No ano passado, precisamente por esta altura, a VISÃO fazia conta ao número de pessoas que corriam o risco de passar fome – eram 1,9 milhões –, ao número de desalojados (89 mil) e à quantidade de crianças que precisavam de assistência por motivos de carência alimentar (1,1 milhões).
Nove meses depois do ciclone Idai, que tinha posto Moçambique nas machetes de quase todos os jornais do mundo, o país atravessava uma profunda crise alimentar e de saneamento, com as mais básicas necessidades a não serem cumpridas por falta de financiamento, de atenção das autoridades e de recuo das Organizações Não-Governamentais, que muitas vezes atuam nos períodos de emergência e rapidamente abandonam as missões – veja-se o caso de Beirute, onde a VISÃO esteve em outubro, dois meses depois das explosões, e onde já praticamente não havia quaisquer apoios deste tipo de organizações.
Depois do Idai, que afetou o centro do país, a violência em Cabo Delgado – que a VISÃO reportou com regularidade nos últimos dois anos – agravou-se de forma exponencial, tendo atualmente o número de deslocados chegado ao meio milhão, e sendo o número de mortos uma dúvida que deverá persistir durante muitos anos. O último relatório do Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA, na sigla em inglês), dá conta de que mais de 1,1 milhão de pessoas estão atualmente a precisar de ajuda devido ao facto de terem sido afetadas pela violência, conflito e insegurança em Cabo Delgado.
“A crise em Cabo Delgado intensificou-se rapidamente em 2020, com ataques e combates obrigando dezenas de milhares de pessoas a abandonar as suas casas todos os meses. Quase 530 mil pessoas estão agora deslocadas internamente em Cabo Delgado, Nampula e Niassa, quase cinco vezes o número registado em março de 2020”, lê-se no documento enviado às redações.
“Em 2020, as pessoas foram forçadas a deixar suas casas com nada mais do que as roupas que vestiam. Eles perderam os seus pertences, os seus meios de subsistência, o seu futuro. A ajuda humanitária é vital para aliviar o seu sofrimento”, disse Myrta Kaulard, a Coordenadora Humanitária para Moçambique.
Recorde-se que no final de outubro a VISÃO dava conta de que em apenas quatro dias mais de 3 mil pessoas tinham desembarcado na praia de Pemba, fugindo da violência em Cabo Delgado, de mãos vazias e coração cheio de temor. “É perfeitamente lamentável, porque são deslocadas internos e não há nenhum tipo de apoio à espera delas. Vemos pessoas a chegar como zombies…Pessoas que chegam sem saber o que as espera”, lamentava na ocasião Ruy Santos, da plataforma Makobo, que com a ajuda da sociedade civil tentava encontrar soluções de recurso para quem tinha perdido tudo.
Entretanto, há cerca de uma semana o Ministro da Defesa português, João Gomes Cravinho, referiu que Portugal vai ajudar Moçambique no combate à violência, mas numa missão não executiva. “Normalmente, quando falamos de missões internacionais falamos de missões executivas e não executivas; as missões executivas são aquelas em que as forças internacionais exercem poderes soberanos e se envolvem diretamente no combate e na imposição da paz. Aqui estamos a falar de uma missão não executiva, que pretende sobretudo criar as melhores condições para que as autoridades e as instituições moçambicanas possam elas próprias exercer a soberania”, revelava o responsável numa entrevista à TSF. Que é como diz, esclarece, “formação, treino, equipamento, apoio na organização logística, e, no fundo, criação de condições para que sejam os moçambicanos a fazer aquilo que precisam de fazer para que haja paz em Cabo Delgado”.
As razões pelas quais a violência naquela região do país não dá tréguas são ainda uma incógnita, com alguns a atribuírem-na a grupos com ligações ao auto-proclamado Estado Islâmico, mas com muitas pessoas no terreno a acreditar que ela está, na verdade, ligada a interesses económicos relacionados com a extração de gás natural.
Recorde-se que é precisamente em Cabo Delgado que está previsto nascer a chamada ‘Cidade do Gás’, um investimento superior a €50 mil milhões que está já a ser feito por várias multinacionais com interesse nas riquezas naturais da região.
O que é certo é que há demasiadas aldeias destruídas, milhares de mortos e feridos e relatos de abusos sobretudo envolvendo mulheres e crianças.
Ajuda escasseia
Entretanto, várias organizações tentaram chegar ao terreno, nomeadamente com a ajuda da ONU, numa altura em que os serviços essenciais, já sobrecarregados pelas tragédias dos meses anteriores, estão a ser significativamente afetados. Milhares de deslocados que agora chegam ao centro de Moçambique alojaram-se em casa de famílias onde os bens já escasseavam, e onde as cheias ameaçam chegar já durante a próxima estação das chuvas, que deverá começar durante o primeiro trimestre do ano.
A ONU elevou assim para $254 milhões as necessidades para conseguir providenciar assistência e proteção urgentes a estas populações. Num artigo publicado recentemente no Ponto SJ, o portal de informação da Companhia de Jesus em Portugal, o presidente do Instituto para a Paz Denis Hurley, Johan Viljoen, relatava que havia “150 mil deslocados na área da própria cidade de Pemba, quase duplicando o número habitual de habitantes, que ronda os 200 mil”. No mesmo artigo, o responsável, que esteve recentemente em Cabo Delgado numa visita humanitária, revelava que o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), que proporciona atualmente assistência humanitária a menos de 10% dos deslocados, já tinha anunciado o fim dos seus trabalhos no terreno por falta de fundos.
No mesmo sentido, o preço dos alimentos não para de subir, e tem estado a superar todas as médias dos últimos anos, nas várias províncias moçambicanas, o que dificulta ainda mais a vida a um povo que não tem tido descanso nos últimos anos, no que diz respeito a dificuldades. Segundo a Rede dos Sistemas de Aviso Prévio contra a Fome (FEWS NET, na sigla em inglês), o milho e o arroz, só para dar alguns exemplos, deverão continuar a encarecer no início de 2021, o que porá em causa a alimentação de muitas famílias, para quem já é difícil fazer uma refeição completa na maior parte dos dias.
Com o mundo totalmente focado na questão do combate à pandemia da Covid-19 – que também afetou Moçambique, sobretudo em termos económicos, com o fecho das fronteiras e a ausência praticamente total de estrangeiros, turistas ou expatriados, aquela antiga colónia portuguesa parece ainda mais longínqua no mapa da atenção humanitária e internacional.
Apesar das necessidades de milhares de milhões de euros e dos constantes apelos internacionais, a verdade é que Moçambique parece continuar apenas de mão estendida, a perder milhares de vida em conflitos e dificuldades sem fim. E por mais que façamos contas, a verdade é que nem as necessidades diminuem, nem as vidas perdidas reduzem. Nem as perspetivas melhoram. Por mais um ano.