A justiça espanhola tem sido uma das protagonistas na crise catalã. Os independentistas afirmam que existe uma politização do sistema judicial, em particular do Tribunal Constitucional que serve como “braço” do governo central. “Isso tem a ver com os defeitos do Estado de Direito, do ordenamento jurídico espanhol”, explica Nuno Garoupa, em entrevista à VISÃO. O professor de Direito na Universidade do Texas A&M, e ex-presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos, acredita que não existe um problema de Estado de Direito em Espanha, mas que quer Madrid, quer a União Europeia (UE) têm de “reconhecer a possibilidade de a Catalunha referendar a independência”.
O sistema judicial espanhol tem tido um papel central na crise catalã. A ala independentista defendem que existe uma politização do Tribunal Constitucional (TC). Qual é a sua leitura?
A relação entre a Catalunha e o Estado espanhol está judicializada desde o seu princípio. Como não foi possível chegar a um acordo sobre o futuro da Catalunha logo em 1978, essa geração política remeteu, no fundo, todas as questões políticas para os tribunais. Não é por acaso que os estudos mostram que 50% da litigância no TC espanhol desde a sua fundação até recentemente, em questões territoriais, é sobre a Catalunha e o País Basco. Agora aconteceram duas coisas: por um lado, o governo espanhol insistiu em continuar na mesma estratégia dos últimos 30 anos, enquanto os independentistas frustraram-se com o facto de não encontrar uma solução judicial para as suas ansiedades – quiseram sair desse ordenamento jurídico vigente.
E como se faz isso?
O problema dos independentistas é que não foram capazes de criar, nos últimos cinco anos, um Estado de Direito catalão. O Conselho de Garantias da Catalunha, de que ninguém fala, – é um TC catalão – simplesmente também não reconheceu a independência. E sempre foi pouco aberto a estas aventuras independentistas. Só há uma saída para isto. O Estado espanhol e a União Europeia (UE) têm de, dentro do seu Estado de Direito, reconhecer a possibilidade de a Catalunha referendar a independência.
O referendo foi suspenso pelo TC espanhol.
O erro dos independentistas foi passarem à ação antes de tempo. Os independentistas têm 48% dos votos e não se percebe como, com estes 48%, querem impor uma reforma constitucional. Nem 66% têm na Catalunha – nós, em Portugal, precisamos de 2/3 para fazer reforma constitucional.
A Catalunha tentou um novo estatuto, sem sucesso. O TC alterou em 2010 o estatuto catalão, uma decisão renhida, em que três juízes tinham os mandatos expirados e um tinha morrido (sem nomeação do sucessor).
Não quero usar a expressão de que os independentistas tiveram azar, mas francamente tiveram. O estatuto da Catalunha estava evidentemente combinado com o PSOE, com o governo de Zapatero. Mas a verdade é que se não tivesse havido a crise de 2011 – se continuasse um governo socialista – é possível que as coisas tivessem tido outra história. Não é por acaso que o TC está à espera tantos anos para tomar uma decisão. Portugal tem uma enorme vantagem: a fiscalização preventiva, que os espanhóis não têm. Se houvesse fiscalização preventiva, o TC espanhol teria sido obrigado a tomar a sua decisão logo que o estatuto foi aprovado.
Em 2006, em vez de quatro anos depois.
O problema de se recorrer a fiscalização sucessiva é que fica sujeita aos calendários do TC. A Catalunha e o País Basco falharam sempre em outra questão. Por exemplo, o Canadá negociou logo um número de juízes no Supremo Tribunal para o Quebec – até são desproporcionais, três em nove, que não é a distribuição da população. A Escócia tem dois juízes no Supremo Tribunal britânico, que também é desproporcional. A Catalunha e o País Basco não têm juízes no TC, não negociaram, não exigiram uma quota. Isso tem a ver com os defeitos do Estado de Direito, do ordenamento jurídico espanhol, que não foram acautelados por que a classe política da transição quis fugir desses assuntos. E agora estamos a ver o produto disso.
O TC espanhol sai fragilizado desta crise?
O TC espanhol está desprestigiado, não tem credibilidade há muito anos. Tem vindo a perder prestígio desde o segundo mandato de Aznar por várias questões, incluindo alguns conflitos de interesse. O problema espanhol é que não tem nenhuma instituição que possa servir de ponto de partida para uma negociação de uma reforma constitucional, que dê alguma esperança ao independentismo catalão.
A UE não deveria ter aqui um papel?
A UE está manietada. A partir do momento que consente a situação polaca e húngara, não tem qualquer margem de manobra para interferir nos Estados-membros, não tem qualquer papel nesta matéria. Não quero dizer que é um nado-morto, mas está numa situação muito complicada. Há muitos países da UE que têm problemas semelhantes ao espanhol e a última coisa que querem é Bruxelas a imiscuir-se nos seus assuntos internos. O erro do independentismo catalão – além de prematuro – é pensar que com 48% e uma ligeira maioria parlamentar convenciam a UE e o Estado espanhol. O independentismo precisa de crescer eleitoralmente.
