“A História não se repete, mas frequentemente rima”, dizia o escritor norte-americano Mark Twain – supostamente, a origem da citação nunca foi 100% confirmada. Talvez as dúvidas relativas a quem terá realmente proferido esta frase se devam à universalidade do sentimento por ela expresso. Muita gente terá pensado no mesmo. De facto, nem todos os grandes eventos históricos são idênticos. Aliás, são todos singulares, mas tal como as recentes justificações empregues por Vladimir Putin, presidente da Rússia, antes de invadir a Ucrânia deixaram profundamente claro, cada pessoa vê o que quer no passado, e interpreta-o à sua maneira. A História tem destas coisas.
As guerras também não são todas idênticas, mas é inegável que partilham um rasto comum de sofrimento, deslocamentos forçados, famílias separadas, e, sobretudo, irracionalidade. Daí Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia, fazer questão de invocar as guerras de outrora ao mesmo tempo que apela ao ocidente para o apoiar na resistência face à ofensiva flagrante do presidente Putin e o seu exército. Cada povo tem os seus ferimentos históricos, alguns deles já esquecidos, e alguns deles ainda por sarar, muito sangrentos. E Zelensky coloca precisamente o dedo na ferida. O seu povo está a ser bombardeado, e não há tempo para meias palavras.
Durante o seu périplo pelos parlamentos das grandes potências mundiais, sempre em regime de “teletrabalho”, através de videochamada, a única alternativa viável em tempo de guerra, Zelensky lembrou insistentemente os líderes políticos para quem discursou do passado coletivo dos seus respetivos países, equiparando-os ao presente da Ucrânia. Falou de Churchill e da II Guerra Mundial na sua alocução para o parlamento britânico; evocou Pearl Harbor e o 11 de Setembro no Congresso dos Estados Unidos; referenciou a queda do muro de Berlim na sua intervenção aos deputados do Bundestag, o parlamento Alemão; e, no passado dia 20 de março, fazendo-se valer da sua linhagem judaica, denunciou o terror do holocausto e da investida Nazi pela Europa quando discursou para os parlamentares Israelitas.
Ser ou não ser?
De Shakespeare a Winston Churchill, Zelensky foi percorrendo todo o imaginário britânico quando se dirigiu aos deputados do Reino Unido. Não é caso para menos. Os britânicos, lembra Zelensky, têm um histórico de heroísmo e resiliência e, tal como os ucranianos, quando confrontados com uma ameaça existencial, preferem a vitória à derrota, a luta à capitulação. É aqui que entra o famoso dilema proposto por Hamlet, o personagem epónimo da tragédia de William Shakespeare: “To be or not to be?”, questiona também Zelensky. Ser ou não ser? Existir ou não existir? A resposta não é fácil para muitos, envolvendo extensa ponderação, mas para o presidente da Ucrânia, e para todos os ucranianos, não podia ser mais clara: “Há 13 dias ainda se poderia perguntar isto sobre Ucrânia. Agora já não. Obviamente, ser! Obviamente, ser livre!”, clamou Zelensky perante uma plateia visivelmente comovida, naquela que foi a primeira intervenção por parte de um líder político estrangeiro no parlamento do Reino Unido.
“Nós não queremos perder o que temos, o que é nosso – a Ucrânia. Tal como vocês não quiseram perder a vossa ilha quando os Nazis se preparavam para a batalha pelo vosso grande poder, a batalha pelo Reino Unido”, continuou Zelensky. Ao invocar a oposição britânica a Hitler, procurou estimular uma relação de fraternidade entre as duas nações, enfatizando as suas semelhanças ao longo da História no campo militar: ambas foram vítimas de uma invasão violenta e insana, perpetrada por um líder autoritário que desejava, acima de tudo, apagá-las do mapa.
Nesse sentido, Zelensky não se esquece de Winston Churchill, o líder britânico durante a II Guerra Mundial e um dos ícones da luta contra o nazismo – a quem tem sido muito comparado por vários analistas e comentadores. O presidente ucraniano não fugiu da comparação e, no seu discurso, adaptou as famosas frases de Churchill à tipologia geográfica da Ucrânia. “Defenderemos a nossa ilha, qualquer que seja o preço a pagar. Lutaremos nas praias, lutaremos nos locais de desembarque, lutaremos no campo e nas ruas, lutaremos nas colinas, não nos renderemos”, disse Churchill no dia 4 de Junho de 1940, quando a França estava prestes a ser tomada pela Alemanha. “Defenderemos a nossa terra, qualquer que seja o preço a pagar. Lutaremos nos bosques, nos campos, nas praias, nas cidades e nas aldeias, lutaremos nas montanhas…lutaremos nas margens do kalmius e do dniepre! Não nos renderemos!”, disse Zelensky, no dia 8 de março, 13 dias após a invasão Russa. O paralelo está lá, e não passou despercebido.
Ainda no âmbito da II Guerra Mundial, Zelensky recordou os representantes do Knesset, o parlamento de Israel, que o dia em que Putin decidiu invadir a Ucrânia, a 24 de Fevereiro, coincide exatamente com o dia de fundação do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, que eventualmente viria a ser liderado por Adolf Hitler. O elefante na sala foi assim realçado, mas Zelensky, ele próprio de ascendência judaica, não ficou por aí, dizendo que a História dos ucranianos e dos judeus estava, tanto no passado, como agora, irremediavelmente “interligada”: “A ameaça é a mesma para nós e para vocês – a destruição total do nosso povo, estado e cultura. Até dos nossos nomes: Ucrânia, Israel”.
