Há dias que me demoro a pensar na imagem com que devo começar este texto. Se pelo momento em que me atirei às águas quentes da ilha de Rubane, e ali fiquei sem ver vivalma até restar o último raio de luz que me permitia abrir a porta de casa, a cinco passos do mar; se pelo momento em que a Graça, menina da tabanca da ilha de Orango, se veio agarrar a mim e passar a mão curiosa pela minha pele – talvez para ver se era tão aveludada como a deles –, enquanto uma manga com casca lhe adoçava a boca; ou se pelos instantes irrepetíveis em que Manuel Alípio correu a tabanca desesperando para encontrar os familiares que nunca tinha visto, porque eles dali nunca tinham saído, e finalmente os abraçou.
O que sei é que há sítios de onde – sem que consigamos explicar bem como, ou porquê – voltamos pessoas mais felizes.
Esperar mais tempo que o esperado no cais de Bissau e ter de trocar de barco porque o primeiro avariou – e ficar sem roupa seca – não há-de ser inédito. África adora pôr à prova a nossa resistência. Mas o que importa isso quando a duas horas ou três dali estamos nos Bijagós, o arquipélago classificado como reserva da biosfera da UNESCO, um universo paradisíaco e místico de 88 ilhas – das quais só entre 12 a 17 são habitadas em permanência? Olhamos em volta, boquiabertos, e talvez não seja exagerado dizer que já não há sítios assim.
Foi por isso que, há 17 anos, a francesa Solange Morin decidiu vender alguns dos seus hotéis no Senegal e atracar em Rubane, quando não existia nada para além da paisagem. A ilha é um local sagrado para o povo bijagó: ali é proibido lutar, enterrar corpos, derramar sangue, e até fazer construções definitivas. Construir um resort foi coisa que levou três anos de burocracias e obrigou Solange a muitas provas – sinistras para a maioria dos mortais.
De joelhos junto a um poilão, teve se lavar-se no sangue de uma vaca que os homens da tabanca degolaram. Depois, dependeu da orientação de quatro galinhas sem cabeça. Como a última morreu à sua frente, Solange foi finalmente autorizada a construir o “Ponta Anchaca”, um dos resorts de luxo do arquipélago. Em troca, prometeu ao povo telhados de zinco nas tabancas, barcos a motor para as viagens, formação e empregos.
Com os seus olhos azuis imensos, Solange recorda o ritual sem repugnância. Cedo se habituou a respeitar as tradições de um povo profundamente animista. Abas,seu assistente, vem da ilha de Canhabaque, onde se acredita que as árvores falam e onde adolescentes e homens feitos enfrentam a cerimónia da circuncisão passando meses e meses na floresta em rituais secretos. Ou onde as mulheres, quando querem separar-se, precisam apenas de pôr à porta as malas dos homens e um saco de caju.
A verdade é que não houve ritual estranho que impedisse estrangeiros de se apaixonarem e ficarem. Ao passear pelo areal fino de Rubane, cruzamo-nos com as crianças da terra e com as suas mães, que passam o dia a tecer a palha que vai proteger os bungalows. Falam em dialeto bijagó e sofro por não conseguir entender o que me dizem. Tenho sorte porque a Lucília, minha companheira de trabalho, é a única que num passe de mágica consegue comunicar com elas. Tiramos selfies e elas riem-se e gostam de ver-se em filtros bonitos. Damos-lhes cremes, lenços, pensos rápidos, roupa. Já todos nos esperam no barco quando ficamos ao longe a vê-las sorridentes acenar “Luci!, Luci!”. Está provado que nem entenderam o meu nome.
O sabor das mangas rosas
A Guiné-Bissau é uma página negra nas estatísticas. Um dos países mais pobres do mundo, com histórico de instabilidade política. Ingredientes que a deixaram demasiado tempo longe dos cartazes turísticos. Quando me perguntam se é seguro andar por lá lembro-me sempre deste trajeto na ilha de Bubaque. Primeiro voou um chapéu. Um adolescente correu e trouxe-o de volta. Depois voou outro. Quilómetros à frente, quando já todos nos tínhamos esquecido, um adolescente chegou de bicicleta com o chapéu na mão. Talvez fosse por aqui que este texto deveria começar. Porque se os Bijagós são o último paraíso não é só porque o turismo de massas ainda não entrou por ali adentro, mas porque lá vivem pessoas assim.
E quando parecia impossível ver melhor praia que a de Rubane, chegamos a Bruce, no outro extremo de Bubaque. É hora do lanche mas adiamos o almoço. Aquele mar tem íman. E os peixes são tantos que o desafio é não saltar quando eles nos fazem cócegas nas pernas e nos pés.
