Quando é que se registaram os primeiros ataques em Cabo Delgado e por quem?
É habitual considerar-se que tudo começou a 5 de outubro de 2017, data em que um pequeno grupo de indivíduos atacou Mocímboa da Praia, uma pequena vila piscatória a sul de Palma e um dos principais pontos de partida para o paradisíaco arquipélago das Quirimbas. Na altura, a imprensa relatou o incidente como um incidente isolado, perpetrado por jovens locais e descritos como Al-Shabaab – numa alusão à organização terrorista do mesmo nome que opera na Somália. No entanto, o jornal O País, o primeiro a enviar repórteres para a localidade no dia seguinte, classifica os autores como um bando de “radicais” com ligações externas cujo objetivo era muito claro: instalar um califado na província que é quase do tamanho de Portugal (82 mil quilómetros quadrados). Desde então, os Al-Shabaab (jovens ou juventude, em árabe) têm originado todo o tipo de especulações e conspirações. Um ministro chegou a acusá-los de serem fundamentalistas pagos pela Arábia Saudita, um comandante militar alegou que eram antigos garimpeiros ilegais e ressabiados de Montepuez (autarquia onde estão as minas de rubis), alguns comentadores davam-nos como avençados da CIA e o próprio Presidente moçambicano, Filipe Nyusi, chegou a afirmar que poderiam ser recrutas instrumentalizados por “falsos empresários” da Beira. Sérgio Chichava, Salvador Forquilha, João Pereira e Calton Cadeado são alguns dos académicos moçambicanos que têm tentado esclarecer as origens e os protagonistas do conflito em Cabo Delgado, esforço no qual tem colaborado Eric Morier-Genoud, professor na Universidade de Belfast que já escreveu sobre Moçambique na VISÃO e que tem passado largas temporadas no terreno a entrevistar gente anónima e com responsabilidades em Pemba, Palma ou Mocímboa da Praia.
Na província de Cabo Delgado, quase do tamanho de Portugal, há perto de 700 mil desalojados e a crise é também sanitária porque há também milhares de casos de cólera, sarampo e Covid-19
Por que motivo voltou Moçambique ao topo da atualidade mediática?
A 24 de março, a cidade de Palma foi palco de um ataque terrorista protagonizado por uma centena de indivíduos que espalharam o caos nesta localidade do norte do país, junto à fronteira com a Tanzânia e onde residem mais de 75 mil pessoas. O balanço exato do que aconteceu continua por fazer, mas as autoridades moçambicanas admitem que pode ter havido dezenas de mortos porque os combates continuam e há ainda alguns bairros supostamente controlados pelo grupo rebelde que destruiu e vandalizou numerosos edifícios públicos – incluindo bancos e esquadras. As Nações Unidas e algumas organizações não governamentais estimam que mais de três milhares de pessoas tenham fugido logo no primeiro dia, a pé e pelo mato, rumo aos municípios vizinhos de Nangade, Mueda e Montepuez. No entanto, o maior fluxo de desalojados está a chegar a Pemba, capital da província de Cabo Delgado, quase 400 quilómetros a sul, por via marítima – salvaguardando as devidas diferenças, compara-se o que está aí a acontecer com a retirada de civis e de tropas de Dunquerque, no norte de França, no início da Segunda Guerra Mundial.
Terá havido algum motivo especial para justificar o ataque?
A 24 de março, a empresa petrolífera Total iria recomeçar a sua atividade no complexo que está a erguer na Península de Afungi, nos subúrbios a sul de Palma, junto ao Índico, destinado à exploração de gás natural liquefeito e onde está a ser feito o maior investimento privado de todo o continente africano – cerca de 15 mil milhões de euros. Os trabalhos tinham sido interrompidos em dezembro, a exemplo do que já acontecera antes, devido a incidentes violentos que levaram a energética francesa a reivindicar ao Governo de Maputo a criação de um perímetro de segurança de 25 quilómetros à volta do complexo. Entre as vítimas confirmadas do ataque da última semana, contam-se seis sul-africanos.
