Se nos debruçarmos sobre o argumentário de Putin para desencadear a invasão russa da Ucrânia e a retórica de Hitler para justificar a anexação, pela Alemanha nazi, da Áustria, em março de 1938, e da Checoslováquia, em 1939, as semelhanças históricas saltam à vista.
Em relação à Áustria (e aqui convém lembrar que Hitler era ele próprio austríaco), o Führer nunca aceitou os termos do Tratado de Saint-Germain-en-Laye, de 1919, que pôs fim ao Império Austro-Húngaro, um dos derrotados da I Guerra Mundial (em conjunto com o Império Alemão e com o Império Otomano). O artigo 88 daquele tratado estipulava expressamente que a união da Áustria – Estado criado pelo Tratado de Versalhes, de junho de 1919, que após a I Guerra Mundial redesenhou o mapa da Europa – com a Alemanha ficava proibida. Mas o tempo passou e, em 1932, o partido nazi austríaco venceu as eleições legislativas, embora sem maioria absoluta.
Os nazis austríacos lançaram-se então numa estratégia de desestabilização terrorista. Até que o chanceler social cristão Engelbert Dollfuss decidiu, em 1933, governar por decreto, dissolvendo o parlamento, o Partido Comunista da Áustria, o Partido Nacional-Socialista nazi e a milícia social-democrata.
Seguiu-se uma dura repressão policial, à qual os nazis austríacos sobreviveram – a ponto de assassinarem o chanceler Dollfuss, a 25 de junho de 1934, num frustrado golpe de Estado. O sucessor de Dollfuss seria Kurt Schuschnigg, que perdeu o controlo do país e, em desespero de causa, tentou promover um referendo sobre a manutenção da Áustria independente face à Alemanha, que marcou para 13 de março de 1938.
Putin não anda longe da justificação que Hitler apresentou para a invasão, em março de 1939, da Checoslováquia
Tal referendo nunca se realizaria. Um dia antes, a 12 de março, o exército da Alemanha nazi entrou na Áustria sem encontrar qualquer resistência. Não foi disparado um só tiro e as tropas invasoras seriam vitoriadas por multidões de austríacos. Um Hitler eufórico viu confirmar-se o que inferira: a antiga multiculturalidade, que marcara o Império Austro-Húngaro, sobretudo em Viena, tinha desaparecido, para dar lugar a uma sociedade maioritariamente antissemita e favorável à união com a Alemanha nazi.
Dir-se-ia que Hitler nem precisava de justificar a invasão, como fez, declarando que a Alemanha respondia a um apelo de ajuda lançado pelo partido nazi austríaco, para salvar e estabilizar a Áustria. Logo a 13 de março, a anterior república foi anexada, tornando-se uma província do III Reich chamada Ostmark. E a 10 de abril seguinte realizou-se um referendo, este organizado por Berlim, em que a anexação seria aprovada por 99% dos austríacos. Tal resultado foi, obviamente, manipulado e viciado, acrescendo-lhe a pressão para aceitar um facto consumado. Mas o apoio popular maciço a Hitler era evidente.
Sudetas e Donbass
O Führer começou assim a vingar-se do “humilhante” Tratado de Versalhes, que impôs duríssimas condições à Alemanha – embora, no final de contas, também lhe tenha aberto o caminho para chegar ao poder, em janeiro de 1933. Observando em espelho, verifica-se que o desmantelamento da União Soviética, em dezembro de 1991, e o desastre político, social e económico que se seguiu para a Rússia, igualmente abriram o caminho de Putin até ao Kremlin, onde está instalado desde 1999. E sempre a protestar pela “ameaça à segurança da Rússia” constituída por países vizinhos que, após 1991, saíram da antiga “Cortina de Ferro” (expressão criada por Churchill) para a órbita do Ocidente e da NATO.
À imagem de Hitler e da sua justificação para a anexação da Áustria, em 1938, também Putin antecedeu a invasão da Ucrânia com o anúncio de que recebera uma carta, na qual os líderes separatistas das repúblicas de Donetsk e Lugansk lhe pediam ajuda “com base” nos tratados de amizade que recentemente assinaram com Moscovo. É igualmente de esperar que os militares russos sejam vitoriados pelas populações de Donetsk e Lugansk (e até de outras localidades da região de Donbass, no Leste da Ucrânia), como há 84 anos os soldados do III Reich foram saudados por austríacos aos magotes.
“Decidi levar a cabo uma operação militar especial (…) para proteger a população que tem sido sujeita a bullying e a genocídio”, justificou o Presidente russo no seu discurso de guerra. Aqui, Putin não anda longe da justificação que Hitler apresentou para a invasão, em março de 1939, da Checoslováquia, outro Estado criado pelo Tratado de Versalhes. O Führer queria proteger a minoria alemã que vivia na região dos Sudetas – mas daí partiu para a dissolução da Checoslováquia, criando os protetorados da Boémia e da Morávia, e instalando um governo fantoche na Eslováquia. É legítimo pensar-se que Putin, agora que investiu de armas aperradas sobre a Ucrânia, pode sonhar com um cenário parecido com aquele que Hitler impôs após invadir a Checoslováquia.
Perante a crescente arrogância do Führer, o que faziam os governos de Inglaterra e de França? O primeiro-ministro britânico, Neville Chamberlain, e o seu homólogo francês, Édouard Daladier, acreditaram nas garantias que Hitler lhes deu, de que não tinha mais ambições territoriais. E, por isso, assinaram os Acordos de Munique, a 29 de setembro de 1938. Quando regressou a Londres, Chamberlain estava exultante: mostrou o documento com as assinaturas e disse que aquele papel representava a paz.
Seria um desastroso logro. A 1 de setembro de 1939, o III Reich invadia a Polónia (mais um Estado criado por Versalhes, e que antes do tratado pertencia ao Império Russo) e desencadeava a II Guerra Mundial. Voltando a olhar em espelho, sobram perguntas – até onde irá Putin? E até onde deixarão ir o ocupante do Kremlin?