Estamos no Dakosta Island Beach Camp, um espaço que é do homem que nos salvou do barco avariado. Adelino da Costa foi campeão de kickboxing em Portugal, esteve à beira de se sagrar campeão de boxe nos EUA, perdeu, arrumou as luvas e reergueu-se montando uma cadeia de ginásios que chegou à 5ª Avenida em Nova Iorque. Em 2008, voltou à Guiné, de onde saíra aos nove anos. Fez um périplo pelas ilhas e escolheu uma das mais perfeitas. “Para aqui vens só com a tua mala. Quando tens lua cheia tens mil estrelas. A água quando está cheia está a dois passos da tua tenda. Tens esta brisa. Ainda bem que ainda resta um espaço no mundo com este tipo de energia”, diz Dakosta, que não desiste enquanto não conseguir mudar a imagem que se tem daquele país “quase esquecido”: “Quando vemos este conjunto como é que não estamos no melhor país do mundo?”
Perdemo-nos a ouvi-lo e avisam-nos: a luz está a fugir e vamos viajar contra a corrente até Orango, a ilha mais distante do continente, a única onde se pode ver hipopótamos marinhos. Vem aí uma tragicomédia de banhos de mar registada em vídeos com potencial para se tornarem virais. Estamos ensopados da cabeça aos pés, há quem esteja roxo, o último fio de voz que me restava foi-se. Não há ar condicionado, não há água quente, nem sequer muita água. Muitos telefones avariaram com a humidade e também não há wifi. A ideia de ficar incontactável é dura nas primeiras horas. Depois, é uma bênção.
A 3 quilómetros de caminhada está uma das tabancas mais importantes – a da rainha Okimpa Pampa, venerada no arquipélago por ter resistido à colonização dos portugueses. Mal entramos estamos rodeados de miúdos. Que nos agarram. Que nos dão abraços. Que nos saltam para o colo. E a minha Graça, com a sua pele de veludo e a sua manga com casca.
Para abrir a porta do túmulo da rainha espera-nos o régulo Augusto, que já não consegue dizer a idade porque perdeu os documentos. Enquanto isso, Manuel Alípio, bisneto da rainha, hoje diretor-geral do Turismo, tem uma importante missão. Fazemos da luta dele a nossa e andamos de casa em casa atrás dos familiares que a mãe deixou para trás. Uns estão na pesca, outros pelos campos. Onde estarão elas? E eis que assistimos em direto a esta alegria: três tias, seis primas, cinco sobrinhos, gente que nunca saiu dali. Um encontro, tantos abraços.
Podia uma viagem acabar de maneira mais bonita? Podia – e acabou. No regresso, transportamos uma mãe e um filho doente. Nas ilhas não há cuidados de saúde; o hospital mais próximo está em Bissau. Se não estivéssemos ali, aquela mãe teria de apanhar uma daquelas pirogas frágeis onde tantos naufragam. Passamos por elas quando apanhamos uma tempestade. Uns não resistem aos enjoos. Eu, tremo de frio. Maria, portuguesa que foi para a Guiné vender cervejas Cristal e se apaixonou pelo seu advogado, Manuel Alípio – puxa-me para si e aquece-me. Saio da Guiné com uma tia, que me trata por “manga rosa dos Bijagós”. Não sei porquê, mas o que podia ser mais doce? Perdoa-me Guiné, se soubesse que eras este país-coração, não tinha passado tanto tempo sem me lembrar de ti.
O que deve saber antes de ir
Como chegar
Bissau está à distância de apenas 4 horas de avião de Lisboa (a TAP tem 3 voos semanais diretos). Há dois barcos que asseguram o trajeto entre Bissau e o arquipélago (preços entre os 6 e os 11 euros). Se contactar os hotéis encontram-lhe outras alternativas (barco ou avião privado). As pirogas não são recomendáveis.
Segurança
Dois chapéus e uma carteira com dinheiro e documentos perdidos e tudo nos foi devolvido. O povo é pacífico e afetuoso e as taxas de criminalidade são baixas. Em Bissau, andámos pela rua a todas as horas e em táxis partilhados (tem mesmo de experimentar, vai ouvir muitas histórias) e nunca nos sentimos inseguros. Se estiver perdido vai ver que os guineenses se aproximam para lhe oferecer ajuda.
Reportagem publicada na VISÃO 1269 de 20 de junho
A VISÃO viajou a convite da TAP Portugal e do Ministério do Turismo da Guiné-Bissau