“Nós [Rússia] nunca interferimos nos assuntos domésticos de outros países. É um dos nossos princípios.” É assim que Vladimir Putin responde a uma pergunta de Oliver Stone sobre a influência que podia vir a ter nas eleições americanas que se aproximavam. “Obrigado, sir. Vemo-nos amanhã”, retorque então o americano, a sorrir, satisfeito. “Foi um prazer”, responde Putin, enquanto se levanta da cadeira, também com um sorriso de cara inteira.
Esta amigável troca de palavras, parte do documentário de quatro horas The Putin Interviews (produzido a partir de várias entrevistas de Stone a Putin), levou a um azedo diálogo entre o vencedor de dois óscares de melhor realizador, com Platoon e Nascido a 4 de Julho, e Stephen Colbert, no seu talk show, em 2017. “Passou 20 horas com este tipo. O que tem a dizer às pessoas que o acusam de ter feito entrevistas demasiado confortáveis, a quem diz que são entrevistas bajuladoras a um ditador brutal?”
Stone, visivelmente desconfortável, responde que tinha de ser “educado”. Colbert interrompe-o para lhe fazer uma pergunta ainda mais incisiva: “Quando lhe pergunta, neste clip de 40 segundos, se ele interferia nas eleições [americanas], e ele responde que a Rússia não faz isso… Não lhe faz uma pergunta de continuidade? Limita-se a dizer ‘Ok, vemo-nos amanhã’? Isso não parece uma entrevista. Parece estar a dar-lhe uma oportunidade para fazer propaganda.”
O realizador coça a cara e, por alguma razão, começa a falar da complexidade do ciberterrorismo. Colbert volta à carga: “Gosta de Vladimir Putin? Depois de passar 20 horas com o tipo, confia nele?” Stone ri-se, nervoso, e responde: “Ele é o chefe de Estado da Rússia, respeito-o e percebo porque faz o que faz. Nunca o ouvi dizer mal dos EUA.”
O documentário do realizador foi muito atacado por, como sugeriu Stephen Colbert, parecer mais um veículo de propaganda do que uma verdadeira entrevista a alguém que merecia perguntas duras. “Embaraçoso” e “carta de amor a Putin” foram dos epítetos mais brandos com que críticos o brindaram. Pouca gente, no entanto, ficou surpreendida. Oliver Stone é há muitos anos conhecido pelas suas posições condenatórias sobre o seu próprio país e por defender e dar palco a ditadores e protoditadores vistos como inimigos dos EUA, como Fidel Castro, Hugo Chávez e Mahmoud Ahmadinejad. Putin é a cereja no topo do bolo.
‘Senão eu pedia-lhe para ser o padrinho da minha filha’
A admiração de Stone por Putin teve talvez o seu momento mais surreal durante um encontro entre os dois no Kremlin, em junho de 2019, em que o realizador pediu ao líder russo se se importava de ser padrinho da sua filha. Assim decorreu o diálogo, cuja transcrição se encontra na página oficial do Kremlin:
Oliver Stone: Entrevistei o senhor Medvedchuk [deputado ucraniano acusado de traição, entretanto detido na Ucrânia]. Foi em Monte Carlo. Ele deu-nos uma entrevista muito interessante. Deu-nos a sua visão da Ucrânia. Imagino que vocês sejam muito próximos.
Vladimir Putin: Eu não diria que somos muito próximos, mas conhecemo-nos bem. Ele era o chefe de gabinete do presidente Kuchma [ex-presidente da Ucrânia], e foi nessa função que, à época, ele me pediu para participar no batizado de sua filha. De acordo com a tradição ortodoxa russa, não se pode recusar tal pedido.
OS: Ah, não pode recusar? Achei que era uma grande honra ser o padrinho da filha dele.
VP: É sempre uma grande honra ser padrinho.
OS: Bem, de quantas crianças é padrinho?
VP: Não vou dar um número, mas de várias pessoas.
OS: Uau. É tipo 100 ou 300?
VP: Não, não. Está a falar a sério? Certamente que não. Só de algumas.
OS: Porque senão eu pedia-lhe para ser o padrinho da minha filha.
VP: Ela quer tornar-se uma cristã ortodoxa?
OS: Ok, vamos convertê-la.
VP: Tem de lhe perguntar a ela.
OS: Desde que ela esteja na Igreja, certo?
VP: Claro. Qual é a idade dela?
OS: Tem 22 anos.
VP: Ela é crente?
OS: Sim, é crente. Foi criada cristã.
VP: Percebo.
Não se sabe se Putin sempre se tornou compadre de Stone – até porque a filha do realizador já era adulta e teria uma palavra a dizer sobre o assunto.