Como foi possível um ataque minuciosamente preparado contra uma cidade com a dimensão de Palma e onde estão tantos interesses em jogo?
Uma pergunta para a qual a generalidade dos analistas não tem uma resposta simples. O falhanço dos serviços de informação e a incapacidade de resposta das forças militares e de segurança – mal preparadas, mal equipadas e mal pagas – ajuda a explicar parcialmente o que aconteceu, mas não tudo. Sabe-se que as infraestruturas de comunicações foram deliberadamente destruídas no início do ataque para a região ficar isolada e incontactável – embora haja também rumores de que isso pode ter sido feito pelas forças governamentais para impor um bloqueio informativo ao que estava a passar-se. “O que é preciso reter deste ataque é a destruição das infraestruturas, a sua sofisticação e a sua brutalidade”, afirmou Justine Opperman, investigadora do Observatório Cabo Ligado e da ACLED – entidades que se dedicam à monitorização da violência e dos conflitos armados. No limite e tendo em conta que este não é o primeiro incidente do género, talvez agora se tenha de levar a sério o aviso feito pelo académico e diplomata americano Dennis Coleman Jett, antigo conselheiro de Bill Clinton e embaixador dos EUA em Maputo, de que Moçambique estaria prestes a ser um “estado falhado”.
Até que ponto faz sentido descrever o país dessa forma?
Depois da luta pela independência (1964-1974) e da guerra civil entre a Frelimo e a Renamo (1976-1992), Moçambique está longe de ter uma democracia e um estado de direito funcionais. Pior: nos rankings internacionais sobre qualidade de vida o país aparece invariavelmente na cauda e sem que as elites nacionais e os sucessivos governos tenham conseguido inverter essa tendência. Há pouco mais de uma década, na sequência da descoberta de jazidas de gás natural na bacia do Rovuma (rio do mesmo nome que atravessa Cabo Delgado e serve de fronteira com a Tanzânia), os moçambicanos acreditaram que iriam finalmente viver de forma digna e deixariam de estar condenados à pobreza e ao subdesenvolvimento. Só que as promessas desse novo Qatar nunca se concretizaram. Mais grave ainda, é no extremo norte de Moçambique que se conjugam os fatores para uma tempestade perfeita: maldição dos recursos (gás natural, madeiras, rubis, água), corrupção, crime organizado e interesses externos.
Pode falar-se de desastre humanitário em Cabo Delgado?
Sem dúvida. Desde outubro de 2017 que a situação tem vindo sempre a agravar-se, com particular intensidade no último ano. A 12 de abril de 2020, na sua tradicional alocução pascal, o Papa Francisco fez questão de referir-se à “crise humanitária” e aos “constantes ataques violentos” em Cabo Delgado, num alerta para a guerra silenciosa que se travava no Norte de Moçambique e que já ganhara um cariz internacional: a 4 de junho de 2019, na sequência de mais um ataque a Mocímboa da Praia, o autoproclamado Estado Islâmico – ou Daesh – reivindicou, pela primeira vez, a sua presença no país e qualificou-o como parte integrante do seu califado da África Central. Agora, as estatísticas da ONU e das ONG’s são muito claras sobre o conflito: 2 689 pessoas já perderam a vida em, pelo menos, 838 incidentes violentos, o número dos que perderam as suas casas e foram obrigados a fugir está prestes a atingir os 700 mil e mais 1,3 milhões precisa assistência humanitária urgente. E convém ainda explicar que a crise também é sanitária. Além da fome que afeta diretamente 242 mil crianças, boa parte dos desalojados precisa de medicamentos e cuidados médicos porque Cabo Delgado e as duas províncias limítrofes (Nampula e Niassa) têm igualmente milhares de casos de cólera, sarampo e Covid-19.