No dia 30 de dezembro de 2019, um médico oftalmologista na cidade de Wuhan – epicentro do surto – teve conhecimento daqueles que foram provavelmente os primeiros casos de pessoas infetadas com o novo coronavírus. As sete pessoas deram entrada no hospital onde Li Wenliang trabalhava e foram diagnosticadas com aquilo que na altura se pensava ser SARS (Síndrome Respiratória Aguda Grave) – um tipo de coronavírus detetado pela primeira vez na China em 2002 que tirou a vida a cerca de 800 pessoas.
No mesmo dia, o médico enviou, através do WeChat (um serviço chinês de mensagens instantâneas), uma série de mensagens para o seu grupo de ex-colegas da universidade. O objetivo era alertá-los sobre o novo surto e recomendar que estes protegessem as suas famílias. As mensagens acabariam por ter um alcance inesperado, e sem que o seu nome fosse apagado, estas já se tinham tornado virais. “Quando as vi a circular online, apercebi-me que a situação estava fora do meu controlo e que provavelmente seria punido”, disse Li, em declarações à estação televisiva CNN.
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Seria uma questão de tempo até as mensagens irem parar às mãos da polícia de Wuhan, e passados apenas quatro dias, Li e sete colegas do mesmo hospital foram repreendidos pelas autoridades por espalhar rumores online e por perturbar a ordem social. O médico foi obrigado a dirigir-se a uma esquadra policial – sairia passado uma hora, mas não sem antes assinar um documento onde reconhecia a sua responsabilidade nos atos ilícitos e se comprometia a não os praticar novamente.
O vírus para o qual pretendeu alertar acabaria mesmo por atingi-lo, no dia 10 de janeiro. Depois de tratar o glaucoma de uma paciente que desconhecia estar infetada pelo novo vírus, o oftalmologista começou a revelar os primeiros sintomas: tosse, dificuldades respiratórias e febre. Acabaria por ser internado na unidade de cuidados intensivos e, no dia 1 de fevereiro, os resultados do teste do coronavírus deram positivo.
As autoridades chinesas procuraram criar uma narrativa única no que diz respeito à informação relativa ao novo coronavírus. Desde um comunicado policial – onde era deixado claro que não iriam tolerar desinformação sobre o tema – a outras vozes que, como Li, foram silenciadas. Ao médico oftalmologista junta-se Xie Linka, uma oncologista que recebeu uma notificação policial depois de ter alertado o seu grupo de amigos, através da mesma plataforma de mensagens utilizada por Li. Na mensagem enviada a 30 de dezembro, podia ler-se: “Não vão ao mercado Huanan nos próximos tempos. Várias pessoas contraíram uma pneumonia desconhecida semelhante à SARS lá. Hoje, o nosso hospital recebeu vários pacientes do mercado. A todos, lembrem-se de usar máscaras e de ventilar adequadamente”.
O episódio levanta questões relativas à eficácia do controlo do surto . Nas redes sociais são já muitos os apoiantes do grupo de médicos. A estes juntam-se também alguns meios de comunicação social: o jornal estadual Beijing Youth Daily entrevistou o médico, o artigo tornou-se viral, mas foi censurado poucas horas após o seu lançamento. O apoio dado aos atos de Li não ficou por aqui. Num comentário feito pelo tribunal supremo chinês, no dia 28 de janeiro, numa clara crítica à polícia de Wuhan, pode ler-se: “Teria sido bom para conter o novo coronavírus se o público tivesse dado ouvidos a esse ‘boato’ no momento certo e adotado medidas, como usar máscaras, desinfeção rigorosa e evitar ir ao mercado da vida selvagem”.
A polícia de Wuhan já reconheceu, através de comunicado, os erros cometidos nas suas abordagens iniciais ao surto. No comunicado pode ler-se que apenas dialogou com o grupo de oito pessoas, não tendo estes sido nem multados, nem detidos.