar os seus familiares sobre a situação no território da Ucrânia. E esta informação também é interessante, claro, para a inteligência russa.”
Segundo a Aliança Russo-Europeia e o Conselho de Coordenação Mundial de Compatriotas Russos que Vivem no Estrangeiro, Igor Khashin é o diretor do Centro Cultural Russo em Portugal Casa Russa, “criado em cooperação com compatriotas e com o apoio da Embaixada da Rússia”. Os mesmos sites confirmam que Khashin é secretário-executivo do Conselho Coordenador dos Compatriotas de Portugal.
Este órgão pertence ao Conselho de Coordenação Mundial de Compatriotas Russos que Vivem no Estrangeiro, que, por sua vez, integra a rede da Fundação para o Apoio e Proteção dos Direitos de Compatriotas, criado por ordem executiva do então presidente russo Dmitry Medvedev (escolhido por Putin para o substituir durante um mandato, por constitucionalmente não se poder candidatar) e de que Sergei Lavrov é um dos fundadores. O ministro dos Negócios Estrangeiros, aliás, foi galardoado pelo Conselho com um prémio honorário, em 2020.
As reuniões com funcionários públicos da Rússia
Igor Khashin nasceu há 46 anos na cidade de Saratov, no sudoeste da Rússia, onde se licenciou em Direito. Em 2000, quando tinha 25 anos, emigrou para Portugal. Começou por trabalhar em eletromecânica e, mais tarde, conseguiu qualificações para ministrar cursos de informática. Criou, entretanto, a associação de imigrantes Edinstvo e a Casa Russa.
Em entrevista (página em russo) à Fundação para o Apoio e Proteção dos Direitos de Compatriotas, em 2015, Khashin descreveu a Casa Russa como uma estrutura “para proporcionar plataformas de diálogo e interação entre compatriotas” Assim, continua, “em cooperação com compatriotas e com o apoio da Embaixada da Federação Russa, essa ideia foi implementada – foi criada a Casa Russa, que abriga seminários e palestras, conferências e vários eventos culturais. Trata-se de uma plataforma onde se reúnem, entre outras coisas, dirigentes de diversos órgãos públicos localizados em todo o país.”
Na mesma entrevista, realizada numa altura em que os combates no Donbass passavam pela sua pior fase, o imigrante diz que a situação em Portugal com a comunidade ucraniana é “tensa” e “muito difícil”. “Existem elementos definitivamente radicais que tentam apresentar quaisquer eventos de uma forma exclusivamente politizada e à sua maneira. Na maioria das vezes, nesta fase, as pessoas já estão cansadas do que está a acontecer na Ucrânia. Neste momento, há uma grande onda de refugiados, e não posso dizer que são pessoas das regiões orientais da Ucrânia: há do leste, também há do ocidente. Naturalmente, tivemos conflitos internos e uma rutura nas relações. Isso também foi observado entre a diáspora ucraniana.”
De seguida, Khashin fala sobre o seu trabalho no Conselho Coordenador dos Compatriotas, referindo reuniões com funcionários de diversos órgãos públicos ligados ao Kremlin. “Levantamos aquelas questões que dizem respeito diretamente tanto aos compatriotas que vivem no exterior quanto aos que vivem diretamente na Europa. São muitas as questões, estamos gradualmente a tentar resolvê-las em reuniões com funcionários. Gostaria de sublinhar que, neste momento, além de representantes do Ministério dos Negócios Estrangeiros, muitas vezes temos nessas reuniões membros da Duma do Estado [Parlamento russo], do Conselho da Federação, outros ministérios e departamentos relevantes – Rosmolodezh, Ministério da Cultura, Ministério da Educação, Serviço Federal de Migração. Para nós é importante, é bom.”
A VISÃO tentou contactar Igor Khashin, mas o telemóvel encontrava-se desligado. Enviámos ainda um email e uma mensagem a pedir um comentário, perguntando se alguma informação dos refugiados ucranianos, recolhida na Câmara de Setúbal, foi transmitida a autoridades russas. Se houver resposta, faremos uma atualização do artigo.