Esta troca de palavras (que ainda contou com Stone a elogiar as leis “antipropaganda gay” da Rússia) deu-se no contexto de uma entrevista para um documentário sobre a situação na Ucrânia, Revealing Ukraine, que tem sido definido como uma espécie de filme de campanha para apresentar Medvedchuk, o amigo ucraniano de Putin, como presidenciável. Um documentário que se seguiu a Ukraine on Fire, de 2016, outro filme com conclusões previsíveis, vindo de quem acredita que foi a CIA que esteve por detrás da revolução da Euromaidan de 2014, que levou à fuga de Viktor Yanukovitch, o então presidente da Ucrânia. Yanukovitch, aliás, é apresentado como um estadista, e não como o líder autocrático e violento que, entre outras bizarrias, tinha uma mansão digna de um vilão dos filmes de James Bond (incluindo torneiras banhadas a ouro e um zoo privado).
‘Os idiotas que continuaram a provocar a Rússia’
A 26 de fevereiro, dois dias após a invasão da Ucrânia, Oliver Stone tentou contextualizar a posição russa, através do Twitter. “No meio de toda esta histeria dos media ocidentais, a gritar ‘assassínio sangrento’ sangrento a #Putin, omitindo factos importantes sempre que são inconvenientes, é importante compreender todo o espectro do que está a acontecer.” O cineasta partilhou, de seguida, várias “análises honestas”, invariavelmente pró-Kremlin ou desculpabilizadoras de Putin.
A 3 de março, porém, Stone parece inverter a marcha, criticando, no Facebook, a “agressão de Putin na Ucrânia”. Mas não por ser um ataque não provocado a um país soberano, repleto de barbaridades contra civis. O erro, garante, foi Putin ter subestimado a resistência dos ucranianos e o poder da NATO – e, pelo caminho, ainda adere à teoria de que a invasão é uma tentativa de salvar os russófonos do Donbass e culpa os EUA pela invasão.
“A Rússia errou ao invadir. Cometeu muitos erros – 1) subestimar a resistência ucraniana, 2) sobrestimar a capacidade dos militares de atingirem o seu objetivo, 3) subestimar a reação da Europa (…) 4) subestimar o aumento do poder da NATO, que agora pressionará mais as fronteiras da Rússia, 5) provavelmente pondo a Ucrânia na NATO, 6) subestimando os danos à sua própria economia e certamente criando mais resistência interna na Rússia, 7) criando um grande reajuste de poder na sua classe oligarca, 8 ) colocando em jogo bombas de fragmentação e vácuo, 9) e subestimando o poder das redes sociais em todo o mundo.”
Mas, continua, “devemos perguntar-nos: como Putin poderia ter salvado o povo de língua russa de Donetsk e Luhansk? (…) Agora é tarde demais. Putin deixou-se enganar e caiu na armadilha armada pelos EUA e comprometeu as suas forças armadas (…) Os únicos felizes com isto são os nacionalistas russos e a legião de inimigos russos, que finalmente conseguiram o que sonhavam há anos, ou seja, Biden, Pentágono, CIA, UE, NATO, media convencional (…) Os idiotas que continuaram a provocar a Rússia após o fim da Guerra Fria em 1991 cometeram um crime terrível contra a humanidade e o futuro.”
Durante um mês, Oliver Stone não voltou a fazer referências ao conflito. A 6 de abril, publicou novos textos no Facebook e no Twitter, a criticar Joe Biden por ter “insultado” Putin, ao chamá-lo criminoso de guerra. “Toda esta propaganda antirrussa que varre o Ocidente cheira mal – literalmente como 1984 de Orwell.”
Finalmente, a 14 de abril, Stone resolveu pôr em causa o massacre de Bucha, instando os seus seguidores no Twitter a estudarem as pistas por si próprios, partilhando links de páginas a defender que as imagens de satélite dos mortos na estrada são falsos, insinuando que os ucranianos são responsáveis pela matança. Uma dessas páginas é o site War on Fakes, que desde o início da guerra espalha desinformação sobre a situação na Ucrânia. Os canais de propaganda russa, incluindo os sites oficiais do Kremlin, têm partilhado vários “fact checks” do War on Fakes.
Além de alinharem perfeitamente com a propaganda russa, estas “explicações alternativas” para a tragédia de Bucha encaixam bem noutras características de Oliver Stone, famoso por tentar rescrever a História com teorias da conspiração mirabolantes – como fez no filme JFK, em que dava a CIA, o FBI e até o vice-presidente dos EUA, Lyndon Johnson, como responsáveis pelo homicídio do presidente John F. Keneddy.