As imagens e gravações de áudio foram feitas em janeiro de 1969 pelo cineasta Michael Lindsay-Hogg, que documentava o processo de criação e gravação do 12.º álbum de estúdio dos músicos ingleses, “Let it Be”. Lindsay-Hogg gravou muito mais do que usou e o filme homónimo que resultou foi recebido de forma fria pela crítica, ficando associado ao fim da banda.
“A parte mais notável desta peça não é o que eu fiz, é o facto de que Michael Lindsay-Hogg filmou estas imagens, a vasta maioria das quais esteve numa caixa-forte durante 52 anos”, disse Peter Jackson, numa conferência de imprensa de lançamento da série documental.
As dezenas horas de vídeo inéditas, que não foram usadas no filme “Let it Be”, de 1970, traçam um retrato surpreendente da dinâmica entre Paul McCartney, John Lennon, Ringo Starr e George Harrison, contrariando a ideia que ficou sobre como a banda acabaria por se separar.
“O Lennon está atrasado outra vez”, diz Paul McCartney, numa das manhãs, ladeado por Starr e Harrison. Enquanto faz tempo, começa a dedilhar o baixo e a cantarolar quase para se entreter durante a espera, até que uma melodia começa a tomar forma. “Get back”, sai-lhe, baixinho. “Get back to where you once belonged”.
Este momento inédito é uma das preciosidades do documentário, que, no seu conjunto, redefine o que se pensa sobre o fim da banda.
As dezenas horas de vídeo inéditas, que não foram integradas no filme “Let it Be” de 1970, traçam um retrato surpreendente da dinâmica entre Paul McCartney, John Lennon, Ringo Starr e George Harrison, mostrando como surgiram clássicos como “Get Back” e pintando uma imagem diferente dos seus últimos tempos como banda, daquilo que ficou na História.
“Como fã dos Beatles, mesmo tendo olhado para [estas imagens] nos últimos quatro anos, a minha cabeça ainda explode com o facto de isto existir”, afirmou Peter Jackson, referindo-se às 60 horas de vídeo e 130 horas de áudio inéditas, que desempoeirou.
A série documental, que se estreia hoje no Disney+, tem três partes de cerca de duas horas e meia de duração, e a qualidade das imagens e do som é dos aspetos mais notáveis, algo que resultou de um processo laborioso de limpeza e afinação técnica.
“O filme de 16 milímetros, em 1969, não era particularmente bom. Era muito granulado”, explicou Peter Jackson. “Os negativos originais estavam muito em bruto”, disse, revelando que os algoritmos que a sua equipa desenvolveu para a restauração de vídeos da I Guerra Mundial, para o filme “They Shall Not Grow Old”, foram usados neste projeto.
“A grande inovação na restauração foi no som”, continuou, referindo que o áudio tinha sido gravado em mono e que muita da vocalização nos ensaios estava submergida por causa das guitarras e bateria. “Quase nunca se conseguia ouvir o Ringo”.
Os jovens músicos, na altura todos com menos de trinta anos, sabiam disso e usavam os instrumentos para disfarçar as conversas quando não queriam que fossem captadas pela equipa que estava a filmar.
“O que o John e o George faziam se estivessem numa conversa era aumentarem o volume dos amplificadores e dedilharem nas guitarras. Não estavam a tocar nada, só a dedilhar”, explicou Jackson. “O que conseguimos fazer com tecnologias de inteligência artificial foi retirar as guitarras e expôr as conversas privadas que eles tiveram”.
Esse é um dos componentes que torna “The Beatles: Get Back” fascinante, porque mostra imagens e conversas a que o mundo não poderia ter acedido até agora. A forma como os músicos interagem entre si e com as parceiras – Yoko Ono e Linda Eastman são presenças assíduas nas gravações — mostra um lado deles que até agora esteve recatado, algo que se deve à mestria de Michael Lindsay-Hogg.
“O Michael estava determinado a captar material o mais sincero possível”, disse Peter Jackson. Em vez de apontar as câmaras com um operador, provocando o comportamento típico de alguém que sabe que está a ser gravado, Lindsay-Hogg punha uma câmara num tripé, começava a gravar e saía dali, fingindo que ia buscar um chá e a câmara estava desligada.
Outra técnica do cineasta era tapar a luz vermelha que sinalizava a gravação nas câmaras, para que os Beatles achassem que estavam desligadas quando na verdade a fita estava a rolar, e esconder microfones em sítios aleatórios para apanhar conversas privadas.
O resultado é que a audiência sente ter um contacto quase íntimo com os músicos, como se fosse uma mosca dentro das quatro paredes da sua intimidade. Há tantas horas de vídeo e áudio que é possível obter um sentido mais afinado de quem são como pessoas, por oposição à sua imagem pública.
“Estou grato por este projeto me ter dado a oportunidade de pensar neles como seres humanos”, confidenciou Peter Jackson. “Saí disto a pensar que, na verdade, são homens decentes e sensatos. Não há egos, não há nenhuma ‘prima donna'”.
Um dos momentos mais tensos é quando George Harrison decide sair da banda, repentinamente. O filme mostra as notas que o músico escreveu na sua agenda nesse dia e as tentativas dos outros membros de o convencer a voltar, numa altura crítica em que o tempo se está a esgotar para terminar o álbum e preparar o concerto que aconteceria semanas mais tarde.
Com uma narrativa quase em bruto, “The Beatles: Get Back” não é uma versão higienizada da banda e, segundo Peter Jackson, os membros que ainda estão vivos — McCartney e Starr — não se opuseram a nada.
“O Paul disse que é um retrato muito fiel de como eles eram na altura”, contou o realizador. Embora a Disney quisesse remover os palavrões, ambos pediram para que se mantivessem, porque era assim que falavam.
“Não deixei de fora nada que sentisse que era importante”, sublinhou Jackson. “Senti que qualquer coisa que eu não incluísse podia ser enterrada outra vez por mais cinquenta anos”.
ARYG // MAG