No caso húngaro e no polaco, Bruxelas assinalou publicamente a existência de problemas. Em Espanha, nem sequer está aberto esse caminho.
Mas no caso espanhol não há uma eliminação de partidos. Na Hungria e na Polónia houve uma limpeza dos tribunais e só foram colocadas pessoas do partido governamental. Em Espanha, não há falha do Estado do Direito. Se alguém se colocou fora do Estado de Direito foram os independentistas, que realmente recusaram o Estado de Direito espanhol. No TC espanhol continua a lá estar pessoas do PSOE. E até há um juiz da Esquerda Unida. A questão espanhola não é uma questão de eliminação de oposição, é uma questão de credibilização (ou não) das instituições jurídicas.
Isso não devia soar alarmes em Bruxelas?
O que pode dizer? Que não gosta do Estado de Direito em Espanha? Na altura da ‘troika’, em Portugal, houve alguns comentários europeus em relação ao nosso TC – que era um tribunal ativista, politizado e que não cumpria a lei. A UE não tem de se intrometer.
A UE nem isso diz sobre o caso espanhol. Durante a troika, o TC português decidiu contra as medidas do governo e não como o seu “braço”, como parece que o TC espanhol está a fazer na crise catalã.
O TC português estava dominado pela oposição, não era independência, era dependência do lado contrário. O TC espanhol não está a funcionar como um braço do governo central, mas como um braço da coligação entre o PP e o PSOE. O problema do TC espanhol não é um problema de governo/oposição, é um problema do Estado espanhol contra os interesses territoriais. Essa questão não coloca em causa o Estado de Direito. O que o coloca em causa é o ordenamento jurídico subjacente a esse Estado de Direito, que está mal concebido desde o princípio. Sejamos optimistas. Rajoy é uma pessoa muito preguiçosa, extraordinariamente preguiçosa, e não vai fazer o que podia fazer: uma reforma da Constituição, mas no sentido oposto. Dentro do PP há muito gente que defende que é o momento de rever a Constituição para centralizar competências no Estado espanhol.
O TC espanhol vai manter, no futuro, a legitimidade para dirimir os litígios entre o Governo e as comunidades autónomas?
Terá a mesma legitimidade para quem lhe reconhece a legitimidade, que é o Estado espanhol. E continuará a não ter legitimidade para quem já não lhe reconhece, como os movimentos independentistas seja no País Basco, seja na Catalunha.
A autodeterminação não resiste a um TC politizado?
Não resiste, como não resiste em Portugal. Não reconhecemos o direito às regiões autónomas de se separarem de Portugal. Nem reconhecemos o direito a partidos autónomos, ao contrário do Estado espanhol, que reconhece partidos regionais. O que vai acontecer na Catalunha depende das eleições. O movimento independentista terá de refazer e repensar a sua estratégia. E parte dessa estratégia tem de continuar pelo caminho que estava fazer que é, passo a passo, ir desafiando o ordenamento jurídico do Estado espanhol.
Mas esse ordenamento jurídico passa por uma Constituição que só prevê a unidade espanhola. A Constituição é a única solução para um problema político?
Está no governo o partido menos tolerante a essas questões. O PP, para lá de ser um partido nacionalista espanhol, está numa situação minoritária e vai tentar cavalgar esta onda para subir a sua votação. Toda a gente quer conflito porque toda a gente tem uma falta de legitimidade eleitoral.
Uma parte será resolvida em dezembro, nas eleições catalãs.
Estou convencido que haverá eleições em Espanha para o ano. Há ainda outra questão bastante incoerente: os partidos nacionalistas da Catalunha mantiveram os lugares nas instituições espanholas. Ninguém saiu do Senado, nem ninguém saiu do congresso quando supostamente já eram independentes. Mas isso tinha uma consequência real: se saírem das instituições espanholas isso dá maioria absoluta ao PP e ao Ciudadanos. Rajoy é uma pessoa passiva, reativa e, por isso, judicializou tudo, porque simplesmente não teve a capacidade de se sentar a negociar fora do ordenamento jurídico. Aznar sentou-se a negociar fora do ordenamento jurídico no caso do Ibarretxe e a questão do referendo no País Basco. Fez a bravata toda pela frente, mas depois sentou-se com a ETA e o Ibarretxe.
O facto de não aceitar um referendo na Catalunha vai ter um custo para Rajoy?
Não, mas tem um custo para Espanha e para a Catalunha. É um benefício para Rajoy. Ganha mais popularidade junto do eleitorado espanhol. Infelizmente, aqui, o interesse espanhol e o de Rajoy podem não ser a mesma coisa. Rajoy sai vencedor.
Mesmo que os independentistas vençam nas eleições em dezembro.
Se ganharem voltamos ao ponto zero e Rajoy sobreviveu. Não há um masterplan do Rajoy, faz gestão de curtíssimo prazo. E a judicialização é isso, gestão de curto prazo.