O presidente ucraniano aludiu ainda à chamada “solução final”, o plano detalhado do partido Nazi para erradicar a população judaica, notando que a retórica de Putin não é muito diferente da anteriormente utilizada por Hitler: “Ouçam o que soa agora em Moscovo. Ouçam como estas palavras são novamente ditas: Solução final. Mas agora falam de nós, falam da solução final da questão ucraniana”. O próprio Knesset referenciou precisamente isso no Twitter a 21 de março, onde cita também o ‘speaker’ do parlamento – posição equivalente à de presidente da Assembleia da República Portuguesa –, Mickey Levy: “Temos de fazer tudo para alcançar rapidamente um cessar-fogo e um fim para a guerra.”
Discurso nos Estados Unidos
Há poucos valores que representem tanto no ideário norte-americano como o da liberdade, e Zelensky sabe disso. No dia 16 de março, começou o seu discurso precisamente por aí, a exaltar o “amor” que os ucranianos nutrem pela liberdade e a descrever aos senadores a sua interpretação do monumento Monte Rushmore, que, para o presidente ucraniano, revela muitas das características da matriz americana. “Os rostos dos vossos presidentes, aqueles que ergueram as fundações da América como ela é hoje. Democracia, independência, liberdade e apoio para todos. Todos os que trabalhem, vivam honestamente e que respeitem a lei”. Os ucranianos também querem liberdade, e precisam de ajuda para a recuperar, diz Zelensky. Nomeadamente através de apoio financeiro para equipar o exército ou da imposição de um embargo às importações de matérias-primas energéticas russas – medidas que Joe Biden, presidente dos Estados Unidos, viria a decretar.
Os senadores não ficaram indiferentes ao pedido de auxílio, e as reações multiplicaram-se pelas redes sociais. Por exemplo, Catherine Cortez Masto, uma das senadoras do estado do Nevada, utilizou o Twitter para expressar o seu apoio: “Os EUA estão com o presidente Zelensky e com a Ucrânia. Continuarei a trabalhar com os meus colegas para fornecer o apoio humanitário e a ajuda militar necessária para a Ucrânia enfrentar a Rússia, e nenhuma medida económica devia ser excluída de modo a isolar Putin.”
Zelensky procurou ainda contextualizar a guerra da Ucrânia entre os grandes conflitos internacionais, lembrando os presentes de dois episódios negros na História americana: o atentado de 11 de Setembro e o ataque a Pearl Harbor, na II Guerra Mundial. “Lembrem-se de Pearl Harbor, quando o vosso céu estava negro por causa dos aviões que vos atacavam”. Enquanto dizia que os ucranianos estão a passar pelo mesmo “todos os dias”, e que a Rússia transformou o céu do seu país na “causa de morte de milhares de pessoas”, pediu veementemente a Joe Biden para impor uma ‘no-fly zone’ – uma proibição à circulação aérea que implicaria a necessidade de expulsar ou, no limite, abater qualquer avião russo que sobrevoasse o território ucraniano. Biden rejeitou várias vezes esta proposta, explicando que representaria uma escalada perigosa, e que Putin poderia interpretá-la como um sinal que a NATO estaria a entrar diretamente no conflito.
Mas o presidente ucraniano não desiste. “I have a dream”, diz Zelensky, invocando a famosa frase de Martin Luther King. “Hoje tenho uma necessidade. Preciso de proteger o nosso céu. Preciso que decidam”.
“Sr. Gorbachev, deite abaixo este muro!”
A memória da queda do muro de Berlim permeou todo o discurso de Zelensky ao Bundestag, o parlamento alemão, servindo de inspiração para a mensagem central que quis transmitir nesse dia: a inação do governo da Alemanha está a contribuir para o desiderato fundamental de Putin – a construção de um novo muro no seio da Europa, desta vez “entre a liberdade e a escravatura”. “Este muro fica mais forte com cada bomba que cai na nossa terra, com todas as decisões que não são tomadas com o objetivo da paz”. Diz também que a barreira ficará mais impenetrável com cada barril de petróleo ou metro cúbico de gás que o governo alemão obtenha do Kremlin.
Nessa linha, o presidente da Ucrânia critica por várias vezes o que ele vê como uma tendência por parte dos líderes alemães para priorizar excessivamente as questões económicas, agradecendo especificamente aos empresários germânicos que “colocaram a moralidade e a humanidade acima da contabilidade”, e apelando por medidas concretas como um corte mais abrangente das entidades russas do sistema SWIFT ou a imposição de um embargo às trocas comerciais com a Rússia. O discurso ocorreu a 17 de março e, desde então, o executivo alemão tem escalado as sanções e a retórica contra Moscovo, sinalizando também um novo ímpeto no que diz respeito à defesa europeia e internacional – mas não até ao ponto que Zelensky pretende.
A exclamação que dá nome a este subcapítulo foi proferida pelo ex-Presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, no dia 12 de junho de 1987, num discurso em Berlim, já na fase final da Guerra Fria. Reagan referiu-se diretamente ao líder soviético Mikhail Gorbachev, pedindo-lhe que derrubasse o muro que, na altura, dividia a cidade alemã em duas secções, oeste e leste, e também, de uma forma mais simbólica, os dois grandes campos ideológicos e geopolíticos, um liderado pelo ocidente e o outro pela União Soviética. O muro cairia dois anos depois e, na sua intervenção ao Bundestag, Zelensky ecoou o ex-Presidente Reagan, impelindo Olaf Scholz, o chanceler alemão, a derrubar tudo o que separa a Europa da Ucrânia: “Chanceler Scholz, deite abaixo este muro! Mostre à Alemanha a liderança que ela merece”.